Privado ou Privada

Um dia ainda escrevo uma crônica que comece assim: Um dos mais graves problemas do Brasil é que grande parte de seus políticos transformaram a coisa pública em privada

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Um dia ainda escrevo uma crônica que comece assim: Um dos mais graves problemas do Brasil é que grande parte de seus políticos transformaram a coisa pública em privada.

Depois de um sorriso mordaz, que é o meu, cometida alguma traquinagem, continuaria por aí em fora. Então, para minha surpresa, receberia uma carta comentando um aspecto da crônica e confesso aos leitores que isso se daria pela primeira vez, ou seja, receber uma carta comentando uma crônica minha.

E a carta, escrita naquele modo antigo, em letras finíssimas e bordadas no papel, letras femininas das antigas, me diria: “Meu caro senhor colunista: Ontem à noite, estando eu no apartamento de um jovem erudito, e ao ler-lhe sua coluna, fez-me ele parar a leitura e, com ar de deboche, disse-me que este calembur já é bastante antigo.”

Para não cansar os leitores, interrompo aqui a carta, apesar dos florilégios com que termina.

Uma semana mais tarde (minha coluna é hebdomadária), voltava eu ao assunto, mas por vias tortas, que a retidão de há muito me parece quebrada. E voltava com a evidente vantagem de responder-lhe por via pública, com a força que tal via me oferece, enquanto aquela boa senhora, talvez senhorita, ou quiçá ainda “amiga de um erudito” (mordacidade com o fito de desqualificar minha oponente), como dizia, enquanto minha oponente utilizara-se da via privada. Sem o sentido que se possa por malícia dar à palavra.

Minha cara e insolente missivista: Que o trocadilho é velho, sei-o eu muito bem.”


(E aqui uma pausa para explicações: primeiro, ao imitar o estilo de minha leitora, saiu-me este hiato horroroso – “sei-o eu”, vício condenado por quantos professores de estilo conheço; segundo, “calembur” é uma palavra de origem francesa, razão por que alguns esnobes a consideram mais nobre do que nosso velho “trocadilho”.) aí sim, arrebentei com o erudito e demonstrei meu amor ao vernáculo nacional.

E continuaria:

Mas exatamente por ser velho, não me ocorria o nome de quem primeiro o usou no momento em que me pressionavam por telefone desde a redação para que entregasse minha crônica. E por não me lembrar do autor, também não lhe deixei expresso meu profundo reconhecimento pela colaboração.”

E mais uma vez interrompo a missiva com o único propósito de não entediar o leitor.

Entretanto, devemos continuar, caso contrário não chegaremos à moral da história. Pois aquela senhora virtual (vamos chamá-la assim por absoluta ignorância de quem possa ela ser, se é que não seria apenas uma personagem, no sentido da literatura, claro) apesar de apenas amiga de um erudito, simboliza uma boa parcela de nossa intelectualidade. Tão apegados à forma que esquecem o conteúdo, a ponto de muitas vezes confundirem o acessório com a essência.

O pior de tudo é que enquanto alguns ficam descobrindo o plágio de um calembur, boa parte dos políticos continua fazendo suas necessidades na privada em que eles transformaram a coisa pública. Conheço muito prefeito que se julga, se julga, não, sente-se dono da prefeitura e de seus equipamentos. Pior ainda, a maioria dos munícipes concorda com o edil.

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