Política
Temer recua após cortar à metade recursos do Bolsa Família para 2019
O descaso ocorre em meio ao avanço da miséria no País. Em 2017, a extrema pobreza cresceu 11% e atingiu 14,8 milhões de brasileiros


Após Michel Temer conceder aumento salarial para os juízes federais e antecipar reajustes de servidores do Executivo antes previstos para 2020, um gasto adicional de ao menos 8 bilhões de reais, a proposta de Orçamento encaminhada pelo governo federal para o próximo ano assegura apenas 15 bilhões de reais para o Bolsa Família, metade da atual dotação do programa. A integralização dos recursos dependeria da aprovação de um crédito suplementar pelo Congresso Nacional, mas a equipe de Temer já anunciou um recuo.
Apresentado como referência no combate à extrema pobreza por numerosos organismos internacionais, a exemplo das Nações Unidas e do Banco Mundial, o Bolsa Família tem sido progressivamente dilapidado desde o impeachment de Dilma Rousseff.
Em maio de 2016, quando a presidenta foi afastada de suas funções pela Câmara dos Deputados, 11,4 milhões de brasileiros estavam desempregados, segundo a Pnad Contínua do IBGE, e o programa beneficiava 13,8 milhões de famílias de baixa renda. Hoje, a taxa de desocupação está 13% maior e o número de beneficiários do Bolsa Família permanece praticamente inalterado. Em julho, o governo pagou 13,7 milhões de benefícios, ante um contingente de 12,9 milhões de desempregados.
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Não é tudo. Nos dois últimos anos, os reajustes do salário mínimo ficaram abaixo da inflação. O valor dos benefícios do Bolsa Família permaneceu congelado por dois anos e somente a partir de julho teve um aumento de 5,67%. O resultado dessa política não poderia ser mais desastroso. No ano passado, a extrema pobreza cresceu 11% e atingiu 14,8 milhões de indivíduos, atesta um estudo da LCA Consultores, elaborado a partir de dados da Pnad Contínua.
Com o resultado, o contingente de miseráveis representava 7,2% da população brasileira em 2017, acima dos 6,5% verificados no ano anterior. A consultoria adotou o critério do próprio Banco Mundial, que considera “extremamente pobre” quem sobrevive com menos de 1,90 dólar por dia.
“Ao reservar apenas metade dos recursos do Bolsa Família no orçamento de 2019, o governo Temer apenas reitera que a agenda social não é prioritária. Essa não é, porém, a primeira vez que ele demonstra isso. No ‘Ponte para o Futuro’, ficava claramente dito que o foco das políticas sociais deveria ser a parcela dos 5% mais pobres da população, a única fatia que, segundo eles, não estava perfeitamente integrada à economia.
Ocorre que o Bolsa Família beneficia mais de 20% da população, observa a economista Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social de Dilma. O documento mencionado é da Fundação Ulysses Guimarães, ligada ao MDB, e foi publicado meses antes do impeachment.
Caso o Parlamento não aprovasse o crédito suplementar, artificio usado pelo governo para burlar a chamada “regra de ouro”, que impede o Executivo de emitir títulos da dívida pública para cobrir despesas correntes, o impacto social seria gigantesco.
“Quando deixei o governo, o Bolsa Família beneficiava, direta ou indiretamente, 44 milhões de brasileiros. Desse montante, 36 milhões só saíram da condição de extrema pobreza porque recebiam o benefício. Se houver um corte linear de 50% no programa, 18 milhões de cidadãos voltarão para a miséria”, alerta Campello. “É uma irresponsabilidade transferir para o Congresso a tarefa de garantir a sobrevivência dessas pessoas, cujo futuro está atrelado à aprovação ou não de uma receita extra.”
O desemprego cresce, mas a cobertura do Bolsa Família é a mesma (Guilherme Pinto/Ag. O Globo)A mesma estratégia usada pelo governo com o Bolsa Família será aplicada às aposentadorias. Dos 638 bilhões de reais previstos para o pagamento de benefícios previdenciários, 201 bilhões estão condicionados à futura aprovação, pelos deputados e senadores, de um crédito suplementar. Tudo para cobrir um rombo de 258,18 bilhões de reais na regra de ouro em 2019, pelas contas do Ministério do Planejamento.
Durante entrevista coletiva na sexta-feira 31, o ministro Esteves Colnago minimizou o risco de a despesa adicional não ser autorizada: “Não há por que isso não ser aprovado pelo Congresso, não há nenhuma dificuldade, em tese”.
Na noite da terça-feira 4, no entanto, o ministro do Desenvolvimento Social, Alberto Beltrame, já prometia alterar a proposta de orçamento enviada ao Congresso, de forma a assegurar os 30 bilhões necessários ao Bolsa Família. Segundo ele, Temer teria recuado.
O governo não enxerga o benefício do programa para a economia, lamenta Campello (Antônio Cruz/ABr)“Mais uma vez, a fatura da austeridade tem sido empurrada para a parcela mais vulnerável da população”, critica Campello. “Na verdade, não gosto de usar esse termo, ‘austeridade’, porque parece que eles são responsáveis e nós, perdulários. É uma falácia. Quando o governo dá um aumento para o alto funcionalismo, que já ganha muito bem, o impacto disso para a economia é quase zero.
Quem ganha muito não vai comprar mais arroz, mais feijão, mais carne. A tendência é comprar produtos importados, viajar para o exterior ou guardar dinheiro. O pobre, não. Gasta praticamente tudo o que ganha em consumo, compra coisas produzidas no Brasil.”
Um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em 2013 atesta o efeito multiplicador do Bolsa Família. Cada real gasto com o programa de transferência de renda “gira” 2,4 reais no consumo das famílias e adiciona 1,78 real ao PIB. “Mesmo do ponto de vista fiscal, é burrice a opção de privilegiar o alto funcionalismo”, conclui Campello.
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