Política
Povo de terreiro
O estado mais branco do Brasil também tem a maior proporção de adeptos de religiões de matriz africana
A Bahia é aqui”, provoca Baba Diba de Iemanjá, presidente do Conselho do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul. Desafiando o senso comum, o estado com a maior proporção de moradores autodeclarados brancos do País (78,4%) também concentra o maior porcentual de praticantes de religiões de matriz africana (3,2%), segundo o último Censo do IBGE. O índice, que duplicou de 2010 a 2022, é o dobro do registrado na Bahia (1,6%) e mais que o triplo da média nacional (1%). Em algumas cidades gaúchas, os adeptos chegam a quase 10% da população. Apesar do protagonismo crescente, a invisibilidade e a intolerância persistem.
Baba Diba é líder da comunidade Ilê Asé Iyemonjá Omi Olodô, no Bairro São José, Zona Leste de Porto Alegre. Sanitarista graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ele conduz há 42 anos o terreiro fundado por sua bisavó, em 1930, que acolhe cerca de 300 famílias. “Os números confirmam a nossa força, mas ainda falta o reconhecimento”, diz. “O respeito e os direitos precisam sair do discurso e chegar à prática.”
A presença negra e a força das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul remontam ao período colonial. Entre o fim do século XVIII e meados do XIX, a economia gaúcha girava em torno das charqueadas, estabelecimentos rurais voltados à produção e exportação de carne salgada, concentrados em Pelotas e Rio Grande, na fronteira com o Uruguai. O charque chegou a responder por 60% da riqueza provincial, sustentado pela exploração da mão de obra de africanos escravizados. Com o fim do tráfico negreiro, em 1850, e a abolição da escravidão, em 1888, o ciclo entrou em declínio. A concorrência do charque uruguaio e argentino, mais barato e produzido em maior escala, mergulhou o setor em crise.
Sem benefícios ou indenização, os negros libertos foram lançados à própria sorte e migraram em busca de trabalho, sobretudo em direção a Porto Alegre. A capital em expansão oferecia empregos nas docas, obras públicas e serviços urbanos. Os recém-chegados levaram suas tradições, cultura e religiões, marcando o início de uma nova fase da presença negra na cidade. Nos bairros periféricos surgiram os primeiros núcleos formados por ex-escravizados e seus descendentes, que ajudaram a moldar a cultura, a economia e a identidade porto-alegrense, introduzindo práticas, ritmos e expressões religiosas ainda presentes nos terreiros da cidade.
“Mas essa história sempre foi marcada por preconceito e intolerância contra a nossa comunidade”, lamenta Baba Diba. O sacerdote lembra que o Brasil herdou uma tradição predominantemente cristã, primeiro sob o domínio da Igreja Católica e, nas últimas décadas, marcada pelo avanço das denominações evangélicas neopentecostais. “A liberdade de crença é recente. Só a partir da Constituição de 1988, que consolidou o Estado laico, o cenário começou a mudar. Antes disso, nossas práticas eram perseguidas, criminalizadas e tratadas como feitiçaria.”
O preconceito, acrescenta o babalorixá, também está incrustado na formação escolar. “As instituições de ensino não estão preparadas para acolher crianças pretas e de terreiro. A educação brasileira foi construída sobre bases cristãs e eurocêntricas”, observa. “Essa exclusão cultural ajuda a explicar por que a Lei 10.639, sancionada em 2003, ainda não é plenamente aplicada.” A norma tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas públicas e privadas e instituiu o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro.
O porcentual é o dobro do registrado na Bahia e representa mais de três vezes a média nacional
Passadas mais de duas décadas, a aplicação da lei segue precária. Faltam formação adequada para professores, material didático e, sobretudo, vontade política. A ausência de uma abordagem consistente sobre a contribuição africana e afro-brasileira reforça a exclusão e perpetua o racismo estrutural no sistema educacional.
A vulnerabilidade dessa população ficou evidente nas enchentes de 2024. A tragédia teve cor, endereço e classe social: a maioria das vítimas era negra, moradora das periferias, e perdeu casas, bens e espaços sagrados. Segundo o Conselho do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul, perto de 650 templos foram atingidos pelas águas e até hoje não receberam ajuda ou recursos públicos. “Durante a distribuição de alimentos e remédios, muitos de nossos irmãos foram discriminados em abrigos e igrejas cristãs. Alguns foram rejeitados apenas por usar guias no pescoço”, relata Baba Diba.
Diante do abandono, a comunidade reagiu. Cozinhas solidárias foram organizadas nas áreas mais afetadas, lideradas por mães e pais de santo. As doações, recolhidas em casas de famílias negras, fortaleceram os laços comunitários. “Foi ali que se reafirmou o sentido mais profundo de ser de terreiro: cuidar uns dos outros, dividir o pouco que se tem”, diz o líder religioso. Mas o medo permanece. “Quando nuvens se formam e a chuva ameaça cair, o povo negro treme. Ele sabe que, se a catástrofe se repetir, será o primeiro a sofrer e o último a ser lembrado.”
Apesar das dificuldades, as religiões de matriz africana continuam em expansão. Estima-se que existam em torno de 65 mil terreiros no Rio Grande do Sul e entre 15 e 20 mil apenas em Porto Alegre. Das dez cidades brasileiras com maior proporção de praticantes, nove estão em território gaúcho. Entre as 20 com maior presença, 18 são do estado. Viamão, Cidreira e Rio Grande lideram o ranking, com índices acima de 9% da população. Em números absolutos, Porto Alegre é a terceira capital com mais adeptos – quase 75 mil – atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro, que têm populações muito superiores à gaúcha.
Para a pedagoga Tanara Forte Furtado, mestra em Geografia e doutora em Educação pela UFRGS, o crescimento das religiões de matriz africana expressa uma busca por novas formas de viver e se relacionar. “O projeto capitalista fracassou. A natureza está sendo destruída, e nossas religiões mantêm uma ligação profunda com o meio natural. Elas ensinam outro modo de existir, mais integrado e solidário”, afirma. Segundo ela, o que rege essas crenças não é a espiritualidade, mas a ancestralidade, o vínculo com os antepassados, a natureza e a comunidade. Tanara acredita que essa expansão reflete a necessidade de pertencimento. “As pessoas buscam sentido e encontram nas religiões afro-brasileiras uma alternativa baseada na coletividade, no acolhimento e na solidariedade. É um sistema de relações em que ninguém se sente só, e é por isso que elas crescem.” •
Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Povo de terreiro’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.


