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Prevenir para não remediar

Cientistas, organizações civis e políticos se mobilizam por um plano nacional de adaptação climática

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Juntar os cacos. Eldorado do Sul é uma das cidades varridas do mapa. Em Porto Alegre, começa o trabalho de limpeza após baixar o nível do Rio Guaíba – Imagem: Alex Rocha/Prefeitura de Porto Alegre e Gustavo Mansur/GOVRS
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O cenário apocalíptico produzido pelas enchentes no Rio Grande do Sul é uma reprodução, em larga escala, das tragédias em anos recentes no litoral paulista, na Baixada Fluminense, no sul da Bahia e em Recife. Em todos os casos, há centenas de mortes, milhares de desabrigadas e desalojados e cidades inteiras debaixo d’água. Pior: as cidades brasileiras não estão preparadas para lidar com os efeitos das mudanças climáticas, o que aumenta o risco de desastres frequentes e cada vez mais impactantes. De acordo com um estudo da Associação de Pesquisa Iyaleta, apenas 13,09% dos municípios têm planos de contenção de desastres. Dados divulgados pelo governo federal revelam, por outro lado, que o Brasil possui quase duas mil cidades suscetíveis a calamidades relacionadas a deslizamentos de terras, alagamentos, enxurradas e inundações.

Bahia, Espírito Santo, Pernambuco, Minas Gerais e Acre são os mais suscetíveis à crise climática, com risco maior nas regiões costeiras, diante da iminência do aumento do nível do mar. “A vulnerabilidade é uma realidade na grande maioria das cidades. Ter um tipo de estrutura mínima possível não é suficiente para estar apto à adaptação climática. Não adianta falar de infraestrutura sem ter recursos alocados. O que a gente vê normalmente é esses municípios operando na gestão de desastre, decretando calamidade durante o evento ocorrido, mas sem orçamento para prevenção. A cultura é de trabalhar a gestão de desastre, é de dizer ‘aconteceu, não é responsabilidade minha, e eu preciso de dinheiro agora porque a população está morrendo’. Essa é a cultura da gestão pública”, critica o geógrafo Diosmar Filho, pesquisador da Iyaleta e um dos coordenadores do estudo Adaptação Climática: Uma Intersecção Brasil 2022-2024.

Apenas 13% das cidades brasileiras êm planos de contenção de tragédias

O especialista defende um plano de adaptação à crise climática como política pública. “Criar fundo de recursos públicos e privados e não colocar em prática uma prevenção para adaptação climática financia novos desastres”, alerta. Segundo o Greenpeace Brasil, com base na Lei Orçamentária do Rio Grande do Sul, o governo gaúcho destinou para este ano apenas 7,6 milhões de reais a ações da Defesa Civil, dos quais 5 milhões estão previstos para prevenção, resposta, emergência e reconstrução do estado. Quando se considera uma população de quase 11 milhões de habitantes, o valor destinado é inferior a 1 real por morador. “Temos um governador que faz o mesmo que fez o Bolsonaro. Além da responsabilidade pelas mudanças na legislação, essa hecatombe é fruto da falta de manutenção nos diques para evitar enchentes. A única coisa barata, fazer a manutenção, não foi feita”, critica Francisco Milanez, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural.

Com mais de 200 municípios atingidos pelas enchentes e mais de 160 mortes, o Rio Grande do Sul se prepara para a reconstrução. Em algumas áreas, a água começou a baixar e os moradores começam a voltar para casa. O governo federal destinou até o momento mais de 50 bilhões de reais ao estado, valor que inclui operações de crédito, antecipação de benefícios sociais e suspensão temporária do recolhimento de tributos pelas empresas afetadas. O presidente Lula anunciou ainda um voucher de 5,1 mil reais a mais de 200 mil famílias atingidas pelas chuvas. “O que estamos fazendo aqui espero que sirva de modelo para um outro padrão de relacionamento entre os entes federados. O problema de uma cidade é um problema do governo federal, é um problema da nação”, discursou Lula durante visita a São Leopoldo, um dos municípios atingidos pelas chuvas.

Não é de hoje. As enchentes em São Sebastião, litoral paulista, deixaram 64 mortos. Em Recife, o saldo foi de 140 vítimas

Outras medidas anunciadas pelo governo federal são a criação de uma linha de crédito específica à compra de casa própria e a criação do Ministério Extraordinário de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, sob o comando do ministro Paulo Pimenta, que ficará responsável pela articulação com o estado e os municípios. O Rio Grande do Sul irá receber 1,15 bilhão de dólares do Banco dos BRICS para financiar obras de infraestrutura urbana e rural e outros 746 milhões de dólares do Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe, destinados a ações de mitigação dos efeitos das inundações. Além disso, a União suspendeu por três anos a dívida do governo gaúcho, uma economia de 11 bilhões de reais, além de zerar os juros da dívida, equivalente a mais 12 bilhões de reais.

Em recente evento em Fortaleza de bancos de mais de 20 países, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, propôs a elaboração de um programa de reconstrução das estruturas públicas e de desenvolvimento dos países latino-americanos diante de possíveis catástrofes do clima. O anúncio foi feito durante a 54ª Reunião Anual da Associação Latino-Americana de Instituições Financeiras de Desenvolvimento. A mobilização para apoiar as vítimas do Rio Grande do Sul acontece desde os primeiros sinais da tragédia e o trabalho de voluntários tem feito a diferença diante dos estragos.

O governo gaúcho ignorou os alertas. Em âmbito federal, o orçamento para prevenção caiu quase 70% desde 2014

Como resultado desse engajamento, mais de cem entidades da sociedade lançaram a campanha Auxílio Calamidade Climática. O objetivo é pressionar o governo a criar uma política pública permanente de socorro às vítimas de tragédias, não apenas para o Rio Grande do Sul. “Nossa proposta envolve recurso individualizado para atingidos acima de 18 anos no valor de 1,4 mil reais por dois anos e 150 ­reais para crianças e adolescentes”, explica José Moroni, do Instituto de Estudos Socioeconômicos. No caso do Rio Grande do Sul, a campanha propõe um repasse adicional único de 20 mil reais para os agricultores de pequeno porte. Também em resposta à tragédia gaúcha, o Senado aprovou o Projeto de Lei 14.129, da deputada Tábata Amaral (PSB), com regras gerais para a formulação de planos de adaptação às mudanças climáticas. A proposta aponta diretrizes para a gestão e redução do risco climático, a partir da adoção de medidas econômicas e socioambientais. Aprovada pelos deputados anteriormente, o PL será apreciado novamente pela Câmara por causa das alterações promovidas pelos senadores. O deputado ­Lindbergh Farias, do PT do Rio de Janeiro, também apresentou uma proposta que trata da prevenção de acidentes naturais e mitigação dos efeitos das mudanças do clima. O projeto de lei complementar prevê que os gastos reservados à prevenção e mitigação dos efeitos da crise climática devem ficar de fora da meta fiscal do governo.

Segundo Faria, a verba para despesas de prevenção está pulverizada, o que dificulta a implementação de uma política pública estruturada e concisa, prevalecendo ações pontuais sem garantia de recorrência e continuidade. Em 2014, acrescenta, o orçamento para a área foi de cerca de 8 bilhões de reais, caiu para 1,5 bilhão em 2021 e, atualmente, está em 2,6 bilhões. Para o ambientalista e diretor do Centro Brasil no Clima, Guilherme Sirkis, um plano de adaptação vai além de ações de mitigação dos eventos climáticos. “Quando se fala de adaptação, são vários setores diferentes, desde medidas simples, por exemplo pintar casas de branco que precisam ter o maior conforto térmico, até obras bem caras de infraestrutura, com baixo retorno de investimento, como construção de diques, contenção de encosta e ampliação de faixa de areia de praia”, descreve. “Com a crise climática anunciada pelos cientistas há décadas, os eventos extremos, com chuvas intensas e graves secas, se tornarão cada vez mais fortes e frequentes. O mundo mudou para pior e não haverá retorno em relação às crises climáticas anteriores. Podemos tentar atenuar um pouco, reduzindo com vontade e rapidamente nossas emissões de gases de efeito estufa, que no Brasil isso tem muito a ver com o controle do desmatamento”, salienta ­Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima.

Solução. O Parque Orla Piratininga, em Niterói, segue ideias simples e eficazes

Crítica do aumento da produção de petróleo no País, Araújo ressalta: “Temos de reorientar a atuação governamental e das empresas para que se pautem pelo paradigma da adaptação à mudança do clima. É preciso muita recuperação de vegetação nativa, restauração de matas ciliares e da vegetação que protege encostas, afastamento de potencial construtivo de perto da água nas cidades (rios e mar), investimentos expressivos em drenagem urbana. A reconstrução pós-desastre ­custa muito mais caro do que planejar e adaptar. Precisamos de sistemas de alerta que sejam eficazes nas emergências e planos de contingência elaborados previamente”.

Apontada como a 16ª cidade mais vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas no mundo, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, Recife viveu situação semelhante a esta do Rio Grande do Sul dois anos atrás, quando contabilizou 140 mortos em decorrência das fortes chuvas que caíram sobre a capital pernambucana. Como forma de evitar uma repetição do desastre, a prefeitura assinou contrato com o Banco Interamericano de Desenvolvimento no valor de 2 bilhões de reais. “Teremos obras em todas as áreas de morro e macrodrenagem nas bacias dos rios para mitigar os alagamentos da cidade”, diz o prefeito João Campos. No Rio de Janeiro, um levantamento realizado pela Casa Fluminense mostra que, na região metropolitana, um a cada cinco lares está localizado em áreas de alto risco de inundação e deslizamento. “Quando a gente fala disso, não é sobre criminalizar a população que vive nessas áreas. É sobre a tarefa do Poder Público de ofertar moradia popular digna e segura em áreas que não estejam sob risco. É planejar e ofertar moradia popular com acesso à infraestrutura urbana: saúde, transporte, saneamento, educação…”, defende Larissa Amorim, coordenadora executiva da Casa Fluminense. “É preciso entender a situação como um todo. O problema é sistêmico e extremamente complexo, porque estamos lidando com variáveis socioecológicas, econômicas, tecnológicas, interesses diversos em várias escalas, e os interesses do meio ambiente jamais são vistos”, critica Cecília Polacow Herzog, da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza e presidente da Sociedade para Ecologia Urbana.

Reconstruir uma área atingida custa mais do que planejar e adaptar

Herzog defende soluções baseadas na natureza como um processo de mitigação da crise climática. Apontado como um dos mais inovadores e completos parques multifuncionais do Brasil, o Orla Piratininga Alfredo Sirkis, em Niterói, é um caso bem-sucedido de soluções baseadas na natureza. São 35 mil metros quadrados de alagados construídos que, além de realizar o tratamento das águas antes de sua chegada à lagoa, propiciam um ambiente adequado para o retorno da biodiversidade à região, lazer e contemplação para a população local. “A natureza tem as soluções, a gente precisa apenas ouvi-la e, rapidamente, veríamos uma resiliência ampliada e, possivelmente, não teríamos nem enchente, ou, se tivesse, seria algo menor, não arrasando cidades”, opina Milanez. “Recuperar uma mata ciliar, uma mata de encosta, não custa nada. É só cercar. É só não deixar entrar bicho ali para quebrar ou comer as árvores que estão nascendo e que os passarinhos semeiam. Nós temos a maior biodiversidade do mundo. Em um, dois anos, está uma mata primitiva que já ajuda a reter muita coisa.” •


PROTOCOLO DE INTENÇÕES

AGU assina acordo com big techs para combater a desinformação em meio à tragédia gaúcha

Defesa. Messias, da AGU, contra as fake news – Imagem: Renato Menezes/AGU

A Advocacia-Geral da União e as principais plataformas digitais com operação no País assinaram, na segunda-feira 20, um protocolo de intenções para combater a desinformação em meio ao desastre climático no Rio Grande do Sul. Inspirado nos memorandos voluntários assinados pelas big techs com a Justiça Eleitoral no ano passado, o documento estabelece o compromisso das companhias na disseminação de “informação íntegra, confiá­vel e de qualidade” sobre a situação no estado, diz um comunicado da AGU. “Além disso, as empresas colaborarão, na medida de suas capacidades técnicas e institucionais, para tomar medidas com relação a conteúdos que violem a integridade das informações sobre a tragédia climática”.

O protocolo foi assinado pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, e por representantes de Google/YouTube, Meta, ­TikTok, X (ex-Twitter), Kwai e LinkedIn. O governo poderá encaminhar diretamente para as empresas, por meio de canal de comunicação próprio, posts identificados como desinformativos. Após recepcionar o material, as plataformas devem analisar se as publicações violam os seus termos de uso e, conforme o caso, aplicar sanções, como remoção de conteúdo ou suspensão de contas.

“Este é um modelo que a gente sempre apostou, o modelo do diálogo”, ressaltou o advogado-geral da União durante a assinatura do protocolo em cerimônia realizada na sede da AGU em Brasília. Com vigência de 90 dias, o acordo prevê ainda que as plataformas facilitem o acesso dos usuários a informações oficiais e confiáveis sobre a tragédia gaúcha, incluindo a prestação de serviços públicos no estado. Do mesmo modo, as empresas poderão incluir o assunto em ações próprias de verificação de fatos ou estabelecer parcerias com agências especializadas nessa atividade.

A proliferação de fake news relacionadas ao desastre é alarmante. De 1° a 17 de maio, 35% dos pedidos registrados no serviço de checagem de informações do Senado, o “Senado Verifica”, tinham ligação com a tragédia. As denúncias incluem boatos sobre desvio de doações, restrições à circulação de caminhões com donativos, número excessivo de mortos e declarações falsas de celebridades. Com imagens catastróficas de desastres naturais ocorridos em anos anteriores e até mesmo de outros países, os mitômanos de plantão chegam a dar orientações à população contrárias ao que é divulgado pelas autoridades, atrapalhando o socorro às vítimas.

Resta saber se as plataformas vão, de fato, cumprir com o acordado. Por se tratar de um protocolo de intenções, não há qualquer sanção prevista caso as empresas se recusem a adotar medidas concretas para combater a desinformação.

Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Prevenir para não remediar ‘

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