Política

População trata política como se fosse novela

Dilma é xingada, pedem sua saída, mas o alvo dos ataques é uma personagem pouco carismática, quase como uma vilã antipática de novela de televisão

Manifestantes personalizam um sentimento que vai muito além de quem ocupa a cadeira de presidente
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Milhares de pessoas saíram no domingo 15 de março em passeata para protestar contra a presidenta Dilma Rousseff e a corrupção. A imensa maioria dessas pessoas não é “golpista” nem “querem a volta da ditadura”, como cegamente insistem algumas vozes da esquerda. Pode até existir um ou outro saudoso do governo militar e de sua repressão, mas quase todos os manifestantes são pessoas de boa fé que têm vontade de agir e reagir às notícias que escutam diariamente na grande imprensa. O problema são as consequências das ações dessas pessoas bem intencionadas.

Uma das principais características que vemos nas vozes que gritam nas ruas ou nas janelas é um ataque à presidenta. Dilma é xingada, pedem sua saída, mas o conteúdo dos ataques é a uma “persona”, uma personagem pouco carismática, quase como uma vilã antipática de novela. Curiosamente na esquerda as queixas são muito mais específicas, como as dos movimentos sociais. Até porque o programa econômico do governo atual está mais próximo das propostas do candidato derrotado nas urnas.

Essa dinâmica herói/vilão do modelo presidencialista, frequente na América Latina, enfraquece a institucionalidade democrática fazendo com que ela dependa muito de uma pessoa só. Simbolicamente, quem ocupa a presidência é percebido como soberano absoluto e todo-poderoso, por isso parece válido atribuir a essa “persona” nossas benesses ou desgraças.

Na prática não funciona assim. Desde o retorno à democracia, houve escassas sete eleições diretas presidenciais. O Brasil é governado por um sistema de presidencialismo de coalizão. Sistema herdeiro da proposta bipartidária da ditadura ARENA-MDB; não há um partido vencedor das eleições, mas coligações de interesses diversos e muitas vezes contraditórios. O PT, por exemplo, só tem hoje 14% dos deputados da Câmara e 17% dos senadores. O partido da presidenta Dilma, na prática, é só uma das maiores minorias de um Congresso sem um verdadeiro partido majoritário.

Reformas de fundo são quase impossíveis porque não há ideologia para conduzir esse “rebanho de gatos” que são as bases aliadas de governo. O Brasil é cotidianamente governado por normas que deveriam ser extraordinárias, as chamadas Medidas Provisórias. Mas só com essa figura largamente usada pelos governos do PSDB e PT foi possível dar algum rumo a essa figura amorfa que é o Congresso. Apesar da aparente liderança que essas Medidas Provisórias oferecem ao Executivo, o poder legislativo deve aprovar as Medidas Provisórias mantendo assim o poder de bloquear e atravessar o caminho do governo sem propor sequer uma alternativa razoável. Aí entra o conceito tupiniquim de base aliada: o que eu ganho para aprovar isso aí?

Essa base não é um grupo que concorda com um programa de governo ou uma proposta de país, mas um grupo composto pelos partidos com os quais podem ser negociados favores e propina para poder sair da imobilidade absoluta. O paradigma de partido de base aliada é o PMDB. O país parece ter esquecido como o partido, que tinha a Rita Camata (PMDB-ES) como fórmula presidencial de José Serra em 2001, abandona sem rubor os tucanos e se põe à disposição do então novo presidente Lula para compor a base aliada. Obviamente, a ideologia também não é o que cria vínculos entre os membros dos partidos da base aliada. Assim, não há receio algum em trocar de partido ou criar um novo para se tirar mais vantagem.

Esse é o pano de fundo da pressão contra Dilma. Pessoas que acreditam nesse poder simbólico presidencial e que querem um mocinho, um herói que salve o País dessa vilã. Quem dera fosse tão simples! O problema é estrutural, seja quem for a pessoa que ocupe a cadeira presidencial terá a mesma tarefa: pastorear “rebanhos de gatos” no Congresso. Mas o mais triste das manifestações que aconteceram contra a presidenta é que ela precisa mostrar serviço, mas só consegue isso pactuando com essa mesma base. Assim, o governo fica ainda mais vulnerável à voracidade dos aliados.

Nenhum partido ou político razoável acredita que exista fundamento jurídico para um impeachment, nem sequer o vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP) que viraria presidente nessa eventualidade. Mas a sombra da remoção presidencial virou uma excelente ameaça simbólica ao governo e incentivo perfeito para os apetites insaciáveis da base. Nem o Aécio Neves nem os tucanos receberão o benefício imediato das passeatas. O principal beneficiário das marchas do domingo 15 de março, e dos panelaços, não é outro senão o PMDB e os outros “PMDBinhos” que estão usando seu renovado poder para pedir à presidência mais cargos e proteção às suas lideranças corruptas em troca de apoio político para impedir o avanço político de um impeachment no legislativo e de aprovar as Medidas Provisórias consideradas mais úteis para o governo recuperar a popularidade.

Assim, nesse paradoxo das consequências, milhares de cidadãos se manifestam preocupados com o futuro do Brasil, mas seu protesto é a munição perfeita para que os políticos, odiados pelos mesmos manifestantes, possam destruir e se aproveitar ainda mais do aparelho do Estado. Por isso, hoje, antes de continuar com essa polarização infeliz que está tomando conta das ruas e dos corações, precisamos dialogar, entender e propor alternativas para sair dessa extorsão coletiva e recuperar a verdadeira política. Temos que aproveitar o momento de mobilização e sair dessa lógica herói/vilão.

Vamos começar, por exemplo, por despersonalizar os ataques. Não mais ataques pessoais à presidenta ou a governadores ou a prefeitos, façamos questionamentos às suas políticas de forma concreta e pensemos, ao questionar, nas alternativas. Vamos fazer o mesmo com nossos familiares, amigos e colegas. Não podemos seguir desqualificando uns aos outros por terem votado em um ou outro candidato. Chega de substituir os argumentos por palavras infelizes como “PTralhas” ou “Tucanalhas” e outras análogas. Cada vez que alguém propuser um ataque pessoal, vamos chamar gentilmente sua atenção indicando que esses tipos de ataques não ajudam a construir o País.

Eis meu convite a todos, os que se manifestaram no dia 13 ou no dia 15 de março e aos que ficaram de espectadores atônitos: vamos pensar juntos o Brasil, vamos refletir juntos sobre as consequências de nossos bem-intencionados atos, vamos propor alternativas, vamos recuperar as rédeas da Política.

*Ricardo Palacios é médico, brasileiro naturalizado e agora estuda Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Não está filiado a nenhum partido político.

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