Política
Refém das facções
O Nordeste só conseguirá conter a escalada de violência com atuação articulada entre entes federados, avalia José Luiz Ratton


Quatro dos cinco estados mais violentos do Brasil estão no Nordeste – Bahia, Ceará, Pernambuco e Alagoas –, assim como as dez cidades mais violentas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025. A região registra 33,8 assassinatos por 100 mil habitantes, índice superior à média nacional (20,8) e ao verificado no Sudeste (13,3), berço das maiores facções criminosas do País: o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho.
Professor do Departamento de Sociologia da UFPE e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança na mesma universidade, José Luiz Ratton analisa, em entrevista a CartaCapital, as causas da tragédia nordestina. Idealizador do “Pacto pela Vida”, programa que reduziu em 40% os homicídios em Pernambuco entre 2008 e 2013, ele atribui o agravamento do cenário à disputa territorial entre diversas organizações criminosas, ligadas ou não ao PCC e ao CV, combinada à resposta errática dos governos estaduais. Como alternativas, Ratton defende a constitucionalização do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e a reforma do sistema penitenciário brasileiro.
CartaCapital: Por que o Nordeste está no topo do ranking de violência?
José Luiz Ratton: Os motivos variam entre os estados, mas, de forma geral, a expansão econômica desordenada no Nordeste desde os anos 2000 abriu espaço para o crescimento de mercados ilegais, especialmente o narcotráfico, com grupos locais e oriundos do Sudeste disputando seu controle. O conflito eventual entre essas organizações, motivado pelo controle desses mercados e territórios, somado à resposta fragmentada, errática e violenta dos governos estaduais, com suas polícias, ajuda a explicar por que a violência cresceu tanto nos estados nordestinos.
A fragmentação dos grupos criminosos e a resposta errática do Estado figuram entre as causas da tragédia, afirma o sociólogo da UFPE
CC: Qual é o peso do PCC e do CV no Nordeste? Como as facções criminosas locais convivem com essas organizações de capilaridade nacional?
JLR: Algumas facções locais funcionam como franquias do CV ou mantêm ligações com as “sintonias” do PCC. Esses grupos podem estar associados de forma pacífica ou em conflito, a depender da conjuntura nacional dos mercados de drogas. Observa-se também que, em estados como Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Bahia, há organizações locais que igualmente disputam territórios e mercados de forma violenta entre si, mas estabelecem alianças relativamente pacíficas com o PCC e o CV. As oportunidades geradas pelas diferentes capacidades repressivas das forças policiais – que variam de estado para estado – podem tanto favorecer o aumento da violência, como reação à atuação policial, quanto facilitar a migração desses grupos pelas fronteiras estaduais, ampliando suas presenças na região.
CC: O PCC e o CV exercem alguma hegemonia na região?
JLR: A presença do PCC e do CV varia de estado para estado. Em alguns casos, essas facções atuam apenas como fornecedoras de drogas e armamentos – especialmente o PCC. Em outros, estabelecem alianças ou travam guerras pontuais com facções regionais. Essas organizações locais, por sua vez, frequentemente se fundem ou se fragmentam, o que dificulta a sua consolidação. É difícil considerar que tenham estruturas organizacionais duradouras ou com a mesma escala das facções de alcance nacional.
CC: O que explica a escalada da letalidade policial na Bahia?
JLR: O caso da Bahia é gravíssimo: os índices de homicídios e de letalidade policial figuram entre os maiores do Brasil. É importante destacar, porém, que a violência policial também é muito elevada no Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Pará. O controle e a redução do crime, na Bahia e no Brasil, dependem de mecanismos internos e externos às polícias, no sentido de impedir que as próprias organizações estatais encarregadas do combate à criminalidade se tornem produtoras de violência. As forças policiais precisam estar sob o controle civil e democrático dos governadores, não podem naturalizar essa forma violenta de atuação na ponta, especialmente nas periferias e áreas pobres das grandes cidades brasileiras.
Bahia. Os índices de homicídios e de letalidade policial figuram entre os maiores do Brasil – Imagem: iStockphoto
CC: O Ceará vem sofrendo com guerras de facções já há algum tempo. O que está por trás desse conflito?
JLR: Minha percepção é de que as relações entre diferentes grupos armados no Ceará, em um mercado de drogas altamente fragmentado – somadas à resposta reativa e desarticulada do sistema estadual de segurança pública –, ajudam a explicar os altos índices de violência dos últimos anos. A presença de vários grupos locais, aliada à atuação de facções ligadas ao CV e ao PCC, compõe um cenário que favorece a sucessão de conflitos violentos no estado.
CC: Diferentemente de outros estados nordestinos, Pernambuco não tem um histórico consolidado de facções criminosas. No entanto, está entre os estados mais violentos do País. Por quê?
JLR: Pernambuco lidera os rankings de violência no Brasil desde o fim dos anos 1970. A exceção ocorreu entre 2009 e 2013, quando uma política de segurança integrada – o Pacto pela Vida – foi implementada, e o estado registrou uma redução de cerca de 40% nas taxas de homicídio. No entanto, como o projeto não foi institucionalizado e dependia da liderança do governador Eduardo Campos (morto em um desastre aéreo em 2014), sua descontinuidade, em um contexto de mercados ilícitos altamente fragmentados, possibilitou o retorno das altas taxas de homicídio.
“O Susp deve ser constitucionalizado, para que o fluxo de recursos não fique condicionado às contingências da política”, avalia
CC: Quais são as alternativas para reduzir a violência no País, em especial no Nordeste?
JLR: A segurança pública precisa estar no centro das prioridades nacionais, com uma atuação coordenada e articulada entre os entes federados: União, estados e municípios. O Sistema Único de Segurança Pública precisa ser constitucionalizado, para que o fluxo de recursos não fique condicionado às contingências da política e das diferentes gestões. O governo federal precisa coordenar os esforços para integrar a prevenção e a repressão qualificada à criminalidade, combinando o uso intensivo da inteligência policial com mecanismos abrangentes de prevenção ao crime e à violência, com a participação efetiva de estados e municípios. Além disso, e isso não é algo secundário, o sistema prisional precisa ser reformado e humanizado.
CC: A segurança pública é uma das principais bandeiras políticas da extrema-direita, que foca na repressão e na defesa do armamento da população civil. Como o senhor vê esse debate e por que o campo progressista tem dificuldade em apresentar propostas eficazes nessa área?
JLR: Como no plano das atribuições constitucionais a segurança pública é uma obrigação dos estados, historicamente o governo federal e os municipais pouco têm feito na área. A aprovação da PEC da segurança é um primeiro passo para criar uma estrutura de incentivos que obrigue a União a investir e coordenar um Sistema Único de Segurança Pública capaz de articular os entes federados na tarefa de controlar e reduzir o crime e a violência. Tanto a esquerda quanto a direita apresentam discursos simplificadores em relação ao crime. A esquerda precisa oferecer algo mais do que ampliação das políticas sociais, que, apesar de necessárias, não são suficientes para reduzir a criminalidade. A resposta da direita também é limitada: mais polícia e mais repressão. O afrouxamento das regras de controle de porte e posse de armas pode provocar um aumento de diversos tipos de violência. O Brasil necessita de políticas públicas que integrem os entes federados, respeitem as especificidades regionais, disponham de financiamento sustentável e combinem inteligência policial com prevenção da violência, além de garantir o uso proporcional e legal da força. Para tal, é preciso que o governo federal lidere, de forma efetiva, permanente e sustentável, a construção e continuidade de um Plano Nacional de Redução da Violência, com foco na redução dos homicídios e com participação ativa dos estados e municípios. •
Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Refém das facções’
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