Política
Reino cindido
Com Bolsonaro no banco dos réus, as divisões no universo evangélico afloram, e Lula tem a oportunidade de buscar uma reaproximação


O ocaso de Jair Bolsonaro tem causado fissuras em diversos pilares do que se convencionou chamar de bolsonarismo. Com o ex-capitão no banco dos réus, são perceptíveis sinais de debandada em setores de sua base ideológica, como os militares e o agronegócio. Essas divisões parecem ser, contudo, particularmente profundas no segmento que, até pouco tempo, tinha a aparência de um monólito impenetrável: os evangélicos conservadores.
Divididas quanto à aproximação com o governo Lula, rachadas na eleição para a liderança da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e com algumas de suas lideranças populares se engalfinhando publicamente sobre a anistia aos golpistas do 8 de Janeiro, as principais denominações do setor começam a realinhar suas tropas e discursos, cientes de que continuarão sendo um importante e disputado ativo político nas próximas eleições presidenciais. Segundo um levantamento da consultoria Mar Asset Management, com base em dados do IBGE e da Receita Federal, os evangélicos representarão 35,8% da população brasileira em 2026.
O pavor de perder a ascendência política sobre a maior parte desse contingente tem tirado do sério o pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e um dos mais ferrenhos “homens de fé” a integrar as fileiras bolsonaristas. Após apostar suas fichas e fracassar terrivelmente na organização do ato de Bolsonaro na orla de Copacabana – ele prometia 1 milhão de pessoas e compareceram 18,3 mil, segundo pesquisadores da USP – Malafaia partiu para o ataque contra aqueles evangélicos que estariam virando as costas para o “Mito”. O alvo na última semana foi o deputado Marcos Pereira, presidente do Republicanos e bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus. Após afirmar em entrevista que o debate sobre a anistia é “sensível” e sua discussão “não deveria acontecer agora”, Pereira foi chamado de “cretino” pelo pastor nas redes sociais: “Não é de hoje que ele faz o jogo do governo Lula e quer agradar o Supremo Tribunal Federal”.
A anistia para os golpistas é um dos temas que provocam divergências
Diante de tamanha injúria, Pereira comparou Malafaia a um histórico religioso com grande influência política: “É uma espécie de Rasputin tupiniquim. Chega a espumar pela boca em suas manifestações cheias de cólera. Ele precisa parar de induzir à guerra”. O afastamento entre as duas igrejas aconteceu nas eleições de 2014 após o líder da Assembleia de Deus anunciar que não votaria no hoje deputado federal Marcelo Crivella, então candidato a governador do Rio de Janeiro e, segundo Malafaia, um “pau-mandado de Edir Macedo”, fundador da Universal.
Nas últimas eleições municipais, Malafaia declarou apoio à reeleição do prefeito Eduardo Paes, do PSD. O gesto desagradou Bolsonaro, que apoiou o deputado Alexandre Ramagem, do PL, um dos indiciados pelo STF por participar da trama golpista que incluía os assassinatos do presidente Lula e do vice-presidente Geraldo Alckmin, além de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo. Se o pastor tem trajetória errática, o movimento simultâneo da Universal e do Republicanos, que ocupa o Ministério dos Portos e Aeroportos com Silvio Costa Filho, é calculado, pois parte da bancada do partido deseja seguir com Lula em 2026. Para isso, espera colher os dividendos políticos da aprovação da PEC, de autoria de Crivella, que amplia isenções tributárias para templos e igrejas e pode ser votada em abril, segundo o presidente da Câmara, Hugo Motta, também integrante do partido.
O presidente deve focar nos fiéis, e não nos líderes de grandes templos, avaliam especialistas – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
Motta fez uma reunião com Crivella e com o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, para acelerar o processo. A construção da relação do governo com a presidência da Câmara é vista por ambos os lados como uma potencial aproximação entre Lula e o Republicanos. Já a Universal, que nas eleições de 2022 publicou em seus jornais que “cristão não vota na esquerda”, agora modulou o discurso e afirma que seus fieis “não podem ser nem de esquerda nem de direita”.
O racha na cúpula evangélica marcou também a eleição para a liderança da Frente Parlamentar Evangélica, vencida pelo deputado Gilberto Nascimento, do PSD, ligado à outra grande denominação, a Assembleia de Deus de Madureira (ADM). Na votação realizada em fevereiro, a igreja se dividiu entre o vencedor e o deputado Otoni de Paula, do MDB, que conquistou um terço dos votos dos 178 deputados e senadores votantes. De Paula ganhou protagonismo desde que, em um movimento apoiado pelo líder da ADM, pastor Abner Ferreira, apoiou no ano passado a candidatura de Paes à Prefeitura do Rio: “Não sou bolsonarista nem lulista, sou um homem de diálogo. A frente tem bandeiras definidas, mas nossos partidos vão do PL ao PSOL, então é preciso equilíbrio”, afirma o deputado emedebista, dando o novo tom de parte da FPE no Congresso Nacional.
Para 48% dos evangélicos, o governo Lula é ruim ou péssimo
Nascimento é delegado da Polícia Civil e foi um dos fundadores da Frente em 2003. Para chegar à liderança pela primeira vez, teve o apoio de Malafaia e de outros nomes de peso dentro e fora do Congresso, como o pastor Robson Rodovalho, líder da igreja Sara Nossa Terra, e o deputado Sóstenes Cavalcante, líder do PL na Câmara. Procurado por CartaCapital para falar sobre as divisões na FPE e a possibilidade de aproximação com o governo Lula, Nascimento não respondeu até o fechamento desta edição. Já Otoni de Paula promete seguir com seu “trabalho de distensão” do setor, mesmo após a derrota: “Quiseram dizer ao eleitor evangélico que quem vota de um lado do espectro político vota em Deus e quem vota no outro lado vota no diabo. Isso não existe, a igreja não tem lado político”.
Deputado federal pelo PSOL, o pastor Henrique Vieira afirma que o embate público revela que o setor evangélico da sociedade não é um bloco monolítico e que o bolsonarismo enfrenta desgaste: “Mesmo dentro da FPE há diferenças políticas. Existe uma ala mais à direita e até extremista, mas também há um setor que, mesmo conservador, topa algum nível de diálogo com o governo e tem senso democrático. A própria frente não dá conta da pluralidade que existe no campo evangélico”. Vieira diz que a disputa se faz necessária: “Ódio, violência, preconceito, intolerância, produção da mentira em massa, tudo isso tão vinculado à extrema-direita, é incompatível com a natureza do evangelho. Há uma disputa de valores que precisa ser feita em torno de democracia, cidadania, respeito à cultura de paz, à autonomia das igrejas e à liberdade de consciência, expressão e voto de cada irmão e irmã”.
Coordenadora do Laboratório de Estudos em Política, Arte e Religião da Universidade Federal Fluminense, Christina Vital observa que a FPE é integrada por religiosos de diferentes denominações e partidos e que o potencial de fissura sempre esteve latente: “A Frente teve dois presidentes em um só ano para tentar acomodar suas correntes internas, até que a mais recente disputa pela liderança deu o que falar. Ficou claro que ela não é constituída só por religiosos interessados em resgatar valores ameaçados na sociedade, como gostam de dizer, mas também por um grupo de políticos interessados na defesa de suas empresas e partidos e na renovação de seus mandatos”. Evidentemente, emenda a especialista, “há os que se dedicam ao resgate moral ou à justiça social, mas estes não têm poder interno”.
Para o pastor Ariovaldo Ramos, uma das mais importantes lideranças do setor evangélico progressista, a aparente coesão da cúpula conservadora sempre foi circunstancial: “Eles sempre se engalfinharam pelo poder, para ver quem dava o tom na bancada, nunca tiveram a coesão que vendiam, sempre houve muito problema de bastidor. Com a presença hegemônica da extrema-direita, essa coesão apareceu, mas de forma oportunista”, diz o coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. Também integrante do grupo, Valéria Zacarias ressalta que o discurso monolítico não era real: “O bolsonarismo criou essa narrativa e todos embarcaram. O universo evangélico é fragmentado, múltiplo, plural, sem a figura de uma liderança única ou central. Criar esse discurso monolítico favoreceu o grupo antidemocrático que vê na política um instrumento de poder controlador”.
A jornalista avalia que o campo progressista não percebeu a armadilha e se deixou distanciar dos evangélicos. “É extremamente necessário ter a compreensão desse trânsito religioso brasileiro, porque cada vez mais pessoas se declaram evangélicas no País. Ainda que o número de fiéis não tenha ultrapassado o de católicos, temos uma cultura influenciada pelas massas periféricas que se reconhecem dentro do pentecostalismo ou das religiões tradicionais evangélicas.” Zacarias acrescenta que a esquerda “vem perdendo a cada dia” a capacidade de dialogar com este segmento da sociedade: “A grande questão é como dialogar com essa cultura nacional que, de fato, é evangélica. É preciso compreender o movimento e inserir valores que são muito caros para nós, como a própria democracia, a participação social, o envolvimento, a tolerância, o respeito”.
Crivella saiu em defesa de Marcos Pereira após Malafaia insultar o presidente do Republicanos, partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus – Imagem: Redes Sociais
No governo Lula, conquistar os evangélicos é uma obra em progresso. Uma pesquisa do Datafolha divulgada antes do Carnaval mostrou que 48% dos evangélicos consideram a gestão do petista ruim ou péssima, enquanto na população em geral essa percepção atinge 41% dos entrevistados. Nas eleições de 2022, Lula teve 31% dos votos válidos no segmento, mesmo patamar obtido por Fernando Haddad quando foi candidato à Presidência quatro anos antes. A rejeição ao PT, explica Christina Vital, teria começado com Dilma Rousseff: “O contexto político dos primeiros governos petistas não era de valorização central dos atores evangélicos porque as questões sociais e econômicas se impunham na agenda. No início do primeiro mandato de Dilma, o ovo da serpente se apresentou no episódio de suspensão do material didático do MEC de combate à homofobia. Isso escalou até o governo Bolsonaro, que empoderou política e economicamente o segmento e seus parlamentares de modo antes nunca visto em nossa República”.
Para quem prefere enxergar o copo parcialmente cheio, 21% dos evangélicos dizem considerar o desempenho de Lula bom ou ótimo. É esse filão que o governo pretende explorar: “Essa não é uma simples tarefa, mas vem sendo realizada com muito compromisso, entendendo o governo que grande parte das pessoas, principalmente mulheres negras atendidas pelos programas sociais, são ligadas às igrejas evangélicas ou assistidas por elas”, afirma a deputada federal Benedita da Silva, que é evangélica e uma das principais interlocutoras do PT com o setor. A parlamentar diz que o presidente faz “um movimento contínuo de aproximação” iniciado em seu primeiro ano de governo através do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, que articula com as igrejas a ampliação do trabalho feito por elas nos territórios através de ações sociais: “Nesse contexto, o diálogo é ampliado, além das conversas com as principais lideranças, sempre entendendo o papel que as igrejas cumprem hoje no Brasil”.
Para Ariovaldo Ramos, não houve nesses dois anos e três meses de governo uma aproximação significativa com o setor: “As tentativas foram aparentemente infrutíferas. Primeiro, porque dentro da esquerda evangélica também não há essa coesão imaginada. Além disso, os partidos que estão no poder acreditaram que seu contingente evangélico interno seria suficiente para fazer essa ponte, mas isso não aconteceu”. Outro petista escalado por Lula para fazer o meio-campo entre o governo e os evangélicos é o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias, para quem o governo tem conseguido avanços importantes sem fazer alarde: “Tudo está sendo feito com cuidado, não há um movimento artificial para conseguir 2 ou 3 pontos porcentuais a mais nas pesquisas. A ideia não é tirar Bolsonaro do púlpito e colocar Lula, e sim estabelecer um diálogo com o setor”.
O governo negocia uma nova rodada de isenções tributárias para igrejas
Na segunda-feira 24, o presidente em exercício do PT, Humberto Costa, se reuniu com integrantes do Núcleo de Evangélicos do partido para fazer um balanço da aproximação com o setor. “Queremos aprofundar a relação do PT com aqueles que organizam suas bases comunitárias”, disse o senador. Em seu relato, o coordenador da setorial, Gutierres Barbosa, mostrou que ainda há muito por fazer: “É preciso estabelecer um canal de diálogo mais fino, no sentido da formação política e dos processos de comunicação que precisam ser aprimorados”.
Com a reforma ministerial, Lula tem a oportunidade de nomear um ministro evangélico mais diretamente ligado às igrejas, o que facilitaria o trabalho de aproximação. “Há evangélicos renomados de esquerda e alinhados ao governo que podem ser levados à categoria ministerial. Certamente, isso mexerá com os fiéis, porque eles cultivam o desejo de serem reconhecidos na sociedade como protagonistas e parceiros na construção da Nação. Bolsonaro conseguiu fazer de forma eficiente os evangélicos se sentirem parte do governo. Se Lula tiver essa possibilidade, é um passo significativo”, diz o pastor Ariovaldo.
A expectativa entre os parlamentares evangélicos de esquerda é grande. Henrique Vieira diz que o governo Lula “pode fazer mais e melhor” para enfrentar o extremismo de direita na base evangélica. “O diálogo tem que ser travado com a base, que é popular e majoritariamente periférica. O governo não pode ser refém nem da FPE nem das grandes lideranças, mas estabelecer canais diretos de relação, animando pautas como justiça social e fazendo também uma disputa de valores”. Já Benedita da Silva diz que a exposição pública das disputas entre os principais líderes conservadores do setor faz com que a sociedade evangélica “amplie a compreensão sobre esse grupo e seu comportamento”, o que também pode acarretar uma mudança do entendimento político do setor sobre o País em um futuro próximo.
Progressistas, o deputado Henrique Vieira e o advogado-geral da União, Jorge Messias, facilitam o diálogo com o mundo evangélico – Imagem: Daniel Estevão/AGU e Bruno Spada/Agência Câmara
Para os especialistas, o território para a ação de convencimento político está colocado, basta ocupá-lo. Valéria Zacarias diz ser preciso pensar estrategicamente em maneiras de alcançar todo o universo evangélico. “Há espaço para discutir com os mais diversos grupos de fiéis, de jovens, mulheres, mulheres negras”, enumera. Christina Vital ressalta o movimento crescente de líderes evangélicos sem igreja e que tem milhões de seguidores na internet: “Isso torna ainda mais precária a relação desses antigos coronéis da fé com a base religiosa”.
Experiente, Ariovaldo Ramos afirma que uma estratégia de aproximação bem-sucedida forçosamente terá de passar por uma compreensão por parte do governo de que os evangélicos constituíram uma nova cultura, um novo jeito de ser. “É gente com vernáculo próprio, com categorias de pensamento exclusivas e o governo não conseguiu achar o caminho para essa comunicação mais efetiva. Conversar com os evangélicos demanda investimento em promover meios de diálogo, mas o governo também não conseguiu fazer isso.” •
Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital, em 02 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Reino cindido’
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