Política
Saberes ancestrais
Encontro global discute a inclusão da medicina tradicional aos sistemas públicos de saúde
Nos pavilhões do Riocentro, a batida dos atabaques do candomblé se misturava ao som dos maracás, aos cantos indígenas e ao burburinho em múltiplos idiomas. Representantes de mais de 70 nações participaram dos painéis e vivências do 3º Congresso Mundial de Medicina Tradicional, Complementar e Integrativa (MTCI), realizado entre 15 e 18 de outubro no Rio de Janeiro. A diversidade deu o tom do evento: enquanto médicos alemães apresentavam experiências clínicas com fitoterápicos, na sala ao lado discutiam-se práticas terapêuticas indígenas e, em outra, estudos com psicodélicos. Esse “tudo ao mesmo tempo” marcou o encontro, que busca aproximar ciência, saberes ancestrais e políticas públicas.
A MTCI é um guarda-chuva que reúne diferentes sistemas de cuidado, das medicinas ancestrais de cada país a práticas contemporâneas baseadas em evidências, resume Caio Portella, presidente do Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa (Cabsin), um dos organizadores do evento. Durante o congresso na capital fluminense, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentou seu plano global para a próxima década, que prevê a incorporação dessas abordagens aos serviços de saúde por meio de pesquisa, desenvolvimento e salvaguardas culturais, com foco no tratamento e na prevenção de doenças crônicas e transtornos mentais.
O Brasil vive um momento de expansão das chamadas Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (Pics), como acupuntura, fitoterapia e meditação. Em 2024, mais de 9 milhões de pacientes tiveram acesso a esses procedimentos pelo SUS, um aumento de 83% em dois anos, segundo o Ministério da Saúde.
Mais de 9 milhões de brasileiros acessaram práticas integrativas, como acupuntura e ioga, pelo SUS em 2024
“O objetivo do evento é fortalecer evidências robustas de segurança e eficácia em áreas como ioga, medicina chinesa e uso de plantas”, diz Ricardo Ghelman, presidente do congresso. Ele ressalta o descompasso entre a crescente adesão a esses tratamentos e o volume de recursos disponíveis: “Apesar da expansão, o déficit global de financiamento continua enorme”. Segundo o Integrative Medicine Research Journal, um em cada três pacientes utiliza alguma forma de MTCI, mas menos de 1% dos orçamentos destinados à pesquisa em saúde é direcionado à área.
Pesquisas conduzidas em diversas partes do mundo mostram que, quando regulada e integrada com segurança aos sistemas públicos de saúde, a MTCI pode atenuar sintomas de doenças, evitar encaminhamentos para tratamentos onerosos e diminuir o uso de antibióticos, além de contribuir para a saúde mental e o controle de doenças crônicas. “Os sistemas ocidentais precisam aprender com os saberes tradicionais para deixar a lógica da reparação e avançar rumo à prevenção”, afirma Georg Seifert, presidente da Sociedade Europeia de Medicina Integrativa.
Às vésperas da COP30, dados apresentados no congresso reforçam a conexão entre saúde humana e planetária. Um levantamento recente revelou como o ambiente natural influencia o bem-estar, confirmando o que os povos indígenas afirmam há milênios. “Os resultados preliminares são contundentes”, assegura Portella. “Quem vive próximo a áreas verdes tem maior expectativa de vida e menor incidência de doenças crônicas. A imersão na natureza reduz o estresse quase imediatamente, com efeitos positivos sobre a saúde mental e o desenvolvimento infantil.” Esse estudo integra os chamados “mapas de evidências”, projeto apoiado pelo Ministério da Saúde. Já são cerca de 30 mapas, que reúnem 4,2 mil revisões temáticas e mais de meio milhão de publicações, registrando o que há e o que falta em pesquisa.
No sistema público chinês, a medicina tradicional responde por 30% dos atendimentos, com 30 mil prescrições e 19 toneladas de fitoterápicos consumidos diariamente. Desde a Covid–19, o interesse por tratamentos alternativos cresceu na África, América Latina e Europa, mas o financiamento e as políticas públicas continuam escassos. No Brasil, quase 30 práticas integrativas e complementares são oferecidas pelo SUS, mas ainda enfrentam resistências e gargalos institucionais.
“Para os indígenas, pajé e parteira são a primeira opção. As demais práticas é que são complementares”, observa Sacuena
A política nacional de MTCI completará 20 anos em 2026, mas ainda carece de financiamento estruturado e de uma área definida de responsabilidade no governo federal, observa Ghelman. Durante o congresso, foi entregue ao Ministério da Saúde uma carta solicitando uma agenda mais robusta para o setor. A ausência da medicina tradicional indígena e a baixa representatividade nacional nas Pics também estiveram entre os temas debatidos. Das 29 práticas integrativas incluídas no SUS, apenas uma é brasileira: a Terapia Comunitária Integrativa. A maioria das demais tem origem na Índia, China e Europa, e até mesmo as plantas mais utilizadas em fitoterapia são, em sua maior parte, estrangeiras. “O Brasil é visto como um laboratório vivo para medicinas tradicionais, mas, apesar de abrigar a maior biodiversidade do planeta, tem poucas patentes de bioativos”, lamenta Portella.
O conhecimento tradicional teve destaque no congresso com o anúncio do Programa Nacional de Medicinas Indígenas, criado para reconhecer o trabalho de seus especialistas nos territórios – parteiras, pajés, benzedores, rezadores e raizeiras – com critérios de qualidade, segurança e respeito cultural. Ainda em construção e com lançamento previsto para o fim do ano, o programa é considerado o “coração” da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) e foi pensado para articular-se com outras iniciativas do SUS. “Queremos construir uma política desde os territórios, valorizando práticas já existentes”, afirma Putira Sacuena, do povo Baré e diretora do Departamento de Atenção Primária à Saúde Indígena da Sesai.
“As medicinas indígenas não são alternativas, são originárias. Para os povos indígenas, pajé e parteira são a primeira opção. As demais práticas é que são complementares”, ressalta Sacuena. A proposta é integrar esses saberes ao SUS sem descaracterizá-los. “O Brasil precisa valorizar o conhecimento tradicional, parte da resistência ainda é fruto do racismo estrutural na academia e nas instituições.”
Integração. Para a diretora do Departamento de Atenção Primária à Saúde Indígena, os saberes tradicionais não podem ser descaracterizados no SUS – Imagem: Vivian Fernández
Os desafios da interseção entre espiritualidade e cuidado – presentes em práticas amazônicas que utilizam a ayahuasca, bebida indígena de efeito psicoativo – também estiveram em debate. “O xamanismo é uma espiritualidade ancestral ainda não institucionalizada”, explica Alessandro Campolina, médico do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e pesquisador do Lar e Integração do Ser (LIS), centro brasileiro voltado ao estudo do vegetalismo, sistema de conhecimento comum na região andina e na Amazônia peruana.
De acordo com Campolina, o vegetalismo combina práticas xamânicas e de saúde. “É a mistura das duas coisas”, afirma. No Peru, essa integração tem reconhecimento estatal como área de saúde com dimensão espiritual. No Brasil, a institucionalização da ayahuasca ocorreu principalmente por meio de rituais religiosos, como os do Santo Daime e da União do Vegetal (UDV). Apesar da forte presença indígena e das comunidades ayahuasqueiras, o reconhecimento científico ainda enfrenta barreiras. À frente do núcleo de pesquisa do LIS, ele defende ampliar o conceito de saúde, incorporando promoção, bem-estar e espiritualidade como pontes entre saberes. “Ela permeia todos os campos, não é uma religião específica e pode estabelecer esse diálogo comum.” Para ele, o centro pode servir como referência para aproximar o vegetalismo do Alto Amazonas dos debates clínicos contemporâneos. “Buscamos essa interface”, conclui o antropólogo Thiago Novaes.
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, participou do congresso por videoconferência, enquanto cumpria agenda oficial em países da Ásia, incluindo visitas a hospitais de medicina tradicional na China e centros de ayurveda na Índia. Em sua fala, reforçou o compromisso do Brasil com as práticas integrativas: “Renovamos, como líderes dos BRICS, nosso compromisso mútuo de fortalecer a medicina tradicional em cada sistema de saúde e ampliar intercâmbios”. •
Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Saberes ancestrais’
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