Política
Pegada amazônica
A marca francesa Veja aposta em um tênis com borracha da floresta e material reciclado
O barulho do látex derramado no balde é quase imperceptível em meio aos muitos sons da mata. O impacto está, no entanto, longe de ser discreto. Ao contrário do ruído de motosserras, o trabalho dos seringueiros mantém a floresta em pé. Em Xapuri, no Acre, eles ainda percorrem trilhas abertas há gerações na reserva extrativista Chico Mendes. Dali sai parte da borracha usada nos calçados de uma marca francesa de tênis que, há duas décadas, aposta na Amazônia como fonte de matéria-prima e negócios. O trabalho nos seringais, que combina resistência e geração de renda, ganhou espaço nos debates da COP30, realizada pela primeira vez em solo amazônico.
Enquanto os holofotes da conferência se voltam para governos e grandes acordos internacionais, uma parte menos visível do debate acontece fora dos pavilhões oficiais, onde a sustentabilidade se mede em látex e plástico reciclado. Presente em Belém, a marca de tênis Veja, que participa pela primeira vez de uma conferência do clima, levou representantes de suas redes locais de produção, entre eles seringueiros, catadores e agricultores, para painéis sobre economia da floresta e justiça climática. A ideia, segundo porta-vozes da empresa, é mostrar que o desenvolvimento sustentável pode caminhar lado a lado com o consumo consciente.
A marca informa ter adquirido, em 2024, mais de 900 toneladas de borracha, produzidas por 2,8 mil famílias de 20 cooperativas e associações do Acre, Amazonas, Rondônia, Pará e Mato Grosso. Também utiliza poliéster reciclado de garrafas PET, cerca de 120 toneladas, o equivalente a 6 milhões de garrafas de 500 mililitros, coletadas por 200 catadores e catadoras de 13 cooperativas de Minas Gerais. “Para quem vive e trabalha diretamente nessas cadeias produtivas, a COP acontece todos os dias nos territórios”, afirma Carlos Rigolo Lopes, coordenador de projetos de impacto socioambiental da grife.
Fundada em 2005 pelos franceses François Morillion e Sébastien Kopp, a Veja virou queridinha de públicos descolados na França e no Brasil, onde está presente desde 2013. Na contramão do setor, construiu sua reputação sem publicidade e sobre conceitos como transparência, comércio justo e impacto social, tornando-se um dos símbolos globais da chamada “moda sustentável”. No País, vive um momento de expansão: inaugurou em São Paulo, neste ano, um espaço de três andares, seu maior ponto de venda próprio no mundo.
Nos primeiros anos da grife no Brasil, a borracha “era símbolo de pobreza”, relembra Morillion, durante uma viagem ao Acre acompanhada por CartaCapital. Segundo ele, a transformação das comunidades extrativistas é visível. “As famílias estão conseguindo viver com mais dignidade.” Lopes acrescenta: “Pagamos, em média, quatro vezes o valor de mercado pela borracha nativa, garantindo que o recurso chegue direto às famílias extrativistas”. O mesmo modelo se aplica ao poliéster reciclado, coletado em Minas Gerais, onde a renda adicional permitiu desde a compra de equipamentos até o custeio de férias, algo impensável para muitos há décadas.
A empresa, reconhece Lopes, não é “100% sustentável” e o termo, usado à exaustão, esconde contradições. “Muitas marcas começam pela comunicação, a Veja começou pelas parcerias nos territórios.” Para ele, a escolha também impôs barreiras. “Produzir na Amazônia é lidar com ramais precários, longas distâncias e uma logística desafiadora.”
A matéria-prima é adquirida de seringueiros e catadores de lixo
Enquanto marcas como a Veja exibem cadeias produtivas com impacto direto, o setor da moda e do têxtil tenta organizar-se em torno de compromissos mais amplos. Durante a COP30, em Belém, o Pacto Global da ONU – Rede Brasil apresentou o Grupo de Trabalho de Moda e Têxtil, que reúne concorrentes históricos (como C&A, Malwee, Hering, Live! e Riachuelo) em torno de temas como direitos humanos, rastreabilidade e justiça climática. “O objetivo é transformar discurso em ação prática”, diz Gabriela Almeida, gerente executiva de Direitos Humanos e Trabalho do Pacto Global. Desde 2024, o grupo busca construir um espaço de ações coletivas com empresas, cooperativas e sociedade civil. Na COP30, lançou um posicionamento pela transição justa e um guia setorial para mitigar riscos de violações e integrar trabalho decente, igualdade de gênero e consumo sustentável. Entre os compromissos estão políticas afirmativas, transparência e inclusão produtiva nos elos mais vulneráveis, costureiras, catadores, agricultores e extrativistas. “A sustentabilidade só será real quando a inclusão social fizer parte de todas as esferas da empresa”, acrescenta Almeida. O desafio, admitem mesmo os entusiastas da agenda, é transformar compromissos em políticas concretas que cheguem a quem mantém a floresta, e a economia, em pé.
Há quem lembre que a transparência ainda é a fronteira mais opaca da moda. Lançado pouco antes da COP30, o Índice de Transparência da Moda Brasil – Edição Clima, do Instituto Fashion Revolution Brasil, mostra que apenas 12% das marcas que atuam no País reduziram emissões de fato, nenhuma investe em adaptação climática para proteger trabalhadores, e 80% não têm compromissos públicos de desmatamento zero. “A falta de transparência sobre investimentos em adaptação climática e metas concretas revela um problema estrutural na moda”, afirma Cláudia Castanheira, gestora de comunicação e pesquisadora do instituto. “Se há discurso, mas não há transparência, não há espaço para o marketing verde.” Para ela, o setor ainda precisa transformar a retórica em ação. “Dizer que é contra o desmatamento não basta, é preciso mostrar como e com quem se está atuando.” Castanheira reconhece a importância de iniciativas coletivas, como as da COP30, mas faz um alerta. “Essas coalizões são importantes para criar conexões e sinergias entre as empresas, mas, se não houver compromisso real e transparência, há o risco de reforçar o greenwashing, mesmo que de forma involuntária.”
No fim das contas, o som quase imperceptível do látex no balde talvez diga mais sobre o futuro da moda, e do planeta, do que os discursos ecoados nos espaços da COP30. Entre os debates em Belém e os ramais amazônicos, disputa-se o sentido da palavra sustentabilidade. Para uns, ela cabe em relatórios, para outros, nas mãos marcadas de trabalho e renda sem devastação. Resta separar o compromisso real da sustentabilidade de fachada. Enquanto o mercado discute métricas e acordos, os eventos extremos lembram que o tempo da Amazônia e do planeta não é o do consumo, e que nossa sobrevivência depende das florestas em pé. •
Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pegada amazônica’
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