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Força-tarefa do Ministério da Justiça vai investigar 57 massacres ocorridos no campo desde 1985

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Pária no mundo. A chacina de Eldorado dos Carajás e o assassinato de Dorothy Stang figuram entre os horrores que mancham a reputação do Brasil no exterior – Imagem: Alberto César Araújo/Greenpeace Brasil, Global Church e João Ripper/Arquivo CPT
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Disposto a reverter a imagem de vilão ambiental e pária científico colada ao Brasil durante os anos Bolsonaro, o governo Lula tem a oportunidade de avançar em outra seara, na qual há décadas somos igualmente malvistos: a impunidade aos crimes cometidos no campo. Célebre em todo o mundo por episódios como os assassinatos do ambientalista Chico Mendes (1988) e da missionária Dorothy Stang (2005) ou por massacres contra trabalhadores rurais como os perpetrados em Corumbiara (1995) e Eldorado dos Carajás (1996), o Brasil teve desde então uma miríade de outros casos de menor repercussão, quase sempre associados à luta pela reforma agrária e à defesa do meio ambiente. A morosidade da Justiça é quase uma garantia de que os crimes vão prescrever sem punição.

Com a intenção de passar a limpo ao menos parte dessas histórias em geral mal contadas, o governo decidiu dar fôlego ao projeto Memórias dos Massacres no Campo, lançado em 2020 pela Comissão Pastoral da Terra e pela Universidade­ de Brasília. Até então, o maior mérito da iniciativa foi denunciar o recrudescimento da violência rural nos últimos anos, sobretudo no governo Bolsonaro. A nova fase da pesquisa, com 2 milhões de reais de orçamento e previsão de dois anos de duração, conta com a participação do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que montou uma força-tarefa para analisar 57 chacinas ocorridas de 1985 a 2023. A parceria com a pasta, explicam os coordenadores do projeto, “é para apurar a responsabilidade criminal de mandantes e executores de crimes de assassinato configurados como massacres no campo, a partir do levantamento documental dos processos e investigações e construção de acervo audiovisual”.

O estudo dos casos abrange 11 estados, com destaque para o Pará, onde ocorreu a metade dos massacres (29). Os demais episódios tiveram lugar em Rondônia (9), Roraima (4), Minas Gerais (4), Bahia (2), Amazonas (2), Mato Grosso (2), Rio Grande do Sul (2), Amapá (1), Espírito Santo (1) e Tocantins (1). “O principal objetivo é preservar a memória e apontar a ausência de políticas públicas adequadas em relação aos massacres ocorridos no campo desde a reabertura democrática em 1985”, diz Alexandre Bernardino Costa, doutor em Direito Constitucional e coordenador do projeto na UnB. Além de elencar os principais massacres, a pesquisa pretende entender o contexto histórico e político no qual eles estão inseridos. Ao mesmo tempo, busca verificar por que os processos não são aprofundados: “Eles se estendem no tempo, e essa morosidade leva a uma não apuração efetiva e à prescrição dos crimes contra os trabalhadores. Nesse sentido, o aparelho de Justiça – seja no âmbito da apuração policial, da promotoria ou da magistratura – pode ter sido conivente com os massacres”.

Omissão. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pela morte de Antonio Tavares, homenageado em monumento às margens da BR 277 – Imagem: Juliana Barbosa/MST

Equipes de pesquisadores nos estados trabalharão sob a coordenação do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da UnB na construção de levantamentos documentais dos casos e processos. A meta é a criação de um repositório de memória e a elaboração de relatórios com sugestões de aperfeiçoamento das políticas de acompanhamento dos casos de violência no campo. O projeto prevê ainda etapas de divulgação e mobilização social e a realização de um seminário nacional para exposição dos resultados da pesquisa e apresentação das sugestões legislativas e de políticas públicas aos três poderes da República. Além do dossiê final, que será publicado ao cabo dos dois anos de pesquisa, estão previstas ações como o treinamento de agentes de Segurança Pública e da Justiça para lidar com os crimes no campo, a formação e fortalecimento de advogados populares e a criação de programas de proteção a vítimas, pessoas ameaçadas e testemunhas.

Integrante da coordenação da pesquisa pela CPT, Euzamara Carvalho diz que o projeto é consequência do trabalho de documentação dos casos de conflitos e de constituição de um acervo sobre os massacres: “Agregamos histórias coletivas de sujeitos submetidos a constantes violências, agravadas pela defesa da propriedade privada, o avanço do agronegócio, a instauração de megaprojetos e a expropriação do meio ambiente para gerar riquezas para uma classe social dominante”.

Carvalho afirma que a parceria pode contribuir para a “reversão do quadro histórico de impunidade que permeia a luta pela terra no Brasil” ao aproximar a universidade e o Ministério da Justiça dos conflitos no campo. Ela acrescenta que “diferentes caminhos precisam ser percorridos” para a responsabilização dos criminosos: “A denúncia da impunidade no campo é uma pauta histórica e precisa ser priorizada pelo Estado, de forma a criar caminhos sinérgicos de atuação para o acompanhamento de massacres, apuração dos crimes cometidos, cumprimento de mandados de prisão dos responsáveis e atuação para diminuição da violência nos territórios”.

O Brasil tem hoje 1.050 conflitos no campo, a envolver 181.304 famílias

O olhar para o passado é também essencial para chamar atenção para os conflitos atuais, que se sucedem quase diariamente. De acordo com um levantamento sobre as “tensões agrárias” realizado pela CPT, o Brasil tem hoje 1.050 conflitos no campo, de Norte a Sul, a envolver 181.304 famílias. O ranking da violência rural é puxado pela Região Norte, com 420 conflitos, seguida por Nordeste (324), Centro-Oeste (184), Sul (62) e Sudeste (60). A violência no campo, que diminuiu nos governos de Lula e Dilma Rousseff, voltou a crescer no período de Michel Temer e explodiu a partir do governo Bolsonaro, que incentivou o derrame de armas e a formação de milícias de fazendeiros. A CPT e outras organizações e movimentos sociais lançaram, em 2022, a Campanha Contra a Violência no Campo: “Foi a forma de fazer uma atuação conjunta diante da gravidade dos conflitos, que aumentaram nos últimos anos e ceifaram vidas em lutas”, diz Carvalho.

Embora ressalte que não se repetiu nos últimos anos um episódio tão grave quanto Corumbiara ou Eldorado dos Carajás, que deixaram como saldo, respectivamente, 12 e 21 trabalhadores rurais assassinados, Alexandre Costa afirma que vivemos no País um momento de escalada a perdurar por bastante tempo: “Após um arrefecimento nas gestões petistas, houve aumento significativo da violência no campo na gestão de Temer e, depois, uma tensão muito grande no governo Bolsonaro, com o acirramento das disputas pela terra por fazendeiros, madeireiros e garimpeiros”. O professor da UnB diz que a situação se agravou com a política de incentivo à invasão de terras indígenas para mineração, a entrada do crime organizado na Amazônia e a repressão à luta pela terra que caracterizaram o governo anterior. Ele ressalta ainda a dimensão ambiental da questão: “A violência está relacionada diretamente à expansão da fronteira agrícola no chamado Arco do Desmatamento, que pega o Sul e o Sudoeste do Pará, passa pelo Sul do Amazonas e se estende até o Acre”.

O deputado federal Valmir Assunção, do PT, diz que o projeto é fundamental para que os crimes não caiam no esquecimento: “Ajuda a resgatar a memória daqueles que lutaram e perderam suas vidas lutando”. O parlamentar, um dos líderes nacionais do MST, considera o momento oportuno para o governo avançar nessa questão: “É possível agilizar os processos de assentamentos da reforma agrária, de reconhecimento das áreas indígenas e de titulação das áreas quilombolas, além de criar uma política específica para pescadores artesanais e marisqueiros. Temos que dar um passo adiante nessas políticas”. Do Congresso, lamenta Assunção, é melhor não esperar muita coisa. “A maioria dos parlamentares é reacionária e não aceita de forma alguma que o povo pobre e trabalhador, que as mulheres e jovens negros, tenham oportunidades. Esse Congresso não tem condições de construir uma política que crie oportunidades de fortalecimento de trabalhadores sem-terra, indígenas e quilombolas.”

Fonte: Comissão Pastoral da Terra

Titular da Secretaria de Acesso à Justiça, responsável pela coordenação geral do projeto no MJSP, Sheila de Carvalho diz que a expectativa do governo é obter um diagnóstico preciso da violência rural no País: “Isso permitirá a qualificação das políticas públicas em uma lógica de prevenção de conflitos, conciliação e mediação dessas situações no campo, assim como eventuais políticas de apuração, aprimorando a investigação e a resolução desses crimes nos estados”. A partir do levantamento documental e audiovisual a ser realizado, acrescenta a secretária, a pasta deverá “propor políticas de aperfeiçoamento e acompanhamento dessas situações junto ao Estado brasileiro para melhor responder aos casos, bem como auxiliar as unidades federativas”.

Reverter a impunidade em alguns casos é impossível, porque muitos deles já estão prescritos. Outros vários estão a caminho da prescrição. Costa ressalta, porém, a importância simbólica de um posicionamento do governo brasileiro, até porque alguns processos foram ou estão sendo analisados em instâncias como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A mais recente menção ao Brasil na CIDH aconteceu na sessão realizada em 15 de março, quando foi anunciada a condenação do Estado brasileiro pela omissão na morte de Antônio Tavares e no ferimento de ­dezenas de outros militantes sem-terra durante a repressão policial a uma marcha do MST no Paraná, em 2000. “Há casos em que não existe mais a pretensão punitiva, mas vários deles são submetidos à avaliação das cortes internacionais, o que gera, se não uma punição direta, pelo menos a possibilidade do estabelecimento da memória e da reparação para as famílias das vítimas desses massacres.”

Integrante do Grupo Prerrogativas, o advogado Marco Aurélio de Carvalho afirma que tratar de outra forma os crimes no campo pode ser um fator diferencial positivo para o Brasil: “É importante que esses delitos sejam devidamente ape­nados e os res­pon­sá­veis condenados, para que isso não volte a ocorrer em um futuro próximo. Que esses crimes não prescrevam e que haja um acompanhamento pari ­passu de cada um dos andamentos dessas ações”. Já Costa considera que agir rápido é crucial, até mesmo para impedir uma onda de violência no campo, no caso de retorno da direita ao poder no País: “Temos uma situação ambiental e social muito grave. Se os órgãos de Estado não desarmarem essa bomba-relógio durante o governo Lula, teremos novamente esse tipo de explosão. A pesquisa aponta essa possibilidade”. •

Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Passado a limpo’

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