Política

Revelação

Achei num pequeno baú de prata um filme perdido no tempo. Era um Color Plus 200 ASA da Kodak. Pedi para a revelar e encontrei uma surpresa

Deitada no chão bem à vontade está a minha filha Sara aos dez anos de idade. Por Alberto Villas
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Nesses tempos meio virtuais meio digitais, uma surpresa. Achei guardado num pequeno baú de prata um filme perdido no tempo. Um Color Plus 200 ASA da Kodak, aquele da caixinha amarela. Acordei cedo e liguei para um laboratório no bairro de Pinheiros para saber se ainda revelavam fotografias.

– Sim, claro. Revelamos.

Quer dizer, ali em Psinheiros ainda resiste um pedacinho do meu mundo que não acabou. Aflito, peguei um táxi e fui até a Pedroso de Moraes com aquela preciosidade dentro de uma sacola de pano que costumo sair por ai.

– Só ficam prontas amanhã, duas da tarde.

Nenhum problema para quem esperou mais de vinte anos, exatos vinte e quatro, para revelar um filme. Dormi pouco durante a noite à espera do dia seguinte. Faltavam quinze minutos para as duas da tarde eu já estava na porta da loja esperando dar duas em ponto.

Peguei o pacote e sai andando pela Pedroso, olhando uma por uma aquelas fotografias. As cores vivas sumiram com o passar dos anos mas estavam lá as imagens, intactas. São fotografias de 1989. Eu tinha apenas dois filhos e estava vivendo um novo e grande amor.

Escolhi uma delas para mostrar aqui nesse site da Carta Capital, tamanha minha emoção. É essa que vocês estão vendo ai, simples, nada artística. Deitada no chão bem à vontade está a minha filha Sara aos dez anos de idade. Estamos na sala de um apartamento na Rua Aureliano Coutinho, em Higienópolis. Ela está em cima de um tapete de arraiolo, talvez o último feito por minha mãe. Orgulhosa, ela me deu de presente pra minha nova casa, pra minha vida nova. Dona Lali era a bambambam do arraiolo. Chegou a dar aulas para os moradores do Alto do Papagaio, uma morro onde lá de cima avistamos um belo horizonte.

Achei guardado num pequeno baú de prata um filme perdido no tempo. Um Color Plus 200 ASA da Kodak, aquele da caixinha amarela Achei guardado num pequeno baú de prata um filme perdido no tempo. Um Color Plus 200 ASA da Kodak, aquele da caixinha amarelaVejo na fotografia uma estante de parede inteira com discos de vinil. Identifico um do Lobão exposto à visitação pública, aquele Sob o Sol de Parador em que ele canta Azul e Amarelo.

Anjo bom‚ anjo mau
Anjos existem
E são meus inimigos
E são amigos meus
E as fadas
Fadas também existem
São minhas namoradas
Me beijam pela manhã

Ali naquela estante, caprichosamente organizados em ordem alfabética estavam todos os meus discos. De Abel Silva a Zizi Possi. Era um tempo de muito rock and roll. Tempo de ouvir e dançar no Projeto SP ao som de Marina Lima, Kiko Zambianchi, Plebe Rude, Camisa de Vênus, Eduardo Dusek, Paralamas, Inimigos do Rei, Cazuza, Barão, Ira, RPM e Ultraje. Curtíamos os Engenheiros do Hawaii numa infinita highway, os Titãs do Iê-Iê-Iê numa sonífera ilha e Kid Vinil com seu tique tique nervoso.

Observando atentamente a tal fotografia vejo enfileirados ao lado do vinil do Lobão, meus discos clássicos. Tinha uma paixão enorme por Jean Sibelius. Passava horas e horas da minha solidão entre um casamento e outro ouvindo O Cisne de Tuonela, a Tapiola, a Sinfonia número 5 em Mi Bemol. Fazendo companhia a Sibelius lá estavam também Berlioz, Bizet, Dvorák, Villa Lobos com o seu trenzinho caipira, além do som do silêncio, os materiais de construção do baiano estrangeiro Walter Smetak.

Na estante, vejo também uma garrafinha japonesa de saquê – presente do dia dos pais – uma caixinha de fósforos desenhada pelo Ziraldo, um bauzinho de cobre que trouxe de Beirute e aquele CD Estrangeiro do Caetano que fala do pintor Paul Gauguin que amou a luz da Baía de Guanabara e do compositor Cole Porter que adorou as luzes na noite dela.

Lá em cima, no cantinho, uma fotografia do meu pai. Lá embaixo, um boneco de barro e algumas  garrafas de bebidas. Identifico uma de rum que trouxe de Havana e outra de Grand Marnier. Como eu gostava de Grand Marnier com café depois do almoço! Vejo também um pacote de incenso – herança dos anos hippies – e bem no cantinho um Amigo da Onça de porcelana, presente da ex. E quase apagada pelo tempo, dependurada no meio da estante, uma máscara da Costa do Marfim comprada numa feira livre em Abidjan. Uma senhora muito idosa pegou a máscara, embrulhou num velho exemplar do Fraternité Matin e me entregou:

– Ela representa a fonte da juventude!

Minha área verde naquele pedacinho de Higienópolis não passava de uma samambaia dependurada no teto, um vaso de antúrio em cima de uma mesinha da Tok Stok que nem aparece na foto e uma árvore da felicidade cheia de brotinhos. Vejo ainda um aparelho de som Technics e na parede três quadros. O primeiro é uma gravura de Rubem Grilo, velho companheiro do jornal Opinião. O segundo, a reprodução de uma capa do Caderno 2 do Estadão assinada por Luis Antônio Giron que até hoje me orgulho de ter editado. “Epidemia de Cólera”, dizia o título de uma matéria com a banda punk Cólera que estava fazendo o maior sucesso nos países do leste europeu. E o terceiro, um retrato de Gregório Bezerra, camarada velho de guerra.

Hoje, dessa fotografia agora revelada ainda tenho a minha querida Sara, uma professora brilhante que mora em Minas Gerais e mãe da Flora, a máscara da fonte da juventude, o CD Estrangeiro e o Amigo da Onça. O retrato de Gregório Bezerra vou procurar por ai porque não tenho a menor ideia onde foi parar. Não é possível que ele tenha sumido na poeira da estrada.

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