Política

PF poupa Flávio Bolsonaro, mas caso Queiroz segue no Rio

Polícia Federal atestou a inocência de ‘zero um’ poucos dias depois de o pai do rapaz quase tirar a corporação da alçada de Moro

Para o senador e o pai, o inimigo é o governador Witzel. Foto: Roque de Sá/Agência Senado
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Em 6 de dezembro de 2018, o Brasil soube que o ex-PM Fabrício Queiroz, amigo de Jair Bolsonaro e então chefe de gabinete do filho “zero um” do ex-capitão, Flávio, havia depositado 24 mil reais na conta da hoje primeira-dama, Michelle, em algum momento entre 2016 e 2017, conforme descoberto pelo Coaf, o órgão federal antilavagem de dinheiro. Bolsonaro diria dois dias depois que era a devolução parcial de 40 mil que emprestara a Queiroz. Explicação nada convincente para Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, que na época comentou por escrito, pelo celular, com procuradores: “É óbvio o que aconteceu. E agora, José?”; “Moro deve aguardar a apuração e ver quem será implicado. Filho certamente. O problema é: o pai vai deixar? Ou pior, e se o pai estiver implicado, o que pode indicar o rolo dos empréstimos?”; “Seja como for, o presidente não vai afastar o filho. E se isso tudo acontecer antes de aparecer vaga no Supremo?”

Moro, claro, é o ex-juiz Sérgio, atual ministro da Justiça, e uma vaga no Supremo Tribunal Federal abre em novembro. Hoje sob seu comando, a Polícia Federal acaba de dar uma força ao enrascado filho do presidente. Flávio não lavou dinheiro com negócios imobiliários, segundo a PF. A conclusão, noticiada pela Folha na segunda-feira 3, faz parte de uma investigação sobre as declarações de bens entregues à Justiça Eleitoral pelo senador. Da campanha de 2014 para a de 2016, ele dobrou o patrimônio, de 714 mil para 1,45 milhão, graças a imóveis. Chama atenção no inquérito um apartamento no bairro de Laranjeiras, no Rio. Em 2016, Flávio declarou ter 50% dele, no valor de 423 mil reais. Dois anos antes, contudo, informava que 100% valiam 565 mil. Por que a diferença? Era o que a apuração policial tentava saber. “Investigação isenta”, comemorou Flávio.

O procurador responsável pelo caso na Justiça Eleitoral do Rio, Sidney Madruga, já tinha se esforçado pelo filho do presidente. Madruga tentou arquivar a apuração, iniciada em decorrência de uma denúncia apresentada por um advogado, sem realizar diligências, como a tomada de depoimento ou a requisição de documentos a algum órgão. Consta que Madruga acaba de ser promovido pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, um indicado de Jair Bolsonaro, para ser chefe-substituto da Escola Superior do Ministério Público da União.

Estaríamos no fim dessa sólida amizade? Foto: Aloisio Mauricio/Fotoarena

A PF atestou a inocência de Flávio poucos dias depois de o pai do rapaz quase tirar a corporação da alçada de Moro, com um abortado (por ora) desmembramento do Ministério da Justiça em dois. Os federais seriam subordinados à pasta nova, da Segurança Pública. A absolvição coincide ainda com a volta das cogitações de uma indicação de Moro ao Supremo por Bolsonaro, na vaga de Celso de Mello, que em novembro se aposenta por idade (75 anos). Nas mãos do decano, aliás, repousa o destino do ex-juiz. Se Mello concordar que ele foi parcial contra Lula na Lava Jato, julgamento pendente no Supremo, haverá condições de a corte acolher o ministro da Justiça como um dos seus? Bolsonaro precisa livrar-se de uma eventual candidatura presidencial de Moro em 2022 e botá-lo no tribunal cumpriria tal função. O ministro disse recentemente ser uma “perspectiva interessante” ingressar no Supremo. Bem que Dallagnol temia um toma lá dá cá entre Bolsonaro e Moro.

Se, na PF, Flávio e o pai têm o que festejar, no Rio de Janeiro do “inimigo” governador Wilson Witzel é diferente. Um dia após a notícia sobre a conclusão do inquérito policial absolvedor do senador, o Tribunal de Justiça fluminense (TJ-RJ) julgou e manteve, graças a duas  uízas, a quebra dos sigilos bancário e fiscal do “zero um”. A quebra havia sido determinada em abril de 2019, em outra investigação a azucrinar o filho do presidente. Esta apuração é sobre “rachadinha” no gabinete de Flávio no tempo dele de deputado estadual no Rio, de 2003 a 2018. “Rachadinha” é a prática de um parlamentar embolsar parte do salário dos funcionários. Existe a suspeita por causa de vários depósitos de seus antigos contratados feitos na conta de Queiroz, que foi seu chefe de gabinete na Assembleia do Rio.

Existe a suspeita de que, quando deputado estadual, Flávio entrou no jogo das “rachadinhas”

O senador havia entrado com um habeas corpus no TJ-RJ, para anular a quebra de sigilo, decretada pelo juiz Flávio Itabaiana, da 27a Vara Criminal do Rio. Em 28 de janeiro, o relator da ação na 3a Câmara do tribunal, Antonio Carlos Nascimento Amado, tinha votado a favor do pedido, por entender que o primogênito do presidente não havia tido chance de se defender previamente. Segundo o Ministério Público do Rio, foi o próprio senador quem abriu mão de se manifestar. As duas colegas de Amado na 3a Câmara, Mônica Tolledo de Oliveira e Suimei Meira Cavalieri, quiseram mais tempo para estudar o caso, antes de se pronunciarem. Elas votaram na terça-feira 4: a favor da quebra de sigilo. Placar final, 2 a 1 contra Flávio.

Qual das esposas leva mais? A atual ou a ex? Foto: Alan Santos/PR

Mônica tem em mãos um apelo dele por foro privilegiado. O senador tenta fugir do xará Itabaiana, juiz de primeira instância. Prefere ser julgado no TJ-RJ. A procuradora a quem coube opinar em nome do Ministério Público do Rio, Soraya Taveira Gaya, concorda com o “zero um”. Mônica é, porém, uma magistrada um tanto rígida. Em 2018, negou um habeas corpus a um miliciano, Orlando Curicica, acusado por uma testemunha de ser o mandante do assassinato de um presidente de escola de samba. O acusador mudou o depoimento e, para a juíza, foi por medo da milícia. Curicica é personagem das investigações da execução da vereadora Marielle Franco, em março de 2018. Diz ter participado de uma reunião em que a morte teria sido tramada pelo chamado “Escritório do Crime”, gangue de matadores, e por um PM que trabalhou para o ex-deputado estadual Domingos Brazão. Em uma das linhas de investigação, Brazão figura como mandante.

O juiz Amado tomou outra decisão de certa forma favorável a Flávio Bolsonaro, essa ainda em vigor. Foi em 21 de janeiro, a pedido de Alexandre Ferreira Dias Santini, sócio do senador em uma loja de chocolates na Barra da Tijuca, a Bolsotini, franquia da Kopenhagen. Em 18 de dezembro passado, tanto a Bolsotini quanto a casa de Santini foram vasculhadas pelo Ministério Público, por ordem judicial. Os investigadores queriam documentos contábeis para verificar se a receita batia com o volume de vendas. Desconfiam que a franquia foi usada para esquentar grana proveniente de outras atividades (“rachadinhas”, por exemplo) e que Santini seria “laranja” de Flávio.

Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro. Foto: Marcos Ramos/ Agência O Globo

Foi após a abertura dessa firma, em janeiro de 2015, que o patrimônio do filho deBolsonaroincrementou-seaolhosvistos. Na eleição de 2006, ele havia declarado 385 mil em bens. Na de 2010, 690 mil. Na de 2014, 714 mil. Nas duas seguintes, já um vendedor chocolates, tinha se tornado milionário: 1,4 milhão em 2016 e 1,7 milhão, em 2018. Pelo despacho do juiz Amado, o material apreendido com a pessoa física Santini não pode ser averiguado. O da Bolsotini, pode.

As duas promotoras da PM carioca são a favor da quebra do sigilo bancário do “zero um”

As buscas na franquia marcaram a retomada das investigações do caso Flávio, Queiroz e das “rachadinhas”. Ficou tudo suspenso de julho a novembro de 2019, por obra de duas liminares do Supremo, uma de seu presidente, Dias Toffoli, outra de Gilmar Mendes, ambas revogadas após um julgamento no penúltimo mês do ano passado. As buscas foram autorizadas pelo juiz Itabaiana. Além de ir à Bolsotini, o Ministério Público agiu em 18 de dezembro em mais duas frentes. Em uma, foi a endereços de Fabrício Queiroz e de uma filha dele, Evelyn. Motivo: ao longo de 11 anos, o sumido ex-PM recebeu 2 milhões de reais, de forma fracionada, de 13 funcionários do antigo gabinete de deputado estadual de Flávio. Evelyn era uma dessas funcionárias.

Brazão já contou o apoio do “escritório do crime”.

Em outra frente, o MP escarafunchou endereços de uma ex-mulher de Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle, e de vários familiares dela (pai, irmã, duas tias, três primos). Esses parentes tinham sido contratados, no passado, pelo gabinete de Flávio na Assembleia do Rio, e talvez a razão não fosse apenas “cabide de emprego”. Eles costumavam sacar em dinheiro vivo quase tudo que recebiam de salário. Por quê? Para devolver ao patrão, na forma de “rachadinha”? José Cândido Procópio da Silva Valle, pai de Ana Cristina, sacou 99% de um total de 86 mil reais que ganhou entre 2003 e 2004. Andrea Siqueira Valle, irmã, pegou 98% de 674 mil recebidos. Marina Siqueira Diniz, tia, 98% de 359 mil. Maria José de Siqueira e Silva, outra tia, 91% de 288 mil. Francisco Diniz, primo, 88% de 672 mil.

Uma ex-babá que trabalhou para Ana Cristina passou por outro gabinete do clã bolsonarista, o do vereador Carlos, o “zero dois”, ghost-writer do pai presidente nas redes sociais. Cileide Barbosa Mendes esteve ali por 18 anos, a idade de Carlos ao contratá-la. Era pau para toda obra. Foi “laranja” de um ex-marido de Ana Cristina na abertura de uma firma. Ivan Ferreira Mendes era tentente-coronel e, como militar da ativa, não podia ter empresa. Cileide “emprestou-lhe” o nome. Até o ano passado,a ex-babá morava na casa onde Jair Bolsonaro tinha seu escritório político no Rio. Acontecimentos que ajudam a entender por que, na época que o Ministério Público estadual esquadrinhou a loja de chocolates de Flávio, o presidente comentou ver “intenção de que seja realizada operação de busca e apreensão na casa de outro filho meu”.

O sumido Queiroz, que foi chefe de gabinete de Flavio Bolsonaro na Alerj

Carlos é alvo de investigação no Rio por suspeita de empregar fantasmas e praticar “rachadinha”. Aparece ainda em uma das linhas de investigação do assassinato de Marielle, e talvez seja aqui que resida o verdadeiro receio do presidente quanto a uma batida policial na casa do “zero dois”. Carlos depôs em abril de 2018 sobre a execução. Ele e Marielle davam-se mal na Câmara de Vereadores carioca, depois que ele bateu boca com um assessor dela que o chamara de “fascista”. Os dois principais acusados do assassinato, os ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio Vieira, encontraram-se horas antes do crime no condomínio da Barra da Tijuca onde Carlos mora e o pai tem casa. Lessa mora ali também. O vereador atrapalhou-se ao divulgar informações sobre seu paradeiro naquele dia, quando surgiu a notícia de que Élcio entrou no condomínio tendo dado o número da casa de Jair Bolsonaro como seu destino, não a de Lessa. Carlos estava em casa? Na Câmara? Em um táxi?

Carlos, “zero dois”, é investigado por empregar fantasmas e praticar “rachadinhas”

Outra figura barra-pesada, esta ligada a Flávio Bolsonaro, ganhou as manchetes nos últimos dias. Trata-se do ex-capitão do Bope do Rio, Adriano Magalhães da Nóbrega, que foi morto neste domingo 09 em um confronto com forças de segurança da Bahia. “Gordinho“ como era conhecido, já foi homenageado por Flávio e emplacou a mãe e uma esposa como assalariadas no ex-gabinete de deputado estadual do “zero um”. Estava foragido desde janeiro de 2019, quando a Justiça fluminense decretou sua prisão e a de uma quadrilha de milicianos atuante em Muzema e Rio das Pedras, comunidades próximas ao condomínio da Barra da Tijuca de Jair e Carlos Bolsonaro. Uma turma acusada de extorsão, receptação de carga roubada, suborno, assassinato, posse e porte ilegal de armas, entre outras. 

Uma semana antes de ser morto, Nóbrega havia sido localizado em uma mansão na Bahia mas tinha conseguido escapar. Na fuga, havia deixado para trás um RG falso, emitido no Ceará, em nome de Marco Antonio Linos Negreiro, conforme O Globo. Quem havia ficado para trás também foram as filhas e sua atual mulher, Julia Mello. Uma esposa anterior, Danielle Mendonça, foi empregada de Flávio Bolsonaro na Assembleia do Rio. Idem sua mãe, Raimunda. Esta foi uma das pessoas que fizeram depósitos suspeitos na conta de Fabrício Queiroz. Há registro de 4,6 mil reais em 2016, conforme o Coaf. A contratação das parentes de “Gordinho” teria sido obra de Queiroz. O foragido tinha sido homenageado duas vezes por Flávio, quando este era deputado. Uma em 2003, por “brilhantismo”, outra em 2005, com a Medalha Tiradentes, a mais alta condecoração da Assembleia do Rio.

Quem já merece homenagens do gênero por parte de Flávio é Sérgio Moro.

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