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Assembleia Legislativa aprova projeto que transfere a gestão de 200 escolas públicas para a iniciativa privada

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Ignorados. Milhares de professores protestaram contra a iniciativa – Imagem: Orlando Kissner/ALEP e QUEM TV/APP-Sindicato
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Sob ruidosos protestos, a Assembleia Legislativa do Paraná aprovou, na terça-feira 4, um Projeto de Lei que entrega a gestão de 200 escolas públicas do estado à iniciativa privada. Foram 38 votos a favor e 13 contrários. Enquanto os deputados analisavam o texto, professores e estudantes se manifestavam nas galerias. Eles ocupavam o prédio desde o dia anterior, após romperem uma barreira feita por policiais militares. Agora o texto segue para a sanção do governador Ratinho Júnior, do PSD.

No tumulto que precedeu a sessão, seguranças da Casa tentaram impedir a entrada dos profissionais da educação. Em meio ao empurra-empurra, portas de vidro da entrada principal do edifício foram quebradas, deixando dois policiais e dois manifestantes feridos. O presidente da Assembleia, Ademar Traiano, decidiu suspender a sessão e transferir a votação para o plenário virtual. Apenas os parlamentares da oposição permaneceram no local, além de educadores que, após um acordo, foram autorizados a ficar até o encerramento da análise do projeto.

A oposição apresentou 13 emendas, das quais apenas quatro foram incorporadas ao texto. O relatório final foi aprovado conforme parecer do líder do governo na Casa, deputado Hussein Bakri, do PSD. Encaminhado pelo Executivo na semana anterior, o Projeto de Lei passou sem qualquer discussão na Comissão de Educação e seguiu direto para a Comissão de Constituição e Justiça, que o aprovou a toque de caixa, na véspera do feriado de Corpus Christi. Denominado “Programa Parceiro da Escola”, prevê a implantação de um modelo de gestão administrativa e de infraestrutura privada em 200 escolas públicas estaduais, distribuídas em 110 municípios.

“O governador transferiu a gestão escolar para a iniciativa privada, que passará a cuidar, inclusive, da contratação de professores e do estabelecimento das metas a serem atingidas por esses colégios”, explica o deputado estadual Requião Filho, ferrenho opositor da iniciativa. “Ser contra esse projeto não é pauta com bandeira partidária ou perseguição de sindicalistas, mas um posicionamento que parte de uma análise técnica, séria e responsável, dentro do que prevê a nossa legislação”, acrescenta o petista.

Por meio de nota, organizações da sociedade civil ligadas à educação mencionam uma “equivocada e impossível separação entre trabalho administrativo e pedagógico”. Elas alertam ainda para um possível favorecimento dos colégios escolhidos para o programa na destinação de recursos públicos, visando convencer a sociedade de que a privatização da gestão escolar é a solução. “Financiar desigualmente um conjunto de escolas que ficará sob a responsabilidade de um ‘plano de sucesso’ elaborado, coordenado e implementado pelo setor privado, cujos princípios se assentam no mercado, é considerar a educação como uma mercadoria qualquer que pode ser negociada e vendida”, criticam. Vinte entidades assinam a nota, entre elas a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação e a Sociedade Brasileira de Ensino de Química.

O governo diz que, nas 110 cidades escolhidas para receber o programa, “foram observados pontos passíveis de aprimoramento em termos pedagógicos, projetando, inclusive, a diminuição da evasão escolar”. O novo modelo será instalado após consulta pública à comunidade escolar. O texto acrescenta que “a remuneração das empresas contratadas será estabelecida de acordo com a média de custo de referência da rede. O custo do programa aos cofres públicos segue uma incógnita. A gestão Ratinho Jr. informa apenas que “não terá impacto no orçamento do estado”.

O governo Ratinho Jr. ainda pediu a prisão de líder sindical após a categoria descumprir uma ordem judicial para encerrar a greve

Esse é um dos pontos levantados por nove deputados em uma representação apresentada ao Supremo Tribunal Federal, na vã tentativa de suspender a tramitação do projeto. A oposição argumenta que não há estudos sobre o impacto orçamentário e alerta que a contratação de empresas deixará as finanças das escolas “não privatizadas” estranguladas. Já o governador Ratinho Jr. acusa o sindicato dos professores de semear “fake news sobre o projeto, que já acontece em outros países para ajudar os diretores a ter mais liberdade para trabalhar”. O governador acrescentou que a greve da categoria, contra a implantação do programa, é “política” e “ilegal”.

Desde 2023, a Secretaria Estadual de Educação desenvolve o projeto piloto em dois colégios: Aníbal Khury, em Curitiba, e Anita Canet, em São José dos Pinhais. Edson Mosko, professor de Filosofia contratado temporariamente em um Processo Seletivo Simplificado, viveu na pele essa experiência. Ele diz ter sido convencido a aderir à iniciativa com promessas jamais cumpridas. “Antes, eu trabalhava em cinco colégios. Prometeram que, neste novo modelo, iria lecionar em apenas uma escola e com salário melhor”, relata. Entusiasmado, chegou a fazer campanha a favor do projeto junto à comunidade escolar, mas não tardou a perceber o engodo. Empresas que vieram de outros estados trouxeram seus professores. Houve, ainda, a contratação de tutores para atuar em sala de aula. “Pagavam bem menos ao monitor, em torno de 1,3 mil reais, para economizar na contratação de professores. E, pasme, muitos desses monitores eram estudantes, talvez a maioria. Seriam estagiários, mas atua­vam como professores. Não houve qualquer avanço pedagógico com o programa.”

Esta não é, porém, a denúncia mais grave. Segundo ele, a empresa contratante pressionava os professores a alterar as notas dos alunos, sempre para melhor, e abonar as faltas. Quem não concordava ficava “malvisto”. O objetivo era inflar os indicadores de desempenho da escola. “No fim do ano, houve demissão em massa. Dispensaram principalmente aqueles que não concordavam em manipular as notas e as faltas. Aconteceu comigo e com vários outros professores. Em 20 de ­dezembro, faltando poucos dias para o Natal, fomos todos demitidos.”

Ameaçada por um pedido de prisão apresentado pela Procuradoria-Geral do Estado, sob a alegação de descumprimento de ordem judicial pelo fim da greve, a presidente do sindicato dos professores, Walkiria Mazeto, diz que a mobilização foi necessária para denunciar os riscos da proposta. Ao cabo, a categoria decidiu encerrar a paralisação na quarta-feira 5, sem deter o projeto. Ainda assim, Mazeto acredita que o movimento cumpriu seu objetivo. “A sociedade precisava entender a gravidade do que foi aprovado.” •

Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Reles mercadoria’

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