Política
Pelos rincões do cosmo
No sertão da Paraíba, um radiotelescópio do tamanho do Maracanã vai investigar a expansão do universo


Pouco conhecida até mesmo pela ciência, a energia escura do universo é o principal objeto de investigação do maior radiotelescópio da América Latina, o Bingo (sigla em inglês para Oscilações Acústicas de Bárions de Observações Integradas de Gás Neutro), que está sendo instalado no município de Aguiar, no sertão da Paraíba, a 450 quilômetros de João Pessoa. O projeto esteve na agenda do presidente Lula na recente viagem que fez a Pequim e consta na declaração conjunta assinada por Brasil e China, aprofundando a parceria estratégica global entre os dois países, divulgada em 14 de abril. No documento, os dois chefes de Estado declararam apoio mútuo ao Bingo e ressaltaram que “o uso pacífico do espaço exterior, incluindo a exploração do espaço profundo, deve ter o Direito Internacional como base e deve ser favorável à promoção da cooperação internacional”.
Um dos únicos projetos científicos internacionais a ter presença majoritária de cientistas brasileiros na coordenação, o Bingo promete ser o único radiotelescópio do mundo a fazer leitura das ondas acústicas de bárion no universo, usando tecnologia de ponta, como a nova geração de radares. Esse feito coloca o Brasil no topo da ciência no campo da física e da astronomia. Coordenado pela USP e pela Universidade Federal de Campina Grande, o projeto conta com a expertise do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Toda estrutura física está sendo fabricada pela gigante chinesa CETC 54, a mesma empresa que construiu o maior radiotelescópio do mundo. O projeto é financiado pelos governos de São Paulo e da Paraíba, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pela chinesa Yangzhou University.
O embrião do Bingo data do início deste século e envolve mais de cem pesquisadores do mundo inteiro. O principal objetivo é mapear emissões de hidrogênio no espaço escuro, através das ondas de rádio, para estudar a expansão do universo. Ou seja, com base nas emissões de hidrogênio neutro no espaço profundo e, a partir daí, com o uso das oscilações acústicas de bárions como régua-padrão, será possível medir o ritmo dessa expansão. Segundo os cientistas, em torno de 95% do universo faz parte desse espaço escuro e desconhecido. Traduzindo, apenas 5% do universo foi mapeado pela ciência. “A parte escura não interage com a luz, a gente não consegue ver. É um líquido transparente que está aí pelo universo e não sabemos o que é, só que ele tem peso, tem massa, e essa energia escura faz com que o universo não apenas se expanda, mas faça isso aceleradamente”, explica o cientista e físico Élcio Abdala, coordenador-geral do Bingo e professor da USP.
A estrutura física a ser utilizada para os estudos corresponde a, aproximadamente, o tamanho do Estádio do Maracanã e é formada por duas placas metálicas e espelhadas, com curvas parabólicas e hiperbólicas, que coletam a informação na forma de radiação, jogam uma para a outra num projeto óptico, e daí enviam os sinais para várias cornetas que compõem a estrutura do radiotelescópio, as quais têm quase 5 metros de comprimento e a boca com quase 2 metros de diâmetro. “O Bingo é uma espécie de telescópio que, em vez de coletar luz como estamos acostumados a ver, vai recolher ondas de rádio. A gente não coloca o olho para enxergar o céu e os objetos como num telescópio comum, mas consegue coletar as ondas de rádio que os corpos celestes emitem, as quais são geradas por processos físicos”, explica Alexandre Wuensche, coordenador científico do projeto e diretor do Inpe.
O local que abriga o equipamento foi escolhido por ser uma região sem interferência de celulares ou aviões
Amílcar Rabelo, pesquisador da UFCG e coordenador do projeto ao lado de Abdala, acrescenta que o radiotelescópio brasileiro vai medir onde tem mais e onde tem menos átomos de hidrogênio neutro, desenhando uma espécie de mapa que possibilita adentrar na energia escura para medir a expansão do universo. “A gente fixa um instante no tempo cosmológico do universo e aí mede como estão distribuídos parcialmente esses hidrogênios. Com isso, a gente vai poder fazer como se fosse um filme, como se fossem fotografias, em distintos instantes de tempo. Isso vai nos dar informações de como está ocorrendo essa expansão acelerada do universo.” A previsão é de que, até o fim do ano, a estrutura física do Bingo esteja toda implantada, mas os dados propriamente ditos só começarão a ser registrados em 2024.
“Os primeiros resultados devem aparecer no fim de 2024. Antes tem a fase que a gente chama de comissionamento, uma parte mais científica, que é de calibração das próprias observações e demora alguns meses para ser feita. As observações são muito complexas, dependem de você dar uma volta em todo o processo, porque o telescópio é fixo. Ele vai olhando para o Céu com a rotação da Terra e vai mudando conforme nosso planeta vai se envolvendo em torno do Sol. Um ano é o tempo necessário para olharmos toda a volta do universo”, salienta Abdala, acrescentando que, depois das primeiras observações, ainda será necessário recalibrar as direções para ter observações mais detalhadas.
No decorrer dos 20 anos em que o Bingo vem sendo desenvolvido, outros objetos de estudo foram sendo incorporados ao projeto original. Além de medir a expansão do universo, o radiotelescópio tem entre as prioridades observar fenômenos mais recentes, como rajadas rápidas de rádio, objetos extremamente energéticos, velozes, curtos e até então não identificados. “Por ironia do destino ou sorte nossa, esses objetos podem ser observados na mesma faixa de frequência que é utilizada pelo Bingo”, diz Abdala, acrescentando que a escolha do sertão paraibano para a instalação do equipamento deu-se por ser uma região sem contaminação ou interferência de sinais de celular ou aeronaves, por exemplo.
“O governo da Paraíba investe em um projeto científico de alto nível, que vai fazer de Aguiar um ponto de atração global. Já estamos colhendo frutos. Várias pessoas que têm se formado, feito doutorado em torno do projeto, que trabalham com estatística, têm sido requisitadas por bancos, pelo setor financeiro, para trabalhar com análise de risco. Essas pessoas passam a ter remunerações consideráveis, às vezes trabalhando no próprio estado da Paraíba”, celebra o secretário-executivo da Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia, Inovação e Ensino Superior da Paraíba, Rubens Freire, ressaltando que o estado já aplicou 13 milhões de reais no Bingo, quase o mesmo montante destinado pela USP, que alocou 14 milhões para o projeto. •
Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pelos rincões do cosmo’
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