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Risco terceirizado

Larissa Mies Bombardi propõe marco regulatório internacional para deter o avanço dos agrotóxicos no Sul Global

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Pelo ar. O Ceará proibiu a pulverização aérea. A geógrafa se exilou na Europa após receber ameaças, inclusive de um piloto de avião agrícola – Imagem: Ana La Corte e Preston Keres/USDA
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Professora licenciada da USP e hoje pesquisadora do Centre d’Etudes en Sciences Sociales sur les Mondes Africains, Américains et Asiatiques, da Université Paris Cité, Larissa Mies ­Bombardi retornou ao Brasil para discutir a proposta de um marco regulatório internacional do uso de agrotóxicos durante uma conferência na Câmara dos Deputados, na quinta-feira 27. Autoexilada na Europa após receber ameaças por seu trabalho científico, a geógrafa observa que a União Europeia adota uma postura incoerente em relação ao tema. Baniu centenas de pesticidas, mas continua fabricando e exportando substâncias proibidas em seu território para países como o Brasil. Dessa forma, os prejuízos causados à saúde humana se concentram nas nações em desenvolvimento e com legislação mais permissiva. “É prioridade estabelecer regras internacionais que proíbam a comercialização e o uso desses produtos nocivos no Sul Global”, sugere na entrevista a seguir.

CartaCapital: Quão descontrolado é o consumo de agrotóxicos no Brasil?
Larissa Mies Bombardi: Existe um abismo entre nós e os europeus em relação a esse tema. Na Europa, a venda de agrotóxicos caiu 3% nos últimos dez anos. No Brasil, verificamos um aumento de 78%. A América Latina é a porção do planeta com maior crescimento. Nos últimos anos, a alta foi de 143% e está relacionada com o papel que o Brasil exerce no consumo. No Sudeste Asiático, o aumento foi bem menor, de 28%.

“A União Europeia continua a fabricar substâncias banidas em seus territórios para vender a países como o Brasil”, alerta

CC: O que as pesquisas têm revelado sobre intoxicações por agrotóxicos?
LMB: Há um conjunto grande de pesquisas, tanto no Brasil quanto no exterior, a revelar graves consequências para a saúde humana, como malformação fetal, infertilidade, abortos espontâneos­ e Mal de Parkinson, entre outras. Esse quadro ocorre tanto pela manipulação dessas substâncias por trabalhadores rurais, quanto pela exposição crônica da população, pois mesmo pessoas não envolvidas diretamente no manuseio desses produtos podem intoxicar-se, inclusive bebês. São aquelas que moram próximo de áreas de uso intenso. Nos últimos dez anos, mais de 500 bebês foram diagnosticados com intoxicação. É preciso ressaltar, porém, que existe uma subnotificação enorme. Estima-se que, para cada caso notificado, há outros 50 que não chegaram ao conhecimento das autoridades sanitárias. Nessa proporção, imagina-se que em torno de 25 mil bebês foram contaminados nesse período. Outro dado relevante é que 20% dos intoxicados são crianças, adolescentes e jovens com idade entre 0 e 19 anos.

CC: Estudos científicos comprovam maior incidência de doenças em países que fazem uso intensivo de agrotóxicos?
LMB: Há o exemplo emblemático do uso do clordecona, pesticida proibido na França, mas muito usado na Martinica, departamento francês nas Antilhas. É curioso, pois a França permite o uso de agrotóxicos nocivos em territórios que deveriam obedecer às mesmas normas do país. Nessa ilha, o número de pacientes diagnosticados com câncer é extremamente elevado. Constata-se ainda maior incidência de Parkison, nascimentos prematuros e danos cerebrais. Na França, esses índices são bem menores.

CC: Mesmo com toda a subnotificação, o Ministério da Saúde informa que 14,5 mil brasileiros foram intoxicados por agrotóxicos entre 2019 e 2022. Como mitigar esse problema?
LMB: Além de um rígido controle por parte do Estado, as empresas devem ser responsabilizadas pelas substâncias que fabricam e vendem. No Brasil, não há uma fiscalização do uso de agrotóxicos, nem como eles são aplicados, sobretudo na pulverização aérea. Aliás, essa modalidade é uma das principais responsáveis pela contaminação ambiental. Outra questão é a falta de preparo dos agentes de saúde para identificar e lidar com esse tema. É preciso que haja capilaridade dos serviços de saúde, comprometimentos em diferentes níveis, tanto municipal e estadual quanto federal, e uma rede capaz de lidar com as populações expostas.

Perigo. Agricultores e moradores de áreas próximas das lavouras estão mais expostos – Imagem: iStockphoto

CC: Neste mesmo período foram liberadas 2.182 fórmulas de agrotóxicos, segundo o Ministério da Agricultura. Sabe-se que a força da bancada ruralista no Congresso exerce uma forte pressão. Com a atual correlação de forças na Câmara e no Senado, é possível vislumbrar alguma mudança?
LMB: Além do enorme poder da bancada ruralista, há um forte lobby das indústrias de agroquímicos, mas acredito que existem alguns caminhos, especialmente em nível local. O Ceará proibiu, por exemplo, a pulverização aérea no estado. Nas eleições deste ano, os candidatos a prefeito e vereador deveriam incluir esse tema no debate eleitoral. Acho fundamental envolver a população nessa discussão. Assim, quem sabe, esse processo de conscientização possa refletir -se na escolha do novo Congresso, em 2026.

CC: Em 2019, a senhora lançou na Alemanha a versão em inglês de seu livro Atlas: Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia. Qual foi o impacto desse estudo na Europa?
LMB: Inicialmente, a maior rede escandinava de produtos orgânicos decidiu boicotar itens brasileiros. A Comunidade Europeia também foi tocada por solidariedade, em razão do grau de exposição e intoxicação da população brasileira. Entidades da sociedade civil organizada têm provocado muitos debates acerca do tema, inclusive para expor a incoerência da própria União Europeia, que continua a fabricar substâncias proibidas em seus próprios territórios para vender a países como o Brasil. O Atlas teve essa potência de abrir os olhos e jogar luz sobre esse tema na Europa.

CC: No fim de 2023, a senhora lançou novo livro, Agrotóxicos e Colonialismo Químico. O que mudou entre a primeira e a segunda obra?
LMB: Tudo piorou. Quase dobrou a população intoxicada por agrotóxicos. O número de bebês afetados também aumentou. Não tivemos avanços.

“Na Europa, a venda de agrotóxicos caiu 3% nos últimos dez anos. No Brasil, verificamos um aumento de 78%”

CC: Por que a senhora decidiu sair do País e autoexilar-se na Europa?
LMB: Saí por segurança minha e dos meus filhos. Sofri muitas ameaças. Logo após uma entrevista, recebi um e-mail de uma pessoa que se identificava como piloto, dizendo que, caso eu continuasse dando entrevistas com críticas à aviação agrícola, ele iria me mostrar “o que é segurança”. Mas o pior aconteceu em agosto de 2020, quando minha casa foi invadida, em uma clara tentativa de me assustar e fazer terror psicológico. Após três anos, esta é a primeira vez que volto ao Brasil.

CC: O uso do agrotóxico também está associado ao desmatamento?
LMB: Sim. Tenho mapas da Amazônia brasileira que mostram isso de maneira clara. Em um deles aponto os municípios com maior crescimento do desmatamento. Em outro indico aqueles com alto consumo de agrotóxicos. Quando os mapas são sobrepostos, fica evidente a correlação espacial. Hoje temos uma devastação física por meio das queimadas e do desmatamento e uma devastação química pelo uso dos agrotóxicos.

Protecionismo. Produtores europeus citam o uso indiscriminado de pesticidas para exigir barreiras comerciais aos produtos brasileiros – Imagem: Jeunes Agriculteurs

CC: A senhora voltou ao Brasil para falar sobre a necessidade de um marco regulatório internacional. O que pode ser feito?
LMB: Não existe uma regulação internacional específica para agrotóxicos. Existem três convenções internacionais – a de Basel, na Suíça, a de Roterdã, na Holanda, e a de Estocolmo, na Suécia – sobre substâncias tóxicas. Os agrotóxicos são uma parte delas. Dezesseis substâncias foram banidas no Brasil a partir dessas convenções, mas a União Europeia, que tem uma legislação própria e mais restrita, já proibiu 269 delas. Ainda assim, a UE vende substâncias que foram banidas na Europa – algumas cancerígenas, outras que provocam malformação fetal, por exemplo – para países como o Brasil. Esse modelo de agricultura é insustentável, basea­do em intensivo uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos. O que a gente quer, como meta final, é a eliminação programada dessas substâncias. Ao trilhar esse caminho, é possível estabelecer padrões mais igualitários para o mundo inteiro.

CC: Poderia dar algum exemplo?
LMB: O glifosato é o agrotóxico mais vendido no Brasil. Um de seus resíduos está presente na água potável em doses 5 mil vezes maior do que o permitido na UE. É uma insanidade. Por força de uma convenção, quando o Brasil ou qualquer outro país importa uma substância proibida na UE, ele, o importador, precisa declarar sua anuência. Ou seja, precisa dizer: “Eu sei que é proibido e mesmo assim vou comprar”. Isso tem servido para que os países europeus continuem exportando substâncias que não querem em seu próprio território, mas eles dizem: “Não estamos fazendo nada de ilegal”. Na prática, essas convenções acabam protegendo interesses que são desumanos. •

Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Risco terceirizado’

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