Política

Requião: “Bolsonaro é um palhaço no picadeiro do circo nacional”

“Não basta removermos Bolsonaro e deixarmos o circo em pé, patrocinado pelo mercado financeiro e operado no momento por Guedes”, diz

Foto: Luís Renato Ferreira Foto: Luís Renato Ferreira
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Requião é o nome de uma vila portuguesa e de um indômito político brasileiro que já foi três vezes governador do Paraná, duas vezes prefeito de Curitiba, senador, para marcar profundamente a vida do seu estado e do Brasil. Requião, também chamada de Vila Nova de Famalicão, era um “centro de tecelagem na época em que a Inglaterra mandava em todo o mundo, hoje conhecida por ser de extrema pobreza, embora figure ainda como um paraíso das Ferraris, tem mais Ferraris por metro quadrado lá, na mão dos ricos, do que em qualquer outro canto do mundo”. Do lado paterno, é filho de um siciliano e de uma descendente de alemães. Do lado materno há negros, índios e portugueses, um deles talvez judeu, segundo supõe meu velho amigo ao remontar à época em que muitos cristãos-novos vieram de Portugal para dar início à história do Brasil.

O sonho de Requião repousa na ideia, já bem elaborada, de um projeto grandioso e redentor, a visar condições de independência e democracia talvez até hoje não atingidas. O projeto redentor teria o mérito de empolgar finalmente o próprio povo do Brasil. E é nutrido por alguém que, igual a outros que conversaram comigo nas últimas semanas, guia-se pelo lema de Antonio Gramsci, cético na inteligência, otimista na ação. Quando me permito esta observação, Requião avisa: “Assim o general Heleno nos prende a ambos”. O meu formidável amigo, ao entender que o país de Bolsonaro e Guedes é súcubo de um neoliberalismo já em xeque em todo o mundo, vislumbra que, nessa subserviência às vontades dos Estados Unidos e à praga de um sistema financeiro no ocaso, livrar-se do atual governo seria medida das mais acertadas.

Lá vem, entretanto, o tal de ceticismo. Requião exclui a capacidade de ação no sentido do impeachment do presidente da República por parte tanto do Congresso quanto do STF, os poderes aos quais, no caso, caberia agir. Sobre os riscos de um golpe militar, assume uma postura bastante moderada: não acredita que o Exército, na sua inteireza, concorde com a linha política definida pelo governo. Como encarar então o futuro? A saída está na formação de uma frente que reúna as forças vivas da nação que saibam compreender a necessidade da defesa da soberania nacional, na moldura de uma redemocratização traída em outros momentos por promessas vãs, depois da morte de Tancredo Neves. O interregno petista não passou da experiência de uma social-democracia “tupiniquim”. O que, por outra, implica o erro de uma esquerda disposta a admitir aliança com o mundo financeiro, ponto nevrálgico da questão, a começar pelo fato da subserviência do Banco Central aos interesses do mercado.

A chamada esquerda deveria ter ido além de metas insuficientes para fazer do Brasil o país que merece ser. A defesa da soberania nacional há de ser o objetivo, representada pela valorização do trabalho e pelo desenvolvimentismo, como se deu nos Estados Unidos de Franklin D. Roosevelt com o New Deal inspirado em Keynes. Certamente, não se trata de um comunista, como talvez suponha algum general, de pijama ou sem pijama. Trata-se de um discípulo, inesperado de certa forma, do papa Francisco, o grande estadista que combate sem trégua o Mamon, empenhado a dilatar os desequilíbrios sociais pela supremacia do dinheiro.

O impeachment

Com este Congresso Nacional, com este Centrão, com o meu partido, que é o PMDB, incondicionalmente apoiador das medidas de Paulo Guedes e Jair Bolsonaro, o impeachment congressual é muito difícil. (…) Também o Supremo Tribunal Federal está abertamente apoiando o neoliberalismo proposto pelo Guedes, a serviço dos interesses geopolíticos norte-americanos e do capital financeiro no mundo.

A crise econômica

Estamos entrando em uma crise brutal. Primeiro, pelos erros do maluco do Guedes. Chamo o Guedes de uma espécie de bugio-mirim, eu acho que ele tem um jeitinho de bugio. Se ele for para a Disneylândia com o Weintraub, este vai ser o Pateta e ele vai ser o bugio. (…) De janeiro a março, tivemos uma queda do PIB de 1,5%, sem coronavírus. Com o coronavírus pudemos ir de 8% a 11% de queda. (…) No Paraná, a confusão já começou. Na semana passada, um caminhão que carregava frangos foi assaltado em Ponta Grossa pela população faminta. Podemos voltar ao período anterior a Lula. (…) Gosto muito de Lula, mas ele fez uma social-democracia disposta à aliança com o capital financeiro. Errou por aí.

O grande projeto

Precisamos de um projeto que convença a população, devolva a esperança na possibilidade de crescer pelo trabalho, do desenvolvimento, da afirmação da nacionalidade para fulminar a dominação absoluta pelo Banco Central e pelo sistema financeiro privado. (…) Quando estava no Senado, presidindo a comissão mista de soberania nacional, mandei uma carta para todas as embaixadas afirmando que quem estava comprando empresas estratégicas brasileiras comprava de quem não podia vender. (…) Estava comprando mercadoria roubada, portanto, cometendo crime de receptação, e, mais cedo ou mais tarde, teria de devolver quanto foi comprado dessa forma receptadora, sem indenização alguma. Nós precisamos da Petrobras, do Banco do Brasil, da Eletrobras. (…) Agora enfrentamos a tentativa de venda das empresas de saneamento básico e de purificação de água, o que é crime contra o País. (…) Precisamos, na linha de Aristóteles, e mais recentemente do nosso velho amigo Guerreiro Ramos, de um projeto moderado, mas eficiente, que democratize o País e abra espaço para o crescimento, para a valorização do trabalho e para a soberania nacional. (…) Sonho com o povo escolhendo os caminhos do Brasil, da economia, da administração pública, da organização partidária. Sonho, mas com certo ceticismo. (…) Bolsonaro é um palhaço no picadeiro do circo nacional. Mas não basta removermos Bolsonaro e deixarmos o circo em pé, patrocinado pelo mercado financeiro e operado no momento por Guedes.

A presença militar

Eu não acredito que o Exército brasileiro esteja apoiando esta palhaçada. São apenas alguns generais, de pijama ou sem pijama, que estão cooptando uma parte das Forças Armadas corporativamente. (…) Se tivermos um projeto que tenha credibilidade, que seja sustentável e empolgue a população, devolvendo a esperança, eu acho que não encontraremos nenhum obstáculo colocado pelo Exército, por alguns milicos, com pijama ou sem pijama, muitos mais desnudos do que os pijamados na sua ignorância, na sua ambição pessoal e submissão aos Estados Unidos. Generais brasileiros discípulos do Olavo de Carvalho, isso é algo simplesmente inacreditável. (…) Bolsonaro é uma figura menor, uma consequência, um acidente que aconteceu no caminho dessa direita toda. Eles não gostam de Bolsonaro. (…) Agora o PSDB quer colocar freio e bridão no ridículo Bolsonaro para seguir com a reforma neoliberal que já fracassou no resto do mundo.

O MDB de Ulysses

Todo mundo sabia, naquela época, que uma frente se caracteriza por se opor a algo. A proposta daquele MDB, que não era um partido, era a derrubada da ditadura, e que depois não conseguiu se consolidar como partido político. O partido, que foi das classes populares, desligado dos interesses do grande capital, é hoje a principal base de apoio a Bolsonaro e a Guedes no Congresso. Perdeu a coluna vertebral, perdeu a força, perdeu a esperança de mudança, conforme aquele grande documento divulgado em um determinado momento, projeto desenvolvimentista que tinha de ser retomado agora, com adaptações às condições do mundo atual. Mas acho que o partido está perdido, eu não saio porque não tenho para onde ir. (…) Alguém poderia dizer: “Por que não vai para o PT?” O PT, repito, é uma social-democracia que fez aliança com o capital financeiro. A sensibilidade pessoal de Lula e sua identidade com o pessoal pobre mexeram com o Brasil. (…) A inserção dos trabalhadores no mercado de consumo e a política exterior de Celso Amorim, que Lula abraçou com os dois braços, nos deram importância no mundo, mas é uma social-democracia “tupiniquim”. Eu queria um pouco mais. (…) Só faltava ter uma frente ampla para o PT entrar pelo cano, como se deu. (…) Tirar o Bolsonaro, assino embaixo, mas não assino uma frente democrática que não questiona a exploração do trabalho. Só o trabalho produz riqueza, o trabalho e a inteligência do homem. (…). Haverá quem pergunte: “Comunista, o Requião?” Estou na linha do papa Francisco e de seus últimos discursos e encíclicas. O papa enfrenta o poder do capital financeiro, um Mamon bíblico. (…) O capital financeiro está destruindo a humanidade. É esta loucura toda de privatizar água, por exemplo. (…) Palocci é um bom exemplo, privatizou a água quando prefeito de Ribeirão Preto. Foi a primeira safadeza dele antes das outras. Já o Flávio Dino, no Maranhão, privatizou o gás e cedeu a base de Alcântara. Isso não tem importância estratégica alguma para o País, mas simbolicamente tem. (…) Assim como tem, simbolicamente, um general brasileiro ser o segundo da Força do Sul estadunidense. O que o nosso general está fazendo lá? De manhã cedo, o comandante dos EUA acorda de mau humor e manda que ele prepare o café.

Pandemia e neoliberalismo

O coronavírus é uma espécie de acelerador de incêndio, um álcool ou gasolina jogados para apagar o fogo em uma casa. (…) Nesse caos provocado pelo acelerador de incêndio pode haver uma esperança ainda, e nós temos de trabalhar para tanto. (…) O neoliberalismo está ameaçando, inclusive, o capitalismo, porque o neoliberalismo é o capital vazio, não produz coisa alguma, não produz um parafuso, a peça de uma máquina, uma roupa, ele vive do seu próprio giro, explorando países e criando uma praga chamada rentismo.

Ciro e Haddad

Você sabe o quanto aprecio Ciro Gomes, ele tem propostas excelentes. Na campanha para presidente da República, em 2018, o pessoal da minha base estava apoiando Haddad, e eu abri espaço para que os dois viessem falar com as bases populares aqui do Paraná. Haddad veio ao sindicato dos metalúrgicos, da Força Sindical, que aqui no Paraná é porreta. O auditório estava lotado, ele falou, foi embora e, uma semana depois, chegou o Ciro Gomes. O pessoal veio na minha casa dizer que não podíamos apoiar Haddad, vamos apoiar Ciro, pois o Haddad não conseguiu construir uma proposta. Agora, isso não significa que Fernando Haddad não seja um grande quadro e, com toda a sinceridade que me caracteriza e me providenciou inimigos a vida inteira, na minha opinião, ele foi um baita ministro da Educação e um precário prefeito de São Paulo. (…) Não é um quadro que se despreze, mas está, de certa forma, vinculado àquele instituto, o Insper, de Marcos Lisboa, que foi quem escreveu a “Ponte para o Futuro”, do Michel Temer. Provavelmente, seria ministro do Haddad, ou não? Então, essa é a frente ampla. Eu quero o Haddad na frente ampla. Pela história dele, pela vinculação aos interesses do PT e do Brasil, eu votaria no Haddad com uma proposta que não fosse escrita pelo Marcos Lisboa, e que não pretendesse a independência do Banco Central. (…) É fundamental que o Banco Central, como nos Estados Unidos e na Europa, ganhe total independência e não se submeta à vontade do sistema financeiro.

O destino do PT

O PT pode aprender com os erros e se recompor. (…) É um partido que tem gente boa à beça e tem os seus pecados. Eu não acho que precisa fazer autocrítica, a prática é o critério da verdade. (…) Acho, porém, essencial uma frente popular nacional democrática com a participação do PT. Trata-se de um partido com possibilidades enormes, porque ainda tem o carisma de Lula. Falta proposta, a cúpula do partido foi aquela capaz de montar um governo com cinco ministros que saíram para votar o impeachment da Dilma. (…) Mas eu, no fundo, acredito que o meu PMDB vai acordar um dia. (…) Embora o Centrão seja um dos mais horríveis círculos do inferno, ou melhor, é a capital do inferno.

De Carter para Trump

Como disse Lula outro dia, e levou um pau no Brasil inteiro, o tal do coronavírus vai acelerar esse processo desgraçadamente. Nós vamos precisar de um projeto nacional, o Brasil é grande demais para ser escravo dessa briga geopolítica, porque não é mais ideológica, não é mais comunismo e capitalismo, é domínio do comércio, no mundo inteiro, dos minerais estratégicos. É como Jimmy Carter disse outro dia numa carta a Donald Trump: nas últimas três décadas, os Estados Unidos se dedicaram a reforçar suas Forças Armadas, gastaram 300 trilhões de dólares para dominar a produção de energia no mundo, derrubar governos, sacrificar povos e avançar, enquanto a China cuidava de robotizar a sua indústria, de levantar a sua tecnologia, de construir cidades novas, como a Inglaterra depois da guerra, as famosas mill towns, e de formatar esse novo Plano Marshall que é a Rota da Seda. Não invadiu um país, não matou um líder, não fez morrer um soldado seu. Então, Donald Trump tem razão, diz Carter, de ter medo da China, mas ele deveria ter mais medo dos próprios erros que o governo americano tem cometido.

Ainda o projeto

Eu acho que retomar o desenvolvimento brasileiro que existia, como eu disse há pouco, em 1980, desenvolvimento industrial, nós paramos nos submetendo à Guerra Fria, e hoje não podemos nos submeter a uma nova Guerra Fria, que é esta guerra de domínio econômico no mundo. Nós temos de investir na tecnologia, é o exemplo que tentei expor no começo. É o que fez a Alemanha, com dinheiro dirigido para a reconstrução do País, numa crise recessiva, capital nenhum vai investir porque não tem comprador, porque não tem mercado. Logo, quem tem de investir é o Estado na infraestrutura, fazendo retomar o círculo virtuoso do desenvolvimento. Fazer o que o mentecapto do Paulo Guedes não quer fazer, que é apoiar a pequena e média empresa. Aqui no Paraná, 75% dos empregos são da pequena e média empresa. Quando fui governador, zerei os impostos para as microempresas e reduzi a 2,5% os impostos das pequenas. (…) E, a exemplo do New Deal, criei o maior salário mínimo regional do Brasil. O cara não pagava imposto, tinha de pagar 18 mil, mas não pagava nem 800 reais. Mas aí tinha dois empregados que iam ganhar o maior salário mínimo do País, reforçando o círculo virtuoso da economia, esvaziando prateleiras de lojas no interior. Temos de retomar o desenvolvimento, apostar nas ciências exatas, na engenharia e tudo o mais nas nossas escolas, além de na sociologia e na filosofia.

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