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Para acomodar colaboracionistas, PF quer dobrar sua rede de adidos no exterior

Adido é alguém que faz a ponte entre polícias. São cargos cobiçados pelos delegados, com salário de 11 mil dólares, fora mordomia

Premiados. Duarte, braço direito de Maiurino, irá para Ottawa. Almeida Filho passará um tempo em Santiago - Imagem: Marcelo Camargo/ABR e Sérgio Galdino/Alesp
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Gabriel Boric, o líder estudantil eleito presidente do Chile em 20 de dezembro, disse nos últimos dias que espera “trabalhar ao lado de Lula”. Duas semanas antes, Jair Bolsonaro havia comentado que não irá à posse do esquerdista, em março. Não irá, mas no apagar das luzes de 2021 criou o cargo de adido da Polícia Federal na embaixada brasileira em Santiago, a capital chilena. Designou para a função o delegado Lindinalvo ­Alexandrino de Almeida Filho, chefe da PF em São Paulo no início do governo e, ao que consta, próximo do clã presidencial.

A nova vaga de adido faz parte de um plano da PF de dobrar o número desses postos, de 15 para 30. O plano foi submetido no fim de 2021 ao Ministério das Relações Exteriores, para endosso do chanceler Carlos França (que, aliás, acaba de assinar com Bolsonaro e Paulo Guedes a criação de um escritório econômico em Washington). “Por que agora no último ano do governo? As justificativas para criar essas adidâncias estão presentes há muito tempo”, diz um diplomata que trabalhou ao lado de adido policial. Um delegado da PF não tem dúvidas sobre as motivações da própria corporação: “É um prêmio, um refúgio para quem serviu ao governo Bolsonaro. Logo após a eleição, vai todo mundo para ­adidância. Estão com medo do DG do Lula”.

DG é como os federais chamam o diretor-geral da PF, cargo ocupado pelo delegado Paulo Maiurino desde abril de 2021. Seria de Maiurino a decisão de tirar do papel ideias antigas de ampliar a rede de adidos, a fim de pavimentar uma rota de fuga para colaboracionistas de Bolsonaro, caso este perca a eleição. Seu braço direito, Cairo Costa Duarte, alçado ao posto de diretor-executivo com Maiurino, é um dos agraciados. No decreto publicado em 31 de dezembro de 2021 que despachou Almeida Filho para o Chile, Bolsonaro criou um cargo semelhante para Duarte. Em Ottawa, a capital do Canadá.

As nomeações feitas pelo presidente nos últimos dois anos ilustram a tese de que se trata de prêmio a colaboracionistas. O antecessor de Maiurino, ­Rolando Alexandre de Souza, foi designado em maio do ano passado para Washington. Dois diretores da PF na gestão dele se deram bem em seguida. Em junho, Cecilia Silva Franco (ex-diretora de gestão de pessoal) foi escolhida para Lisboa. Em agosto, Alexandre da Silveira Isbarrola (ex-de inteligência), para Roma. Há indicações que chamam a atenção. Em abril de 2020, Bolsonaro mandou Adalton de Almeida Martins para Montevidéu. O policial era do GSI, órgão da Presidência. Em julho de 2021, o ex-capitão despachou Daniel Justo Madruga para Pretória, capital da África do Sul. Madruga comandou a PF na Bahia de 2015 a 2021. Foi na Bahia que, em fevereiro de 2020, morreu em um cerco policial o miliciano Adriano da Nóbrega, ex-PM metido nas rachadinhas de Flávio Bolsonaro.

Adido é alguém que faz a ponte entre polícias. Tem condições de saber mais a respeito de rotas internacionais de tráfico de drogas, esquemas de lavagem de dinheiro, células terroristas. Conhece de perto legislações que talvez sejam úteis aqui. Também pode cooperar com a investigação de brasileiros no exterior e de estrangeiros no Brasil. Dúvida: será que Souza e sua adjunta (Maria Cláudia Schiavolini Correa) ou algum dos três oficiais de ligação (adido de segundo escalão) da PF nos Estados Unidos fez algo pela captura de Allan dos Santos, que desde outubro de 2021 está com a prisão preventiva decretada pelo Supremo Tribunal Federal? O blogueiro está nos EUA e, em 26 de janeiro, foi ao funeral do “guru” bolsonarista Olavo de Carvalho.

Mas ser adido policial é principalmente uma mordomia. “É um cargo cobiçado na PF, uma geladeira de luxo”, diz um delegado. O salário é gordo, igual ao do número dois de uma embaixada, conforme apurou CartaCapital (a PF não prestou informações até a conclusão desta reportagem). Uns 11 mil dólares por mês, ou 59 mil reais pelo câmbio do dia do enterro do “guru”. Tomando-se esse valor por referência, um adido embolsa 2,3 milhões de reais durante a missão, que é de três anos. E ainda tem o aluguel pago pelo Erário, uma regalia de 3 mil a 4 mil dólares.

Ainda com base na remuneração mensal estimada de 11 mil dólares, tem-se que a rede de 15 adidos existente até dezembro de 2021 custava por ano cerca de 11,5 milhões de reais aos cofres públicos. Com a abertura dos postos em Santiago e Ottawa, a despesa subirá a 13,1 milhões. Se o plano de dobrar a rede vingar, o gasto chegará a 23,1 milhões.

No fim do governo Lula, em 2010, o Brasil tinha 12 adidos policiais (sete na América do Sul, três na Europa, um nos EUA e um na África do Sul). No primeiro mandato do petista, a PF havia baixado uma instrução normativa com critérios para um concurso pelo qual os policiais disputariam esses postos. A regra morreu em janeiro de 2009, em razão da nomeação, no mês anterior, do delegado Paulo Lacerda para Lisboa. O cargo tinha sido a forma encontrada por Lula para não deixar Lacerda na chuva, após tirá-lo da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, por causa das pressões políticas pós-Operação Satiagraha, aquela que prendera o banqueiro Daniel Dantas. A partir de 2009, a escolha de adidos tornou-se atribuição exclusiva do chefe da PF.

No governo Dilma Rousseff, surgiram quatro vagas (Espanha, México, Reino Unido e Venezuela). A rede de 16 foi mantida por Michel Temer. Em 2020, o governo Bolsonaro fechou o posto em Caracas. No ofício de 2021 ao Itamaraty com o plano de duplicar a rede, a PF propôs criar dois adidos na África (Angola e Nigéria), dois nas Américas (Chile e Canadá, já paridos), dois na Ásia (Japão e China), seis na Europa (Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda, Sérvia e Suíça), dois no Oriente Médio (Israel e Jordânia) e um na Rússia. O Itamaraty remeteu a proposta às embaixadas nesses países e teria havido pareceres contrários nos casos de China, Sérvia, Suíça e Japão. “Pode nascer uma grande rede de arapongagem para embaixadores do próximo governo”, diz um desconfiado diplomata.

Será? Recorde-se: Bolsonaro já disse ter um “sistema particular de informações”.

Após a conclusão desta reportagem, na manhã de 27 de janeiro, a assessoria de imprensa da Polícia Federal enviou, na noite de 27 de janeiro, as seguintes observações, em resposta a um pedido feito por CartaCapital em 25 de janeiro:

“Em relação à futura adidância da Polícia Federal em Santiago, observou-se que o Chile tem sinalizado interesse em aprofundar o relacionamento com o Brasil, em especial nas áreas de prevenção e enfrentamento do narcotráfico; de controle de fronteiras, incluindo aeroportos; e de prevenção e enfrentamento de crimes cibernéticos. O Chile, além disso, é um dos únicos países da América do Sul, juntamente com o Equador, ainda não servido por uma adidância policial.

No que se refere à futura adidância policial federal em Ottawa, foi notada a existência de potenciais interesses comuns, em áreas como as de policiamento e controle fronteiriço; o uso de novas tecnologias de investigação; a formulação de políticas coordenadas de segurança pública entre o governo federal e os demais entes federados; a troca de experiências em matéria de políticas de redução da oferta e da demanda de drogas; e a prevenção e o enfrentamento de crimes cibernéticos, entre outros temas. Foi registrada, à luz da importância da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) para a segurança do transporte aeroviário, de instalações aeroportuárias e de passageiros, a possibilidade de que o futuro adido policial acumulasse as funções exercidas pelo antigo oficial de ligação junto à OACI, em Montreal, cujas funções foram extintas. Por fim, o apoio prestado pelo Canadá a programas de assistência técnica e de criação de capacidades em terceiros países poderia, eventualmente, inspirar futuras ações de cooperação triangular”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Rota de fuga”

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