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Psicanálise e positivismo

Reflexões a respeito das críticas estéreis e avessas à contemporaneidade da disciplina

Psicanálise e positivismo
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Imagem: iStockphoto
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O discurso positivista, ao pretender tornar-se um discurso da verdade, desconhece a divisão entre saber e verdade. Mostra uma face implacável ao tentar destituir a subjetividade que implica um saber. A ciência positivista não implica um discurso, não implica um laço social. Já a psicanálise constitui-se em um laço social e um saber, que inclui o próprio sujeito da ciência.

A transmissão e a prática da psicanálise na formação de psicanalistas estimulam uma interlocução permanente com outros campos do saber que deixaram sua marca enquanto ruptura epistêmica, transgressão e subversão, desde o período pré-socrático. O corte epistêmico freudiano incidiu sobre a subjetividade de uma época e continua a incidir como discurso analítico que se interpõe aos obstáculos e se opõe às “patogenias” que afetam o corpo ou tecido social pela segregação, discriminação e desigualdade social. “O inconsciente é uma hipótese necessária e legítima” que se institui no “inconsciente” de Freud. Faz-se ao sujeito um convite a reencontrar sua divisão entre saber e verdade, e construir por extensão o que venha a se extrair. Cada análise feita por Freud mostra a importância que ele dava às palavras enunciadas por seus pacientes. Este saber no inconsciente é “um saber insu em si mesmo”, dirá Lacan. A prioridade é dada à linguagem. O analista favorece a emergência desse saber pela via da interpretação e o analisante aprende em análise a ler seu inconsciente, buscando a causa de seus sintomas.

No que consiste a revolução do método freudiano? A constituição de uma experiência analítica tem como primeira condição uma lei de não omissão que promove no nível do interesse, do reservado ao notável, tudo aquilo que “se compreende por si”, o cotidiano e o comum. Como segunda condição adota-se a lei de não sistematização que atribui uma presunção de significação a qualquer fragmento de lembrança do sujeito em análise, seja em sonhos, pressentimentos, fantasias, devaneios, lapsos de linguagem e de ação. Essas regras da experiência, isoladas por Pichon, comparecem em Freud em uma só: a lei da associação livre.

O dado dessa experiência é a linguagem. Pode-se tornar psicologizante quando o psicólogo atende um paciente como um sujeito do conhecimento e trabalha somente sobre ideias, o pensamento, uma ideologia, um campo de ideias. O psicanalista sabe que se trata de uma experiência de linguagem e se situa como interlocutor pela escuta, somente intervindo sobre o campo da palavra e da linguagem dirigidas a ele no exercício de uma função quando pontua, escande, intervém sobre um dizer do analisante. Entende que a linguagem, antes de significar alguma coisa, significa alguma coisa para alguém. O que o sujeito diz pode “não ter nenhum sentido”, mas o que ele diz contém um sentido. É no movimento feito pelo sujeito ao tentar responder a uma questão para ele fundamental que a escuta do psicanalista se dirige. Na suspensão desse movimento se compreende o sentido do discurso. Para exercer essa prática a contento, com rigor e ética, são necessários análise ­pessoal extensa, longo período de supervisão e de reuniões clínicas e longa experiência de participação em jornadas teórico-clínicas.

A direção do tratamento consiste em fazer com que o sujeito aplique a regra analítica sem pensar nela. Desde as diretrizes iniciais, a direção do tratamento não se formula em uma linha de comunicação unívoca. Há um tempo inicial no qual o relato do paciente se reduz à sua verdade. Quanto ao manejo da transferência, a liberdade do analista se vê alienada pelo desdobramento sobre sua pessoa e ninguém ignora que aí se deve buscar o ­segredo da análise. Certo é que os sentimentos do analista somente têm lugar nesse jogo na posição de “morto” e que, ao ressuscitá-lo, o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz. Eis por que o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática, menos ainda em sua política.

A transmissão e a prática na formação de psicanalistas estimulam uma interlocução permanente com outros campos do conhecimento

A interpretação em Freud denuncia uma tendência, uma força, uma pressão constante que se denomina Trieb, diferente de um instinto. O frescor da descoberta de Freud é de que o Trieb implica o advento do significante. A pulsão freudiana nada tem a ver com o instinto, a libido em Freud é uma energia passível de uma quantimetria em que só são reconhecidos alguns quanta de constância. Sua coloração sexual como inscrita no que há de mais íntimo em sua natureza é ­cor-de-vazio: suspensa na luz de uma hiância. As pulsões mitificam o real que produz o desejo. As identificações orientam-se pelo desejo sem que haja satisfação da pulsão. A pulsão divide o sujeito e o desejo por um objeto que a causa, tal é a estrutura da fantasia. Freud, ao atender seus casos clínicos, trabalhava escutando os significantes sem ainda ter acesso aos estudos da linguística que teorizam a articulação entre significante e significado. O real da pulsão que angustia é mediado pela articulação de significantes.

Nenhum indicador serve para mostrar os efeitos da interpretação quando não se admite radicalmente um conceito da função do significante que capte onde o sujeito se subordina à função a ponto de ser subornado pelo significante. A interpretação para decifrar a diacronia das repetições inconscientes deve introduzir na sincronia dos significantes que constituem as repetições algo que possibilite sua tradução para que se leia além do inconsciente.

A divisão experimentada pelo sujeito é uma divisão entre o saber e a verdade, em que se estabelece um modelo topológico: a banda de Moebius de dupla inscrição, consciente e inconsciente, que situa topologicamente a marca cunhada pelo traço unário como inscrição do sujeito na realidade psíquica pelo recalque originário. O nó borromeano é o recurso que se adota para examinar o movimento próprio da dimensão psíquica que faz cadeia de significantes em um buraco (trou), causa de um “troumatisme” para, então, metonimicamente reduzir e vir a dissolver a fixidez do sintoma e seus efeitos.

Quanto ao que ocorre com a ciência, associada à tecnologia, e sua prodigiosa fecundidade, há que se interrogar no que a ciência que não se deixa questionar se sustentaria, pois que da verdade como causa ela não quer-saber-nada, na medida em que se apresenta como a própria verdade. A psicanálise, ao contrário, acentua seu aspecto de causa material, de ­moterialismo, incentiva a interrogação permanente de sua prática em “intensão e extensão”. Assim se qualifica a originalidade do campo psicanalítico como ciência em sua permanente interlocução com os outros campos de saber, fazendo laço social. •


*Autora do livro Psicanálise, uma Experiência do Inconsciente (Editora ExLibris).

Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Psicanálise e positivismo’

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