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Quem tem medo da PF?

O PL Antifacção aprovado na Câmara é um ataque direto à principal instituição policial do Brasil

Quem tem medo da PF?
Quem tem medo da PF?
Em família. Não só os deputados bolsonaristas comemoraram. Os verdadeiros líderes do PCC, CV e demais facções têm motivos para gargalhar – Imagem: Zeca Ribeiro/Agência Câmara
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A aprovação do chamado PL Antifacção, em 18 de novembro, pela Câmara dos Deputados extrapola o âmbito de uma revisão legislativa e traz graves retrocessos que, na prática, desmontam instrumentos basilares de investigação e protegem os interesses do crime organizado. Embalado no discurso político, ideológico e eleitoral do endurecimento de penas como forma de combater a criminalidade, com seis relatórios diferentes, o secretário de Segurança de São Paulo licenciado do cargo, o bolsonarista Guilherme Derrite, elaborou um monstrengo jurídico, ocasionando uma derrota para a segurança pública e uma vitória para as facções criminosas.

A proposta original, enviada pelo presidente Lula e construída meticulosamente ao longo de seis meses sob a coordenação do ministro da Justiça, Ricardo ­Lewandowski, partia de um eixo estratégico inteligente e moderno: atacar o financiamento das organizações criminosas. Um projeto esmerado, com ponto focal no andar de cima do crime, justamente onde se encontram os cabeças das quadrilhas e seus aliados de colarinho branco. Por isso, previa o confisco de bens e o bloqueio de fluxos financeiros ilícitos. A versão aprovada, entretanto, altera drasticamente essas diretrizes, solapando o âmago da proposta. O desmonte da política de descapitalização das organizações criminosas desarma o Estado de instrumentos direcionados a golpear o patrimônio ilícito.

A criação de uma “ação civil autônoma” para o perdimento de bens, em substituição aos instrumentos cautelares ágeis do texto original, é uma farsa jurídica. Na prática, ela só acrescentará morosidade, insegurança jurídica e pulverização dos procedimentos, atrasando o confisco e reduzindo os recursos destinados à PF. É inaceitável o enfraquecimento deliberado da Polícia Federal, mediante um verdadeiro desmonte orçamentário ao retirar recursos do Fundo Nacional de Aparelhamento da Polícia Federal e de outros fundos vitais, como o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen). Foi um ataque direto à capacidade operacional da PF, a principal instituição policial do País, asfixiando financeiramente suas investigações de alcance nacional e interestadual.

Há mais pontos gravíssimos. O projeto criou brechas legais que serão amplamente exploradas pelos advogados dos criminosos. A substituição do tipo penal “Organização Criminosa Qualificada”, bem delineado no projeto do governo, por conceitos vagos e inéditos como “domínio social estruturado” e “organização ultraviolenta”, é uma porta aberta para a impunidade. Esse tipo de improvisação conceitual enfraquece a política criminal, confunde operadores do Direito e mascara o objetivo real: desfigurar a proposta técnica e consistente do Executivo, substituindo-a por um amontoado de conceitos vazios e dispositivos contraditórios. Em resumo, um caos jurídico que só favorecerá os advogados dos bandos criminosos, com recursos para protelar processos e até mesmo inviabilizar condenações, criando um caos interpretativo nos tribunais.

Enquanto o crime organizado atua em rede, com operações integradas em nível nacional e internacional, o PL aprovado na Câmara fortalece a estadualização das ações de segurança. Quando reduz a capacidade de articulação do Ministério da Justiça e da Polícia Federal, o projeto conduz ao isolamento e à fragmentação das operações. Deu-se um presente para facções como o PCC e o Comando Vermelho, que operam justamente explorando as lacunas e a falta de coordenação entre as forças estaduais. Tentou-se ainda subordinar a PF a interesses localizados, retrocedendo à prática da República Velha, de cem anos atrás.

Diante de tantos retrocessos, uma pergunta não pode deixar de ser feita:  é mera coincidência que um projeto que enfraquece a Polícia Federal seja aprovado justamente no momento em que as investigações da entidade atingem a Faria Lima e escancaram as relações perigosas entre política e crime? O fato é que operações de grande impacto, como a Carbono Oculto, que investigou a máfia dos combustíveis ligada a grandes grupos econômicos e políticos, e as investigações em torno do Banco Master acenderam um sinal de alerta em setores poderosos com presença no Congresso.

Se a proposta de Derrite estivesse em vigor, mais de 1 bilhão de reais em bens do crime organizado não teriam sido confiscados em operações recentes, tampouco o combustível de navios retidos pela Receita Federal sob suspeita de envolvimento com atividades criminosas.

É inevitável citar o exemplo emblemático do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, citado em investigações da Operação Carbono Oculto. Ficou patente o desconforto dele, e de políticos de seu círculo, com uma PF autônoma e forte. A pressa em desidratar o PL Antifacção na Câmara parece fazer parte de uma estratégia para proteger grupos poderosos atingidos por investigações recentes. Uma espécie de reedição da PEC da Blindagem, rechaçada pela sociedade brasileira.

Os números mostram a eficácia da estratégia original do governo Lula. Desde 2023, as ações integradas de segurança, com a PF à frente, retiraram 19,8 bilhões de reais das mãos de criminosos, o maior prejuízo financeiro já imposto ao crime no País. O número de operações da Polícia Federal cresceu 80% desde 2022. É justamente esse sucesso que incomoda.

O PL Antifacção com o texto original, somado à PEC da Segurança Pública, buscou sustentar e ampliar esses avanços, asfixiando financeiramente as facções e modernizando a integração das forças de segurança. O substitutivo de Derrite aprovado pela Câmara vai, porém, na direção oposta. Por isso, a bancada do PT votou contrariamente à proposta, por entender claramente os riscos que ele representa.

É dever de todos rechaçar veementemente esse retrocesso para restabelecer no Senado o texto original do governo Lula. O Senado tem a responsabilidade e o dever de rejeitar o PL aprovado e instituir um marco legal que, de fato, fortaleça o Estado no combate à criminalidade, atacando-a em seu ponto mais sensível: o bolso. •


*Deputado federal (PT-RJ) e líder da bancada do partido na Câmara dos Deputados.

Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Quem tem medo da PF?’

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