Política

“Pessoas confundem liberdade de imprensa com liberdade de expressão”

Para o procurador Pedro Machado, do MPF-SP, a sociedade caminha para uma regulação da mídia capaz de coibir abusos e oligopólios

Para o procurador, o oligopólio midiático não garante a pluralidade de ideias e a diversidade da sociedade brasileira
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Tema tabu na sociedade brasileira, a regulação da mídia parece estar se tornando mais palatável, em parte graças a manifestações de autoridades públicas. Em junho, durante julgamento envolvendo empresas de tevê por assinatura, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que a “regulação da mídia é necessária à liberdade de expressão” e lembrou que concentração dos meios de comunicação traz riscos à circulação de ideias.

O Ministério Público Federal também tem atuado para defender a regulação e a democratização da mídia. Em entrevista a CartaCapital, o procurador Pedro Antonio de Oliveira Machado, do MPF de São Paulo, discute as ações do órgão contra abusos e ilegalidades cometidos por empresas privadas de rádio e televisão e destaca que a liberdade de imprensa não necessariamente significa liberdade de expressão. “Se a mídia sofre com um oligopólio, existirá liberdade de imprensa, mas não de expressão, pois apenas um tipo de ideia ou um grupo social terá voz e isso não garante a pluralidade de ideias que existe na sociedade”, afirma. 

CartaCapital: O Grupo Abril vendeu ao Grupo Spring a frequência em que funcionava a MTV Brasil. O MPF considerou a operação irregular. Como está o andamento da ação?

Pedro Machado: Havíamos entrado com uma ação cautelar, em março de 2015, para suspender a compra. No entanto, a ação foi julgada improcedente pela Justiça e, agora, entramos com um recurso para recorrer desta decisão. Além disso, estamos trabalhando na ação principal para anular a operação e talvez eu peça uma liminar. Mas o que existe até agora é que a pretensão do Ministério Público não foi atendida pela Justiça.

CC: Qual é o valor desta transação?

PM: É de 290 milhões de reais.

CC: Por que o Ministério Público julga a ação ilegal?

PM: A legislação não permite que uma concessão pública seja repassada pelo concessionário a um terceiro sem uma nova licitação. Qualquer concessão deve passar por uma licitação. A concessão é acordada a uma empresa que possui somente duas opções: explora o serviço ou restitui para a União. Neste caso, não aconteceu nem uma coisa nem outra. A empresa vendeu o direito de explorar o serviço para outra empresa, o que entendemos ser inconstitucional.

CC: Quem é o responsável por esta fiscalização?

PM: Quem tem de fiscalizar e tomar as providências necessárias é o Ministério das Comunicações. O Ministério Público Federal entrou com a ação porque está havendo uma omissão do ministério.

CC: A agilidade da tramitação destes processos é lenta?

PM: A questão da liberdade de expressão é um assunto muito delicado. Sempre caminhamos sobre o fio da navalha. Em uma sociedade democrática, se pressupõe que a sociedade conviva com certo grau de tolerância a manifestações inadequadas.

Nós, do Ministério Público Federal, temos atuado em alguns casos que no nosso entender há um abuso da liberdade de expressão. Eu cito, por exemplo, o caso da TV Bandeirantes, em que o apresentador [José Luiz] Datena fez comentários preconceituosos contra ateus, dizendo que todos os ateus eram criminosos… foi uma ação em que ganhamos e fizemos diversas inserções de direitos de repostas. Outra ação que ganhamos, recentemente, foi a retratação da RedeTV! sobre comentários racistas contra religiões afrodescendentes.

A lentidão mencionada não é demora porque nós temos que amadurecer as ideias. Como são questões sensíveis temos que estudar com calma, para embasar muito bem a ação e não correr o risco de gerar uma jurisprudência negativa. Ou seja, eventuais decisões julgadas contra geram um precedente de que não se pode atuar nestas questões.

Um exemplo disso é a ação movida contra a jornalista Raquel Sheherazade, do SBT, por comentários que incitariam a tortura e que não foi acolhida pela Justiça. Isso faz parte do sistema democrático e não se resolve de uma forma simples e rápida.

CC: É uma luta difícil de ser travada?

Procurador Pedro Machado Para o procurador, cada ação deve ser muito bem embasada para ‘não correr o risco de gerar uma jurisprudência negativa’PM: É uma luta não só difícil de ser travada, mas também difícil de delimitarmos qual caso deve ser tolerado e qual caso é um abuso da liberdade de expressão que mereça a intervenção do Estado. Porque não é uma disputa entre particulares, onde uma pessoa específica é ofendida pela mídia. A atuação do Estado só deve ocorrer em casos extremamente graves, onde outros princípios fundamentais da Constituição são violados. A liberdade de expressão é uma liberdade pública para que as pessoas possam expressar sua visão sobre o assunto, mesmo que seja equivocada, e onde o Estado deve se abster. Não só é uma luta de difícil condução no Judiciário como também é uma luta que merece uma reflexão cuidadosa para saber se o caso realmente merece uma intervenção do Estado.

CC: Para definir esses limites não seria necessário investir na democratização e na regulação da mídia?

PM: A regulação da mídia é um assunto delicado porque toda vez que se fala nisso se pensa em censura e intervenção do Estado. No entanto, estamos caminhando para essa discussão. Acho que temos de caminhar para alguma espécie de regulação não para impedir a liberdade de expressão, mas para ter mecanismos de resposta a certos abusos. Não existem regras ou parâmetros para essa questão, mas sim uma análise caso a caso.

De qualquer forma, é um tema delicado em que ninguém quer se envolver e eu atribuo esse comportamento ao período da ditadura, quando houve uma repressão muito grande a esta liberdade.

CC: Só a regulação é suficiente ou é preciso investir em formas de democratizar a mídia brasileira?

PM: A democratização é necessária, sem dúvida. As pessoas confundem liberdade de imprensa com liberdade de expressão. Pode-se ter liberdade de imprensa, sem liberdade de expressão. Se a mídia sofre com um oligopólio, existirá liberdade de imprensa, mas não de expressão, pois apenas um tipo de ideia ou um grupo social terá voz e isso não garante a pluralidade de ideias que existe na sociedade.

CC: O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), disse em um evento com radiodifusores que “para uma má imprensa, mais imprensa. Qualquer tentativa de regulação deve sofrer repulsa”. Como responder a este argumento?

PM: O diabo mora nos detalhes. É preciso saber qual é a concepção dele de regulação antes de respondê-lo. A nossa concepção de regulação traz mais democratização. É fácil falar que contra a má imprensa é preciso mais concessões, mas como competir com um veículo já estabelecido no mercado e que detém um monopólio da infraestrutura e da renda publicitária? Mais concessões não combatem o monopólio. É preciso ter outros instrumentos para modificar esta situação de monopólio e para trazer mais vozes para a mídia brasileira.

CC: O oligopólio midiático ao qual o senhor se refere também interfere no processo de democratização político?

PM: Sem dúvida. Um dos problemas que temos debatido é a questão de que apesar da Constituição dizer que parlamentares não podem deter concessões de radiodifusão, existem empresas privadas de radiodifusão que possuem parlamentares em seu quadro societário. É óbvio que isso compromete o processo político e de composição do Congresso Nacional e de outras forças políticas, até mesmo do Poder Executivo.

CC: Mas o Poder Judiciário pode interferir no Ministério das Comunicações, que está sob a alçada do Executivo, e fazer valer essa regra?

PM: Na verdade, essa proibição consta na Constituição Federal. Por isso, entendemos que esta questão é passível de ser levada ao Judiciário, que pode deliberar sobre ela. Estamos estudando essa hipótese e provavelmente haverá alguma intervenção sobre esse assunto em um breve ou médio espaço de tempo. 

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