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Pés em duas canoas

O governo Lula aposta da exploração da Margem Equatorial para financiar a transição energética no País

Pés em duas canoas
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Imagem: iStockphoto
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Oitavo maior produtor de petróleo do mundo, o Brasil pretende chegar à quarta posição e disputar o mercado petrolífero em pé de igualdade com a gigante Arábia Saudita. Para tanto, aposta todas as fichas na Margem Equatorial, área que se estende do Amapá ao Rio Grande do Norte, onde estão localizadas cinco bacias sedimentares com alto potencial de conter o valioso “ouro negro”. O País também tem a ambição de ocupar papel de destaque na transição energética em nível global, favorecido pela iluminação solar e ventos abundantes durante todo o ano. O impasse reside na difícil escolha entre manter os investimentos em uma economia ainda baseada nos combustíveis fósseis ou concentrar, desde já, todos os esforços na geração de energias renováveis. Colocar os pés em duas canoas soa contraditório para os ambientalistas.

Há pouco mais de um ano, o Ibama negou uma licença à Petrobras para rea­lização de pesquisas para investigar a existência de petróleo na bacia da Foz do Amazonas. Trata-se do bloco FZA-M-59, localizado a 160 quilômetros da costa do Amapá e a 500 quilômetros da Foz do Rio Amazonas. Da negativa para cá, o tema gerou uma queda de braço dentro do governo. A área ambiental coloca-se contra a exploração de petróleo não só pelos riscos de acidentes e impactos na região, mas também porque defende a descarbonização de combustíveis fósseis, condição basilar para se falar em transição energética. Na outra ponta, a Petrobras, o Ministério de Minas e Energia e o próprio presidente Lula enxergam na Margem Equatorial um novo pré-sal, capaz de gerar dividendos virtuosos e, inclusive, financiar o projeto de transição energética.

Ambientalistas alertam, porém, que os projetos são contraditórios e inconciliáveis

“Enquanto a transição energética não resolve o nosso problema, o Brasil tem de ganhar dinheiro com esse petróleo”, defendeu Lula recentemente. “Na hora em que começarmos a explorar a chamada Margem Equatorial, eu acho que a gente vai dar um salto de qualidade extraordinário. Queremos fazer tudo legal, respeitando o meio ambiente, respeitando tudo. Mas não vamos jogar fora nenhuma oportunidade de fazer este País crescer”, disse o presidente, durante o Fórum de Investimentos Prioridade 2024, realizado em junho no Rio de Janeiro, um evento organizado pelo Instituto da Iniciativa de Investimentos Futuros (FII ­Institute), da Arábia Saudita. “Temos um debate técnico que precisa ser feito. O problema é que, no Brasil ,tudo é polemizado. Você tem petróleo em um lugar, a Guiana está explorando, Suriname está explorando, Trinidad e Tobago exploram, você vai deixar o seu sem explorar? O que nós precisamos é garantir que a questão ambiental será levada 100% a sério.”

A tese de Lula converge com o que defendem o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e a nova presidente da Petrobras, Magda Chambriard. “A pesquisa das potencialidades da Margem Equatorial é uma questão de soberania nacional e de responsabilidade com os brasileiros e as brasileiras. Vamos construir, junto ao Ibama, um caminho ambientalmente seguro para dar o direito ao povo brasileiro de conhecer suas riquezas”, salientou Silveira, acrescentando que a Margem Equatorial “talvez seja a nossa última fronteira de petróleo e gás, antes da consolidação da transição energética”. Ao tomar posse em 19 de junho, ­Chambriard observou que a geração de energias renováveis pode ser financiada pelo setor de óleo e gás. “Não existe falar em transição energética sem mencionar quem é que vai pagar. É o petróleo que vai pagar essa conta”, disse a executiva, antes de completar: “É fundamental desenvolver nossas fronteiras exploratórias, como as da Margem Equatorial e do Sul do Brasil, sempre com rigorosos padrões de segurança, em absoluta conformidade com a legislação ambiental”.

O ambientalista Ilan Zugman, ­diretor para a América Latina da ­ONG 350.org, lembra que vários países, inclusive o Brasil, se comprometeram a reduzir em 43% a emissão de gases de efeito estufa até 2030 e que colocar mais petróleo no mundo para ser queimado vai inviabilizar essa meta. “O Brasil precisa decidir se deseja se juntar ao clube dos maiores exportadores de petróleo do mundo ou se pretende realmente liderar uma transição energética justa. Somos um país riquíssimo em recursos naturais, mas a política precisa tomar uma decisão”, diz. Já Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, avalia que a produção brasileira de petróleo hoje, de 3,4 milhões de barris por dia, é suficiente para bancar a transição energética, e chama atenção para a grave crise climática em escala global. “Petróleo gera dinheiro, mas a gente vai gerar dinheiro para quê? Para o desastre climático no Rio Grande do Sul? Para agravar a seca da Amazônia e as queimadas do Pantanal? É isso que a gente quer? Regiões que já produzem petróleo há décadas, como Rio de Janeiro e Espírito Santo, não estão resolvendo suas questões sociais com o dinheiro gerado. Na verdade, o petróleo offshore é altamente concentrador de renda. Ele gera dinheiro, mas para beneficiários específicos, como os acionistas da Petrobras. Se eles querem financiar a transição energética com o petróleo, comecem a intensificar isso hoje, com a produção que já é feita”, afirma. “Se a licença for aprovada hoje, o Bloco 59 vai precisar de seis a dez anos para começar a produzir. Não temos uma década para começar a investir na transição energética. O petróleo vai parar de ser usado amanhã? Não vai. Mas você tem que ter um cronograma, não faz sentido abrir novas áreas de exploração. Mais petróleo significa colocar no mercado um produto que, quando queimado, vai aumentar a emissão de gases de efeito estufa e piorar a crise climática”, analisa a especialista.

Bioma em risco? A Petrobras diz ser segura a exploração de bacia perto da Foz do Amazonas – Imagem: Cézar Fernandes/Agência Petrobras

O Ministério de Minas e Energia reitera, porém, que o Brasil precisa do petróleo e do gás natural não só para garantir a segurança energética nos próximos anos, mas também pela importância dessas fontes para a geração de receitas governamentais, renda e empregos. “O Estado brasileiro não pode abrir mão de receitas na ordem de 300 bilhões de reais por ano da indústria de exploração e produção de petróleo e gás natural”, afirmou a assessoria de comunicação da pasta, por meio de nota. “O que o País precisa ter em mente é que o caminho para o net zero passa pela redução da queima de combustíveis fósseis, e não pela redução da produção de petróleo e gás natural. O que vai acontecer nessa caminhada para o net zero é que o País vai se tornar cada vez mais um grande player na exportação de petróleo, passando para o quarto ou quinto lugar, e passará também a ser um exportador de derivados, à medida que descarbonizar a matriz de energia e transporte. As receitas do petróleo também serão importantes para financiar o desenvolvimento de projetos que têm por objetivo mitigar os efeitos das emissões, a exemplo da tecnologia de captura, armazenagem e utilização de carbono. Importante destacar, ainda, que o petróleo brasileiro é um dos que têm a menor pegada de CO² do mundo, são 10 quilos por barril de óleo equivalente, ante uma média mundial na faixa de 20 kg/BOE.”

“O Estado brasileiro não pode abrir mão de receitas na ordem de 300 bilhões de reais por ano”, diz o Ministério de Minas e Energia

Única brasileira a constar na lista das cem pessoas mais influentes do mundo em 2024 pela revista Times, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva garantiu o título pelo protagonismo, em nível global, na defesa do meio ambiente e dos projetos para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Ela insiste que a decisão do Ibama de negar o licenciamento para pesquisa na bacia da Foz do Amazonas baseia-se em um parecer técnico, sem conotação política. Em janeiro deste ano, durante o Fórum Social Mundial, a ministra reiterou a necessidade de se acabar com a dependência de combustíveis fósseis e conclamou a indústria petrolífera a se engajar nesse propósito. “Estamos há 31 anos fazendo debate sobre mudança do clima, mas todos nós sabemos que o principal problema é o combustível fóssil. Para isso, temos que fazer uma transição envolvendo produtores e consumidores de petróleo.”

Licenciamento. Magda Chambriard pressiona o Ibama, defendido por Marina Silva – Imagem: José Cruz/ABR e Rafael Pereira/Agência Petrobras

Sobre o licenciamento da bacia da Foz do Amazonas, Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, afirmou ao jornal Valor Econômico que está dialogando com a Petrobras e reconheceu que algumas adequações estão sendo feitas para sanar os problemas existentes do parecer anterior. “É uma região pouco desbravada, com altíssima biodiversidade, muita pesca artesanal e industrial. E é uma região com pouca estrutura física para o atendimento de um eventual acidente. A equipe continua analisando todas essas questões.” Segundo Agostinho, na extensão da Margem Equatorial já existem poços perfurados no Ceará, mas que não estão produzindo. Em 2023, a Petrobras conseguiu licenças para procurar petróleo no Rio Grande do Norte, nas bacias sedimentares Ceará e Potiguar. Além dessas duas e da Foz do Amazonas, a Margem Equatorial ainda tem as bacias Barreirinhas, no Maranhão, e Pará-Maranhão.

“Só na costa Amazônica, há 328 blocos de petróleo, alguns em oferta e outros em estudo, numa extensão de 56 mil quilômetros quadrados. Temos nessa região a segunda maior cobertura de manguezais do mundo, o que corresponde a 80% dessa vegetação no Brasil, várias terras indígenas e territórios quilombolas, além de uma indústria pesqueira consolidada. Tudo isso estará sob ameaça, caso haja a exploração de petróleo”, destaca o biólogo marinho Vinícius Nora, gerente de clima e oceanos da ONG Instituto Arayara. “Amazônia sustentável e petróleo não parecem caber na mesma cena.” •

Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pés em duas canoas’

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