Política
Por água abaixo
Nos últimos 20 anos, dezenas de países reestatizaram seus serviços de saneamento, mas Tarcísio de Freitas pretende fazer o contrário


A Sabesp, empresa de capital aberto responsável pelo abastecimento de água e tratamento de esgoto de 28,4 milhões de paulistas, está na mira do governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, para ser privatizada até 2024. Recentemente, no Fórum Econômico de Davos, o ex-ministro de Infraestrutura de Jair Bolsonaro anunciou que “o saneamento é a bola da vez”, e manifestou a intenção de aproveitar os primeiros meses de gestão para se desfazer das ações da empresa – o governo de São Paulo é o maior acionista, com 50,3% do capital. A tarefa foi confiada à secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, Natália Resende, que foi seu braço direito em Brasília e tem larga experiência em rifar empresas públicas.
“Vamos estudar a desestatização da Sabesp, o que abarca a privatização. Se esta for a melhor opção, vamos caminhar para isso”, anunciou a secretária, em recente entrevista ao Valor Econômico. O alegado objetivo é acelerar a universalização do saneamento no estado, mas parece improvável que uma empresa privada vá, de fato, investir na expansão da rede de água e esgoto nas regiões mais pobres, exatamente aquelas que permanecem sem acesso a esses serviços essenciais.
Perto de completar 50 anos, em junho de 2023, a Sabesp está presente em 375 municípios paulistas, é a segunda maior companhia de saneamento da América Latina. “A empresa fecha no azul todos os anos e o governo beneficia-se dos dividendos distribuídos. Não faz o menor sentido a alegação de que a Sabesp está perdendo valor de mercado”, comenta José Faggian, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente de São Paulo (Sintaema). De fato, entre janeiro e setembro de 2022, o lucro líquido foi superior a 2,47 bilhões de reais. Os dados do último trimestre do ano passado ainda não foram divulgados.
Com 28,4 milhões de clientes, a Sabesp teve um lucro líquido de 2,47 bilhões de reais entre janeiro e setembro de 2022
Para evitar a venda, o sindicato iniciou uma articulação com deputados e vereadores, a fim de construir frentes nas Casas Legislativas capazes de barrar o processo. Uma manifestação foi realizada na Bolsa de Valores na terça-feira 14, para dar largada ao processo de resistência. “Esse ato marca o Fevereiro Azul e integra o calendário de atividades preparatórias para a Conferência Mundial da Água, que será realizada pela ONU em março”, explicou o sindicalista. “Temos todo o interesse em denunciar a proposta de venda da Sabesp e levar esse debate à população.”
Faggian observa que, nos últimos 20 anos, dezenas de países reestatizaram suas empresas de abastecimento de água e tratamento de esgoto porque, com a privatização, a qualidade do serviço caiu e as tarifas cobradas do consumidor final aumentaram significativamente. De fato, um estudo do Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda, atesta que 312 cidades em 36 países retornaram ao modelo público. Entre elas figuram Paris, Berlim, La Paz e Buenos Aires.
Na quinta-feira 16, a ministra do Comércio Exterior e Desenvolvimento Internacional da Holanda, Liesje Schreinemacher, visitou a Estação de Tratamento de Esgoto Parque Novo Mundo, na Zona Norte da capital paulista, e ressaltou a importância da administração estatal nesse tipo de serviço. “A água é um assunto que deve ser tratado de forma transversal em todos os governos. Vocês têm uma das melhores companhias de águas do mundo e queremos estreitar parcerias nesse tema”, disse, durante o encontro para estabelecer acordos de cooperação na área.
Resistência. O deputado Emídio de Souza, do PT, quer envolver os prefeitos no debate – Imagem: Arquivo/Alesp
Abrir mão do controle acionário da Sabesp é uma forma de o Poder Público lavar as mãos para os problemas de saneamento, afirma a deputada estadual Paula Nunes, do PSOL. “O liberalismo vende a ideia de que, ao privatizar, os serviços melhoram. Isso não é verdade. Privatizando, a gente tira a responsabilidade do Estado para com a população. E o único compromisso de uma empresa privada é com o lucro”, alerta. “Vimos o que aconteceu agora com as linhas de Metrô que foram privatizadas. O serviço está um caos, teve diversos problemas nas últimas semanas.”
Para o mercado financeiro, o saneamento é um negócio da China, um investimento seguro. “É uma forma de ter o monopólio natural, porque não existem duas redes de água ou duas redes de energia. Além do mais, trata-se de um serviço essencial sem o qual ninguém vive”, comenta Faggian. “Tão logo o governador anuncie a venda, vão aparecer dezenas de interessados.”
Segundo o sindicalista, alguns fundos de pensão estrangeiros já manifestaram interesse na Sabesp. “O negócio também deve atrair empresas privadas que já operam por aqui. A Iguá Saneamento e a BRK Ambiental certamente estão de olho”, especula Faggian.
Curiosamente, o novo presidente da companhia estatal, André Salcedo, nomeado em janeiro, foi diretor de Novos Negócios da Iguá Saneamento até 2021. A nova diretora de Tecnologia, Empreendimentos e Meio Ambiente da Sabesp, Paula Alessandra Bonin Costa Violante, também tem uma passagem pela empresa privada, como diretora de Engenharia e Desenvolvimento Operacional, entre 2019 e 2023.
Em duas décadas, 312 cidades em 36 países tiveram de reestatizar os seus serviços de saneamento
“Uma coisa é certa: se a iniciativa privada assumir o comando da Sabesp, ela não vai se preocupar em fazer os investimentos necessários para as regiões mais pobres.” Atualmente, o maior déficit de cobertura está nas periferias da capital e da Região Metropolitana. “Muitas vezes esses bairros nem sequer estão regularizados. São ocupações clandestinas, em áreas de manancial ou de proteção ambiental. Ainda assim, a gente atende de alguma forma, nem que seja por caminhão-pipa ou torneira comunitária. Isso, com certeza, é o tipo de coisa que uma empresa privada não vai fazer.”
Na Assembleia Legislativa, o deputado Emídio de Souza, do PT, garante que as articulações entre os novos parlamentares para defender a companhia já começaram. “Vários colegas manifestaram interesse de acompanhar o debate, muitos do PT, mas também do PSOL e do PSB. Vamos criar uma nova frente em defesa da Sabesp”, afirma o parlamentar, que presidiu um colegiado dedicado ao tema na última legislatura. “A ideia é estender o diálogo com prefeitos e vereadores, porque o prejuízo será sentido nos municípios. Muitos prefeitos costumam ter uma relação direta com a direção local da Sabesp, conseguem resolver vários problemas sem precisar acionar o governador. Uma vez privatizada, acabou a parceria.”
O vereador Jair Tatto, da capital paulista, movimenta-se no sentido de criar uma frente parlamentar para impedir a venda da empresa pública. “Estamos colhendo as assinaturas e, em breve, vamos começar as audiências públicas para tratar desse tema, porque a proposta do governador é um completo absurdo”, diz o petista. “Em vez de privatizar, o Estado deveria ampliar os investimentos e fortalecer as empresas públicas, que prestam serviços relevantes e são uma fonte de receita importante para os cofres públicos.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Por água abaixo “
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