Política

Polícia política: subordinada a Moro, PF investe contra Glenn

Incapaz de negar a veracidade das revelações do The Intercept, ministro reclama da mídia e atiça a PF contra jornalista que lhe tira o sono

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Quando era juiz em 2004, Sérgio Moro escreveu um texto que se revelaria um manual de instruções da Operação Lava Jato. Era uma análise sobre a Operação Mãos Limpas, caso ocorrido na Itália nos anos 1990. Uso à beira do ilimitado do poder de juízes e procuradores, prisões preventivas para arrancar delações e desmoralização dos políticos foram ideias defendidas por Moro no combate à corrupção. Ele pregava ainda o “largo uso da imprensa” para conseguir condenações judiciais. Se estas não ocorressem, “a opinião pública pode constituir um salutar substitutivo, tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo”.

Quinze anos e muito “largo uso da imprensa” depois, Moro assiste, sob seu nariz e em seu proveito pessoal, ao maior ataque governamental a um jornalista no Brasil desde a ditadura. Subordinada ao ministro da Justiça, a Polícia Federal (PF) tenta uma devassa bancária de Glenn Greenwald, do site The Intercept, responsável por revelar conversas comprometedoras de Moro.

A PF pediu informações sobre Greenwald ao Coaf, órgão federal de vigilância de movimentações bancárias suspeitas. O pedido foi revelado por um site que é porta-voz extraoficial de Moro, O Antagonista. Faz parte de um inquérito aberto para investigar ataques ao celular do ministro e de procuradores ocorridos às vésperas das primeiras reportagens, em 9 de junho, sobre as conversas do ex-juiz.

A polícia alegadamente quer saber se Greenwald pagou hackers para obter os diálogos de Moro. Este diz que o hackeamento do celular dele não deu certo, mas o de outros pode ter dado. “Alguém com muitos recursos está por trás dessas invasões e o objetivo principal seria invalidar condenações da Operação Lava Jato e impedir novas investigações. Alguém com recursos porque não é uma tentativa de ataque a um celular, mas de vários, em alguns casos talvez com sucesso. O que não parece corresponder à atividade de um adolescente com espinhas na frente do computador”, disse o ex-juiz na terça-feira 2, em uma audiência pública com deputados sobre o caso The Intercept

Surgiu durante a audiência a notícia sobre a investida da PF contra Greenwald. Em um canto da sala, o deputado carioca David Miranda, do PSOL, “conje” do jornalista americano, comentou o assunto com o colega paulista Orlando Silva, do PCdoB. Resposta de Silva: “Isso é polícia política, é uso do instrumento do Estado para se defender. 

Imagina o Coaf na mão do Moro?” Em seu primeiro dia no governo, Jair Bolsonaro baixou uma Medida Provisória a transferir o Coaf para o Ministério da Justiça. O Congresso empalideceu. O ex-juiz usaria o órgão contra a classe política? Ao votar a MP, o Parlamento devolveu o Coaf à sede original, o Ministério da Economia. “Vou pedir ao PDT que procure na Justiça impedir esta violência. Sérgio Moro, você está se comportando como um irresponsável”, declarou o ex-presidenciável Ciro Gomes, a propósito da pretendida devassa bancária em Greenwald.

Moro reclama da mídia e atiça a PF contra jornalista que lhe tira o sono

Tem mais: a pedido de um deputado bolsonarista, José Medeiros, do Pode de Mato Grosso, a PF vai mexer numa maluquice: se Greenwald comprou o mandato de Jean Wyllys. Ao ir morar na Europa com medo de morrer, Wyllys abriu a vaga assumida por Miranda. Na audiência pública com Moro, vários deputados da oposição questionaram o ministro a respeito da intenção de a PF investir contra Greenwald, mas o ministro tergiversou. Nem confirmou nem desmentiu. Compreensível. Se confirmasse, haveria imagem e áudio seus sobre o uso do poder do Estado contra “inimigos”. Se negasse, cometeria perjúrio perante o Congresso. Ele disse que a Polícia Federal possui autonomia e trabalha sem lhe dar satisfação. 

A cúpula da PF tem interesse particular no assunto e dívida de gratidão com o ministro. Seu diretor-geral é o delegado que chefiou a PF no Paraná durante a Lava Jato, Mauricio Valeixo. Foi escolhido por Moro para o cargo atual. O mesmo vale para o diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado, Igor Romário de Paula. Este foi um dos delegados responsáveis pela Lava Jato em Curitiba desde o nascedouro dela, igualmente pinçado pelo ex-juiz para o posto de hoje. 

Valeixo vai de chefe da PF do Paraná para diretor-geral da Polícia Federal

Igor Romário de Paula, também escolhido por Moro para diretor da Investigação e Combate ao Crime Organizado

O líder do PSOL na Câmara, o paulista Ivan Valente, apresentou um requerimento de informações ao ministro. Esse tipo de requisição é uma prerrogativa parlamentar. Se o ex-juiz não responder em até 30 dias ou se mentir, correrá o risco de ser acusado de crime de responsabilidade. Valente quer saber se há um inquérito específico sobre Greenwald, se o Coaf prestou informações sobre o americano e outros jornalistas, se Moro tem acesso ao eventual inquérito, e por aí vai. O PSOL também foi à Procuradoria-Geral da República pedir apuração sobre eventual improbidade da parte de Moro nesse episódio. 

Em nota, o Coaf nega ter recebido um pedido da PF. Greenwald não quer nem saber e logo irá ao Senado falar sobre suas revelações. Ele reagiu pelo Twitter ao saber que estava na mira da polícia. “Nenhuma intimidação ou ameaça interromperá as reportagens. Ameaças do Estado só servem para expor seu verdadeiro rosto: abuso do poder”, escreveu. “Você, Sérgio Moro, ‘investiga’ tudo o que quiser. Grupos de liberdade de imprensa em todo o mundo terão muito a dizer sobre isso. Enquanto você usa táticas tirânicas, eu continuarei reportando juntamente com muitos outros jornalistas de muitos outros jornais e revistas.”

Se o ex-juiz não responder em 30 dias as indagações de Ivan Valente, pode ser acusado de crime de responsabilidade

A Arábia Saudita, uma ditadura teocrática, é um exemplo de “táticas tirânicas”. Lá, jornalista que contraria o governo morre. Em outubro de 2018, o jornalista Jamal Khashoggi foi assassinado ao entrar no consulado de seu país em Istambul, na Turquia. Ele tinha fugido da Arábia em 2017. No fim do ano passado, a CIA concluiu que ele foi assassinado a mando do príncipe saudita Mohammad bin Salman. Bolsonaro acaba de reunir-se com o príncipe, em paralelo à reunião de cúpula do G-20, o grupo das 20 maiores economias do mundo.

Perante os deputados, Moro não disfarçou seu aborrecimento com a mídia em geral e o Intercept, em particular. Para ele, a imprensa tem adotado “um comportamento um tanto quanto estranho” ao passar adiante as revelações de Greenwald. Este, disse o ministro, faz “sensacionalismo”, “quer demonstrar uma tese que preestabeleceu”. Ironia: as conversas do ex-juiz indicam que quem tinha teses predefinidas na Lava Jato, ao menos em relação a Lula, era Moro. Ao se referir jocosamente ao primeiro depoimento que tomou do petista, escreveu ao procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, em 10 de maio de 2017, “que a defesa já fez o showzinho dela”. Ou seja, o ex-presidente estava prejulgado.

Kaye e Lanza já se disseram preocupados com as ameaças e intimidações contra Greenwald

Devido às revelações do Intercept, Moro atritou-se com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Tinha sido convidado para participar, e aceitado, do Congresso anual da entidade, que se realizaria no fim de junho. Cinco dias depois das primeiras reportagens sobre suas conversas com Dallagnol, o ex-juiz chamou o Intercept de “site aliado a hackers criminosos”. A Abraji emitiu um comunicado de solidariedade a Greenwald contra “ataques descabidos” e a apontar “manifestação preocupante” e “erro” da parte de Moro “ao insinuar que o veículo é cúmplice de crime ao divulgar informações de interesse público”. Foi o suficiente para o ministro cancelar a participação no evento da Abraji. 

Organismos internacionais estão de olho na postura de Sérgio Moro. Uma ONG de apoio à liberdade jornalística pelo mundo, a Freedom of the Press, divulgou nota a afirmar: “O governo brasileiro deve suspender imediatamente as investigações” sobre Greenwald, “essas táticas de intimidação são um ataque descarado à liberdade de imprensa”. Antes da notícia do pedido da PF ao Coaf sobre Greenwald, quem tinha dito coisa parecida foram os relatores especiais da ONU e da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a liberdade de expressão, o americano David Kaye e o uruguaio Edison Lanza, respectivamente. Em comunicado, a dupla expressou preocupação com as “ameaças, desqualificações por parte das autoridades e as intimidações” recebidas por Greenwald “após a divulgação de informações e denúncias de interesse público”. Cobrou “uma investigação completa, efetiva e imparcial” das ameaças e lembrou que o Brasil tem “obrigações de prevenir e proteger os jornalistas em risco e garantir a confidencialidade das fontes de informação”.

A Freedom of the Press pede o fim das investigações sobre Greenwald: “ataque descarado à liberdade de imprensa”

Colocar em dúvida a reputação de Greenwald é o que resta a Moro, até aqui incapaz de negar que tenham ocorrido as comprometedoras conversas com procuradores. O ministro diz e repete: a autenticidade das mensagens não pode ser comprovada, ele não lembra do teor delas e apagou-as em 2017, mas, ainda que os diálogos noticiados sejam reproduções fiéis e não versões adulteradas, o que se vê ali é normal, nada de mais.

“O ministro construiu uma narrativa, mas não nega as frases. Isso vai ficar na cabeça dos ministros do Supremo e tende a influenciá-los”, afirma o deputado-advogado Luiz Flávio Gomes, do PSB paulista, que fez campanha em 2018 com discurso em defesa da Lava Jato. A influência da falta de negativas de Moro sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) seria no julgamento da suspeição do ex-juiz requerida em um habeas corpus de Lula. 

Recordem-se algumas revelações do Intercept: em dezembro de 2015, Moro disse a Dallagnol que sabia de fonte interessada em prejudicar Lula. Em fevereiro de 2016, a dupla falou sobre o que Moro chamou de “notas malucas” emitidas pelo PT críticas à Lava Jato. “Deveríamos rebater oficialmente? Ou pela Ajufe (a Associação dos Juízes Federais)?”, escreveu o então juiz. Dias antes, Moro havia sugerido à força-tarefa que invertesse a ordem de dois planos de operações de campo. Em agosto de 2016, perguntou a Dallagnol: “Não é muito tempo sem operação?”

Em 2017, comentou com Santos Lima sobre o “showzinho” da defesa de Lula. Este último diálogo levou um jornalista americano, Brian Winter, a comentar no site da revista americana Foreign Policy, uma das mais tradicionais sobre relações internacionais: “Não acho que há alguma forma de uma pessoa razoável olhar para essa transcrição e sair pensando que este era um juiz imparcial”.

Glauber Braga: Moro é um juiz ladrão

“Nem entro no mérito das conversas. O Moro teve esse tipo de diálogo com advogados? Se não teve, é quebra do princípio da imparcialidade”, diz o senador Fabiano Contarato, da Rede do Espírito Santo, delegado por 27 anos e professor de Direito. Gay assumido, ele sofreu ameaça de morte após Moro ter ido ao Senado falar sobre o caso Intercept, em 19 de junho. Um auditor fiscal capixaba mandou-lhe um áudio ameaçador, pelo WhatsApp: “Quero meter o facão em você”.

Segundo Contarato, as conversas indicam que Moro violou o Código de Processo Penal. Pelo artigo 254 da lei, um juiz tem de se declarar suspeito numa causa “se tiver aconselhado qualquer das partes” e “se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer” das partes. Do contrário, suas sentenças serão anuladas, conforme o artigo 564. Uma revelação recente do Intercept mostra que uma procuradora, Monique Cheker, escreveu a colegas, em 1o de novembro de 2018, que “Moro viola sempre o sistema acusatório e é tolerado por seus resultados”. Ela negou publicamente ter escrito.

Moro, ao contrário, não nega nada. Na audiência pública na Câmara, foi perguntado várias vezes e saiu pela tangente: “Não reconheço como sendo minhas essas mensagens”. Quando foi noticiado que em uma dessas mensagens havia chamado de “tontos” os militantes do MBL, entidade direitista, o ex-juiz gravou uma mensagem a pedir “escusas”. Desculpou-se por algo que não fez? Perguntado se teve com advogados, particularmente Cristiano Zanin, o de Lula, a mesma intimidade demonstrada com procuradores, esquivou-se. “O senhor corrompeu a Justiça brasileira, a pretexto de combater a corrupção”, disse o deputado paulista Rui Falcão, ex-presidente do PT. Uma audiência pública de sete horas e alta temperatura, encerrada com confusão logo depois de o deputado Glauber Braga, do PSOL do Rio, ter chamado Moro de “juiz ladrão”. 

O ministro não nega coisa alguma, mas repete: estas mensagens não as reconheço como minhas

Antes da confusão, o ministro tinha dito que não houve “maior ilicitude” nas conversas, “é comum que juiz fale com procuradores, com advogados”, nada de anormal. Os governadores do Nordeste discordam. Em uma carta de 1o de julho, disseram que os diálogos são “anormais” e sugeriram que Moro deixe o cargo. Em nota, a Associação Juízes para a Democracia apontou “normalidade anormal”. Na Ajufe, 30 juízes pediram a destituição do Moro da posição de sócio benemérito da entidade, pois os diálogos dele “indicam que pode ter havido uma interação heterodoxa” com procuradores.

“Não pode haver esse tipo de conversa entre o juiz e o MP, uma conversa entre amigos”, segundo Gilson Dipp, ex-juiz do Superior Tribunal de Justiça. “O Brasil normalizou os absurdos. Não é normal esse tipo de consulta”, disse Gilmar Mendes, do Supremo. A “equidistância” judicial foi colocada em dúvida, afirmou outro do STF, Marco Aurélio Mello. 

Por tudo o que se sabe do STF, o voto decisivo no julgamento da suspeição de Moro no HC de Lula será de Celso de Mello. Este já considerou Moro suspeito no caso de um doleiro, Rubens Catenacci, em 2013. Na semana passada, CartaCapital relatou que em um gabinete do STF há quem diga que a decisão sobre Catenacci não deve ser tomada como referência, pois o decano não gosta do petista.

Em 2016, quando veio a público um grampo de Lula em que ele dizia que a corte estava “totalmente acovardada”, Celso de Mello foi duro com o ex-presidente: “Reação torpe e indigna, típica de mentes autocráticas”. Um ex-assessor do decano diz, porém, que aposta em um voto contra Moro e a favor de Lula. Motivo: o magistrado faria votos de olho na História e em defesa dos indivíduos contra os poderes do Estado. O que Mello precisaria hoje é de um pouco mais de confiança de que as conversas reveladas pelo Intercept são de fato autênticas.

Imagem do desvario nativo

“A situação do Moro só vai mudar no dia que aparecerem áudios. Aí o apoio popular a ele vai cair. O que sustenta ele é o apoio popular”, diz o deputado cearense Idilvan Alencar, do PDT, ex-secretário da Educação do estado. Parcela expressiva do Judiciário o sustenta também. Se 30 juízes pediram a cabeça de Moro na Ajufe, outros 270 saíram em defesa dele em um manifesto. Segundo Alencar, é difícil que haja uma CPI da Lava Jato, proposta por seu próprio partido, devido ao medo das ruas e das redes sociais existente mesmo entre parlamentares da oposição, casos de gente do PDT e do PSB.

E ainda que estivesse unida em torno de uma CPI, a oposição sozinha não consegue criar a comissão, precisa de parte do dito “Centrão”. E este se move igualmente de olho nas ruas e nas redes. No domingo 30 de junho, houve manifestações pró-Moro em cerca de 85 cidades. Foram menores que as de 26 de maio favoráveis a Jair Bolsonaro (umas 150), mas não desprezíveis. 

Em 26 de junho, o instituto de pesquisas Idea Big Data, cujo dono, Mauricio Moura, acha que o “verdadeiro embate” da eleição de 2018 foi entre “partido da Lava Jato e lulismo”, fez um levantamento para saber o impacto das revelações do Intercept entre os brasileiros. As conversas entre Moro e a força-tarefa de Curitiba foram consideradas impróprias por 33% dos entrevistados, mas para 32%, não. Quase um empate. Apesar disso, bem mais gente (48%) acha que Moro e os procuradores agiram corretamente, do que pensa o contrário (31%). Quer dizer, até aqui, os fins do ex-juiz têm justificado os meios dele.

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