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Relatório expõe graves violações aos direitos humanos em presídios do RS

Um comitê das Nações Unidas exigiu que o Brasil restabeleça o seu Mecanismo Nacional de Combate à Tortura

Relatório expõe graves violações aos direitos humanos em presídios do RS
Relatório expõe graves violações aos direitos humanos em presídios do RS
Inferno. Além das condições insalubres, o documento lista denúncias de maus- -tratos, constrangimento ilegal e tortura - Imagem: G.Dettmar/CNJ e Cacá Nedel
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Alice (nome fictício) amamentava uma criança e estava grávida de outra quando teve a prisão temporária decretada pela Justiça do Rio Grande do Sul. Isolada em um cubículo do Instituto Penal de Passo Fundo, a única refeição recebida nos dois primeiros dias de reclusão foi oferecida por uma solidária detenta da cela vizinha. Depois, a gestante passou a se alimentar apenas de pão e leite compartilhado por outras presas através de um buraco escavado na parede. Comia com as mãos, no chão, sem qualquer higiene. Quando pediu às carcereiras uma toalha para se enxugar do banho, foi orientada a permanecer de pé, sem roupa, “até secar”. Foram 16 dias de humilhações, tortura psicológica e severa restrição alimentar. Aterrorizada, ela ainda se recorda das angustiantes súplicas de socorro vindas das galerias do presídio. “Escutávamos os gritos lá de noite”, diz. Ao ser libertada da masmorra, estava 8 quilos mais magra. Semanas depois, sofreu aborto espontâneo. O bebê não resistiu ao suplício imposto à mãe.

O relato foi coletado pelo então juiz-corregedor Alexandre de Souza Costa Pacheco, hoje titular na 10ª Vara Criminal de Porto Alegre, e figura em um relatório de 273 páginas elaborado pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Rio Grande do Sul em janeiro. As denúncias de graves violações aos direitos humanos nos presídios gaúchos foram trazidas ao seu conhecimento pela Frente dos Coletivos Carcerários do estado e do Conselho da Comunidade de Passo Fundo. Ao longo da reunião, foram descritas “situações de abuso de autoridade, constrangimento ilegal, maus-tratos e tortura contra ­pessoas privadas de liberdade”. Um verdadeiro show de horrores que agora está sob os cuidados do juiz da Vara de Execução Criminal Regional de Passo Fundo, Alan Peixoto de Oliveira, que já determinou a apuração dos fatos.

Submetida a severa privação alimentar por 16 dias, uma detenta do Instituto Penal de Passo Fundo sofreu aborto

Na avaliação de Pacheco, o primeiro magistrado a se debruçar sobre as denúncias, o Estado não presta à população carcerária assistência suficiente e adequada. “Essa omissão configura ato atentatório à dignidade da pessoa privada da liberdade e pode ensejar o reconhecimento da tortura e tratamentos cruéis e degradantes”, avalia. O cumprimento da pena, acrescenta o juiz, não é apenas para punir quem infringe a lei, também deve visar a ressocialização do condenado. Não por acaso, a taxa de retorno ao sistema prisional por pessoas que cumpriram pena privativa de liberdade no Brasil é superior a 70%. “Enquanto não rompermos com a cultura do ‘quanto pior, melhor’ ou de que ‘bandido bom é bandido morto’, continuaremos, como sociedade, a fomentar a criminalidade”, diz Pacheco.

Com mais de 750 mil presos, o Brasil é o terceiro país que mais encarcera no mundo. O crescimento constante da população carcerária não tem, porém, inibido a criminalidade. Ao contrário, a superlotação das penitenciárias e os maus-tratos impostos aos detentos apenas favorecem o recrutamento de novos “soldados” pelas facções criminosas.

Pacheco acredita, porém, ser possível modificar esse panorama. Para tanto, seria preciso um trabalho de permanente capacitação, qualificação e valorização dos agentes públicos que atuam no sistema prisional. Além disso, reforça, é preciso combater a cultura da violência e estimular a participação da sociedade no debate de propostas voltadas à ressocialização dos presos. “Mais cedo ou mais tarde, o condenado vai voltar ao convívio da sociedade”, lembra o magistrado. “A superlotação das penitenciárias está na gênese da maioria dos problemas que afetam o sistema carcerário.”

Em mãos. Suzanne Jabbour, da ONU, recebeu o relatório sobre os presídios gaúchos – Imagem: E.U. Neighbours South

A deputada Maria do Rosário, ex-ministra dos Direitos Humanos, recebeu o relatório sobre a situação dos presídios do Rio Grande do Sul, e destaca que as denúncias não causaram surpresa. “São muitos os relatos de tortura, tratamentos cruéis ou degradantes no sistema prisional gaúcho. Recentemente, recebi uma carta da Frente dos Coletivos Carcerários denunciando, entre outras perversidades, a retirada de aparelhos de ventilação das celas durante o verão. Devido à superlotação dos presídios, as infecções por Covid-19 e ­Influenza cresceram de forma descontrolada.”

As violações aos direitos humanos persistem porque nem o governo ­estadual nem a União cumprem as suas obrigações, acrescenta a parlamentar gaúcha. “No meu estado, nem sequer foi constituído o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”, observa a petista. O órgão de fiscalização tem sofrido um processo de desmonte em nível nacional. Por decreto, Jair Bolsonaro exonerou 11 peritos de uma só tacada.

Na maioria dos casos, a punição dos agentes penitenciários envolvidos em casos de tortura esbarra na complexidade­ de processos administrativos ou judiciais, sujeitos a diversos incidentes, prazos e recursos, bem como na insuficiência estrutural dos órgãos públicos para a apuração disciplinar. Além disso, o depoimento de um preso sempre tem valor menor que a versão apresentada por servidores públicos. Não bastasse, os denunciantes permanecem sob a custódia dos próprios agressores, sujeitos a retaliações de toda espécie, inclusive castigos físicos.

Um comitê das Nações Unidas exigiu que o Brasil restabeleça o seu Mecanismo Nacional de Combate à Tortura

Em visita ao Brasil na primeira semana de fevereiro, o Comitê de Prevenção à Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanas ou Degradantes da ONU reuniu-se com a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. O objetivo da visita foi avaliar os retrocessos no combate à tortura no País. Nos últimos três anos, o governo brasileiro tem sofrido duras críticas internacionais em suas políticas de direitos humanos. Nesse período, de acordo com relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal, as denúncias de torturas e maus-tratos no sistema prisional da capital da República cresceram 3.600%. Dados do Conselho Nacional de Justiça informam que, dos 56 mil casos de tortura relatados em audiências nos últimos seis anos, menos de 5% foram efetivamente investigados pelo Poder Público.

Por meio de nota, a delação da ONU conclamou o governo federal a cumprir suas obrigações internacionais. “Pedimos que o Brasil abandone sua decisão de desmantelar seu Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura”, destacou ­Suzanne Jabbour, chefe da delegação. Rosário entregou ao Comitê das Nações Unidas uma cópia da carta elaborada pela Frente dos Coletivos Carcerários do Rio Grande do Sul, com denúncias sobre tortura, violência e terror nos presídios gaúchos. A parlamentar petista é autora de um projeto na Câmara para sustar um decreto assinado por Bolsonaro em 2019, que inviabiliza o trabalho do órgão de fiscalização. “Precisamos restabelecer plenamente o combate à tortura no Brasil.”

A ex-ministra acrescenta que, no Brasil,­ a lógica encarceradora impera em amplos setores sociais, que, embalados por política de ódio, não enxergam outra saída a não ser a lotação dos presídios. “Países desenvolvidos possuem experiências de ressocialização e combate ao crime que permitem diminuir as taxas de violência e promover o respeito mútuo.” Se nada for feito, alerta, o País continuará enxugando gelo em um círculo vicioso que retroalimenta a violência, com a vitimização dos jovens pobres, pretos e periféricos. Estamos a um passo do cadafalso social. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impress

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