Política
Pelo direito de existir
Novo programa combate a violência contra a população LGBTQIA+ em comunidades tradicionais e no campo


Cleijomar Vasques tinha apenas 16 anos quando foi golpeado na cabeça, não resistiu aos ferimentos e morreu. Indígena da etnia Guarani-Kaiowá, seu corpo foi jogado à beira da rodovia MS-156, próximo à reserva Limão Verde, em Amambai, no Mato Grosso do Sul. O motivo do crime bárbaro, ocorrido há dois anos, foi o simples fato de a vítima ser homossexual. À época, outros dois indígenas tiveram o mesmo destino: Timi Vilhalva e Gabriel Rodrigues, alvos de uma campanha de ódio e perseguição a pessoas LGBTQI+ indígenas, realidade que se repete nas comunidades quilombolas e ribeirinhas e em áreas rurais. São muitos, embora ainda subnotificados, os casos de LGBTfobia nesses territórios. Nos últimos três anos, pelo menos cinco indígenas foram assassinados por esse motivo, centenas sofreram ameaças ou foram vítimas de todo tipo de violência e muitos cometerem suicídio porque não aguentaram a pressão. No campo, pelo menos cinco pessoas LGBTQIA+ também foram vítimas de violência nos últimos cinco anos, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Como forma de combater a onda de violência contra esse público, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em parceria com as pastas da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas, criou o Programa Nacional de Enfrentamento à Violência e de Promoção dos Direitos Humanos e das Pessoas LGBTQIA+ nos Territórios do Campo, das Águas e das Florestas, denominado Programa Bem Viver+. Lançado por uma portaria publicada em 10 de dezembro e assinada pelas ministras Macaé Evaristo, Anielle Franco e Sônia Guajajara, o programa pretende formar lideranças que promovam campanhas de prevenção da violência nessas localidades. A partir daí, os assistidos receberão orientação sobre autoproteção e autocuidado para o enfrentamento à LGBTfobia. O Bem Viver+ também vai oferecer apoio técnico a iniciativas locais, ações focadas na promoção da saúde mental e estímulo ao acolhimento adequado, seguro e sem discriminação pelos agentes públicos, com respeito às especificidades dos povos.
A ideia é envolver todas as esferas da comunidade e abarcar outros alvos constantes de violência, como mulheres e crianças. “Queremos conectar todas as potencialidades envolvendo as comunidades que já têm uma cultura ancestral de solidariedade e de resistência forte e a capacidade do Estado em promover políticas públicas que cheguem até essas localidades para garantir direitos diversos, como saúde e educação, mas também o direito à vida e a permanecer no território”, destaca Alessandro Mariano, da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos. Outro ponto previsto no programa é a promoção de espaços de acolhimento para pessoas em situação de violência que, eventualmente, não possam retornar ao convívio familiar e comunitário.
Os indígenas têm taxas de suicídio muito superiores à média nacional, e boa parte dos casos envolve homossexuais
Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas afirmou seu compromisso com a promoção da diversidade, a defesa dos direitos humanos e a construção de um futuro mais justo para as pessoas. De acordo com a pasta, o programa pretende criar cinco núcleos regionais até 2026 para contemplar indígenas de diferentes biomas que enfrentam situações de violação de direitos. A pasta também está elaborando o projeto Raízes da Resistência Indígena LGBTQIA+, que será vinculado ao Viver Bem+, visando contribuir para a construção de comunidades mais seguras e inclusivas. O projeto terá foco na ampliação da conexão das lideranças indígenas LGBTQIA+ com suas raízes culturais, fortalecendo suas identidades e resistência.
Jéssica de Souza, de 28 anos, foi vítima de estupro aos 16. Lésbica e jovem liderança do povo Guarani-Kaiowá, ela associa a violência sofrida à sua identidade de gênero. Depois do assassinato de Cleijomar Vasques, a quem era muito próxima, Jéssica assumiu o protagonismo no enfrentamento à LGBTfobia e hoje é uma das coordenadoras da Juventude Indígena da Diversidade (Juind), com atuação em Mato Grosso do Sul. Ela diz que o clima de ódio e medo impera nos territórios indígenas. “A gente sai de casa sem saber se vai voltar vivo. Não sabe a data nem a hora certa para sair e para voltar, porque a violência é uma constante. O que a gente quer é dignidade. Se não nos aceitam, pelo menos nos respeitem. A gente quer ter o direito de viver, do mesmo jeito que qualquer outra pessoa. A gente também quer ter o direito de sonhar, assim como aqueles que nos maltratam.”
O ativista Gualoy-Kaiowa, da TI Tajassu Ygua, em Douradina, também em Mato Grosso do Sul, acrescenta que boa parte dos casos de suicídio entre indígenas envolve pessoas LGBTQIA+. Em 2023, segundo o Conselho Missionário Indigenista (Cimi), o número de suicídios entre indígenas no Brasil foi de 180, aumento de 53% em relação a 2022. Um levantamento realizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib, revela que a taxa de suicídios entre indígenas é 20 vezes maior que a média nacional, e os jovens LGBTQIA+ são as maiores vítimas. “A gente sofre muita violência psicológica e isso leva o indígena a tirar a própria vida”, diz Gualoy-Kaiowa, citando o recente caso de um jovem de 22 anos que se matou após saber da morte de um amigo LGBTQIA+.
Esforços. As ministras Anielle Franco e Macaé Evaristo se uniram para lançar o Bem Viver+. O MST também desenvolve ações para acolher a população LGBTQIA+ – Imagem: Redes Sociais/MST-Brasil e Stéff Magalhães/MDHC
“No Bem Viver+ vamos fazer um trabalho de conscientização que abarque toda a comunidade, para que as pessoas respeitem seus pares e entendam que, às vezes, até involuntariamente, elas estão praticando determinada violência que pode levar ao suicídio de quem está sendo atingido”, afirma Mariano. “Essas comunidades têm uma forma de reprodução da vida social e de produção familiar que, muitas vezes, toma como referência o sexo biológico, o papel do masculino e do feminino. Quem se identifica como LGBTQIA+ acaba sofrendo violência. Muitos querem obrigar essas pessoas a se adequar à sua identidade de gênero e orientação sexual, mas isso não pode acontecer. Esses sujeitos têm o direito de viver, de amar, ser quem quiserem ser e em qualquer lugar deste País”, completa.
Mariano recorre às origens e à ancestralidade dos povos indígenas para defender que a dimensão de solidariedade seja posta em prática na relação com pessoas LGBTQIA+. “Essas comunidades têm um histórico de coletividade, de partilha, de cuidado, mas esse perfil deixa de existir quando está em questão o respeito aos sujeitos diferentes. O Bem Viver+ surge para mudar essa realidade, a partir da implantação de um conjunto de ações, começando por um diagnóstico para identificar o grau de violência que ocorre.” Antes mesmo de oficializar o Bem Viver+, o Ministério dos Direitos Humanos instituiu um projeto piloto no território Guarani-Kaiowá, diante do alto grau de violação dos direitos humanos na região. Em junho deste ano, aconteceu o primeiro Encontro LGBTQIA+ Indígena Guarani-Kaiowá e, em outubro, uma comitiva da pasta visitou seis comunidades, quando os técnicos do ministério ouviram cerca de 400 pessoas sobre as violências sofridas e promoveram oficinas sobre direitos humanos.
“São mais de 40 mil indígenas entre os Guarani-Kaiowá e, desde 2022, a gente vem acompanhando esse processo de violência. Estamos criando uma rede que envolve o entorno dessas comunidades, com o Ministério Público, a Secretaria de Segurança Pública e organizações de defesa dos direitos humanos. Precisamos ter instituições do Estado no entorno desses locais que cumpram o seu papel na proteção da vida dessas pessoas”, defende Mariano, acrescentando que a ideia é expandir o projeto para todas as regiões do Brasil, priorizando as áreas com mais casos de violações de direitos, a exemplo do Ceará. Em 2021, durante uma ocupação no território Cruzeiro Sagrado do Pajé Potyguara, na Terra Indígena Potyguara Lagoinha, uma liderança LGBTI+ indígena foi detida e levada a uma viatura policial. A violência sofrida levou o jovem a ter sucessivas crises de convulsões.
Desde maio de 2023, CPT, MST e Via Campesina reúnem dados sobre a LGBTfobia no campo para incluir em relatório anual
Em Rondônia, também em 2021, uma militante sem-terra lésbica foi retirada do Acampamento Tiago do Santos e submetida a uma série de torturas por parte de cinco policiais, que estavam em duas viaturas. A violência foi acompanhada de insultos, ameaças e intimidação corporal e psicológica. “Assim como nas terras indígenas, no campo também somos vítimas da forte influência das igrejas neopentecostais. E isso faz com que se reforce a ideia do machismo, do patriarcado, da família tradicional, heterossexual, heteronormativa, branca na sua maioria. Vários dos casos de violência são internos, acontecem na própria comunidade. São moradores, líderes da comunidade, que reforçam o poder masculino nos territórios”, destaca Luana Oliveira, do Coletivo LGBT do MST, ressaltando que o programa Bem Viver+ vem para se somar ao trabalho que algumas entidades ligadas ao campo já vêm realizando, como a Via Campesina e o próprio MST.
Desde maio de 2023, essas duas entidades, em parceria com a CPT, vêm colhendo informações sobre a LGBTfobia no campo, dados que serão divulgados oficialmente em maio de 2025, dentro do relatório anual da CPT sobre violência no campo. “Há mais de dez anos, estamos formando multiplicadores defensores dos direitos humanos no campo, a maioria jovens. A ideia é desenvolver uma consciência na sociedade sobre a importância de deixar que as pessoas vivam livres de violências”, destaca Souza, ressaltando a importância do Programa Bem Viver+, que dará mais visibilidade ao enfrentamento à LGBTfobia. •
Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pelo direito de existir’
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