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Romance subversivo

Coronel da reserva enfrentará o Tribunal de Honra do Exército por livro que expõe a corrupção no meio militar

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Mordaça. As acusações contra o autor também mencionam entrevistas nas quais ele critica a “mentalidade golpista” de alguns oficiais – Imagem: Rafael Lima
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Após 32 anos de trabalhos prestados ao Exército brasileiro, o coronel de artilharia da reserva Rubens Pierrotti Jr. publicou um livro de autoficção, inspirado em alguns episódios de sua trajetória. Diários da Caserna – Dossiê Smart: A História Que o Exército Quer Riscar (Ed. Labrador) não é exatamente uma denúncia. Trata-se de um romance, com elementos baseados na realidade. Foi o suficiente, no entanto, para incomodar o Alto-Comando das Forças Armadas. Desde o lançamento, em abril de 2024, o autor tem concedido entrevistas para promover a obra e tecido críticas à corrupção, ao envolvimento de oficiais na trama golpista de 8 de janeiro e à “formação alienante” nas academias militares. Acabou, em pouco tempo, no centro de uma batalha jurídica e administrativa. “Clara tentativa de me calar”, resume.

Há pouco mais de um mês, o coronel recebeu uma intimação para depor no Tribunal de Honra do Exército. O despacho, assinado pelo general Tomás Miguel ­Mine Ribeiro Paiva, comandante do Exército, é baseado na Lei nº 5.836, de 1972, concebida na ditadura para julgar questões éticas e militares. Ao cabo, o acusado pode ser declarado “indigno do oficialato”, com a perda da patente e o corte de proventos de aposentadoria. Normalmente, são submetidos a esse Conselho de Justificação oficiais condenados criminalmente e com pena superior a dois anos de reclusão. Para Paiva, a postura de Pierrotti é um “mau exemplo” para os demais.

O documento destaca trechos de entrevistas concedidas pelo autor, consideradas pelo comandante Tomás Paiva “críticas e censuras públicas, explícitas e ofensivas dirigidas às autoridades militares e civis”. Cabe, portanto, ao Conselho de Justificação analisar “se o justificante é culpado” pelas condutas “atentatórias à honra pessoal, ao pundonor militar e ao decoro da classe, e contrárias aos preceitos da ética militar”. Pierrotti alega que as acusações são frágeis, mas não descarta a possibilidade de ser condenado e perder a aposentadoria. “Seria uma imensa injustiça, porque não faço críticas infundadas e dediquei mais de 30 anos da minha vida ao Exército”, lamenta.

A obra é ficcional, mas inspirada em fatos reais. Foi o que bastou para despertar a fúria do Alto-Comando das Forças Armadas

Dois meses antes, provocado pelo Comando Militar do Leste, o Ministério Público Militar havia aberto um inquérito acusando Pierrotti de crimes previstos no Código Penal Militar, criado em 1969, na esteira no Ato Institucional Nº 5, que inaugurou o período mais sombrio dos anos de chumbo no Brasil. A denúncia foi rejeitada pelo juiz federal militar da 1ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, Jorge Marcolino dos Santos, sob o argumento de que o crime de “crítica indevida” não pode ser cometido por militar da reserva ou reformado, por não estar sujeito às restrições disciplinares da ativa. A conduta estaria amparada na liberdade de expressão.

Para o juiz, a denúncia não descreveu “fatos ofensivos”, e as declarações de ­Pierrotti estariam todas “dentro dos limites da livre manifestação do pensamento”. O MPM recorreu ao Superior Tribunal Militar. O coronel não descarta acionar, se necessário, o Supremo Tribunal Federal. Segundo ele, a Corte já emitiu decisões no passado em casos parecidos e estabeleceu que militares inativos não cometem crime de “crítica indevida às Forças Armadas”.

No despacho decisório, o comandante Tomás Paiva destaca diversos trechos de entrevistas, entre eles, uma concedida ao Correio Braziliense, na qual o autor critica a “mentalidade golpista” de muitos oficiais ao comentar os atos de 8 de janeiro de 2023. “Se observarmos a história, os militares cultuam essa perniciosa tradição golpista há muito tempo. Nossa República nasceu de um golpe. Então, além da falta de memória, punição e reparação sobre a ditadura, precisamos entender esse movimento dentro de uma perspectiva mais ampla, histórica, e também onde isso tudo é gestado”, disse na ocasião. Já no inquérito aberto pelo Ministério Público Militar, é citada uma declaração irônica de ­Pierrotti, para quem a tentativa de golpe de Jair Bolsonaro só não prosperou devido à “inépcia dos próprios militares”. A análise foi feita em entrevista ao canal do jornalista Carlos Tramontina no YouTube.

Vingança. O coronel de artilharia diz ter sido colocado na “geladeira” após reprovar simulador comprado pelo general Hamilton Mourão – Imagem: Bruno Batista/VPR

A CartaCapital, Pierrotti reitera e amplia as críticas. Para ele, o Exército está numa “fase negacionista”, porque é incapaz de “reconhecer e admitir os próprios erros”. A formação destinada aos cadetes na Academia Militar das Agulhas Negras é “alienante”, avalia. Recorda que a escola de formação de oficiais inclui canções que exaltam a violência. “Uma delas era sobre tortura: ‘Bater, bater até dizer’. É um processo de lavagem cerebral.”

Para mudar a mentalidade dos oficiais, acrescenta Pierrotti, é necessária uma “reforma estrutural”, a começar pela “mudança do currículo das academias militares”. Na avaliação do coronel, a impunidade dos crimes da ditadura (1964–1985) assanhou os golpistas da atualidade. “Essa transição inconclusa deu margem para o que estamos vendo: generais réus por tentativa de golpe de Estado”, diz, antes de indagar: “E sou eu, que escrevi um livro e faço críticas construtivas, quem está manchando o nome Exército?”

Pierrotti revela que a perseguição começou ainda na ativa, quando trabalhou no Projeto Simaf, em 2010. Com intenção de modernizar os equipamentos, o Exército comprou da empresa espanhola Tecnobit um simulador de artilharia por quase 14 milhões de euros. O gerente do projeto era o general Hamilton Mourão, à época lotado no Comando Militar Sul, que mais tarde seria eleito vice de Bolsonaro. Responsável pela equipe técnica de testagem, o coronel reprovou o equipamento sete vezes. “Não funcionava, não podíamos simplesmente autorizar o pagamento”, recorda.

Depois de muitos embates com Mourão, Pierrotti foi exonerado do cargo e uma nova equipe foi designada para fazer a avaliação. Veio então a oitava reprovação. “Ficou claro que não era má vontade”, avalia. As críticas do coronel ao projeto o levaram para “a geladeira”. “Sofri muito assédio moral, os colegas percebiam, era nítido”, relata. Em 2016, o coronel entrou para a reserva e desde então dedica-se ao exercício da advocacia, em um escritório próprio. “Tudo que faltou na minha formação militar eu fui buscar fora. Estudei Direito e fiz várias especializações, que me deram condições de contribuir para melhorar o trabalho do Exército.”

“Temos generais que são réus por golpe de Estado, e sou eu quem está manchando a imagem do Exército?”, questiona Pierrotti

Mais tarde, o Tribunal de Contas da União investigou o projeto. Em acórdão de 1,3 mil páginas, o órgão apontou diversas irregularidades, como “falta de demonstração de necessidade e vantagem da licitação no exterior”, “prazo exíguo para recursos em licitações” e “alterações em compensações financeiras sem justificativa”. Ao cabo, o TCU arquivou o processo, mas fez recomendações ao Comando do Exército para evitar a repetição de “ocorrências semelhantes”. Mourão nunca se pronunciou sobre o caso. Procurado pela reportagem, não respondeu até o fechamento da edição.

Esse episódio é o ponto de partida do livro Diários da Caserna, cujo subtítulo – Dossiê Smart – é uma alusão ao projeto do simulador. Na obra, o Coronel Battaglia­, alter ego do autor, demonstra inconformismo com as irregularidades, e decide denunciar o caso à imprensa. O romance é, na visão do autor, “uma pequena contribuição para um Exército melhor”.

Em nota, o Comando Militar do Leste informou que o inquérito contra Pierrotti­ “encontra-se sob sigilo” e já foi “remetido à Justiça Militar”. Não caberia, portanto, “comentar sobre processos judiciais em andamento”. A assessoria de comunicação do Exército não respondeu. •

Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Romance subversivo’

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