Política
País em ruínas
Estudo aponta um retrocesso generalizado dos direitos humanos no País durante o governo de Jair Bolsonaro


A menos de um mês para a eleição presidencial, três indígenas foram barbaramente assassinados em diferentes localidades do País. No município de Amarante, interior do Maranhão, Janildo Oliveira Guajajara, que atuava como “Guardião da Floresta”, protegendo o território de seu povo da atuação de madeireiros e outros invasores, foi executado com tiros nas costas na madrugada do sábado 3. No episódio, um adolescente de 14 anos também foi baleado e encaminhado para uma unidade de saúde da região. Naquela mesma noite, na cidade de Arame, a 160 quilômetros, Carlos Miranda Guajajara foi encontrado morto, vítima de um atropelamento, mas o povo Guajajara desconfia de ação criminosa.
Na noite seguinte, a tragédia repetiu-se, desta vez contra o povo pataxó. Gustavo Silva da Conceição, indígena de apenas 14 anos de idade, morreu durante um violento ataque de pistoleiros contra um grupo que ocupava a Fazenda São Jorge, delimitada pela Funai em 2015 como parte da Terra Indígena Comexatibá, no extremo sul da Bahia. Outro indígena de 16 anos foi ferido no braço por um disparo de arma de fogo. “Foi um serviço profissional, parece miliciano mesmo”, denuncia uma liderança pataxó, que pede para não ser identificada por questões de segurança.
Lamentavelmente, as mortes de Janildo, Jael e Gustavo não são episódios isolados. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário, conhecido pela sigla Cimi, 430 indígenas foram assassinados entre 2018 e 2021. Desde que Jair Bolsonaro assumiu o poder, a extensão territorial afetada por conflitos fundiários envolvendo os povos originários aumentou em 141%, revela um estudo inédito, o “Barômetro de Alerta Sobre os Direitos Humanos no Brasil”, que acaba de ser lançado por um grupo de pesquisadores brasileiros e europeus. Nesse mesmo período, foram registradas 519 invasões ilegais em terras indígenas. Em meio aos incêndios criminosos que devastaram a Amazônia, 345 territórios indígenas foram consumidos pelas chamas em 2019 e outros 341 no ano seguinte.
O estudo é fruto do trabalho de pesquisadores de 17 organizações de solidariedade internacional da França, em parceria com movimentos sociais e organizações da sociedade civil brasileira, e foi publicado na quarta-feira 7. O Barômetro, relatório da Coalizão Solidariedade Brasil levantou provas, documentos, estatísticas e relatos sobre o retrocesso nos direitos humanos de 2019 a 2022. A grande maioria da população sofreu algum impacto negativo no período, mas o prejuízo maior foi sentido pelos povos indígenas e quilombolas, a população negra, a comunidade LGBTQIA+ e as mulheres.
A desigualdade piorou sob o governo do ex-capitão. Não à toa, o País retornou ao vergonhoso mapa da fome, que havia abandonado em 2014, e hoje mais de 60 milhões de brasileiros sofrem algum grau de insegurança alimentar. Mais de 19 milhões padecem com a fome, que é a faceta mais cruel do problema. Sete em cada dez famílias estão endividadas e o acúmulo de contas a pagar aconteceu, sobretudo, para comprar alimentos. Este é um reflexo da incapacidade de Bolsonaro de criar condições para acolher as necessidades básicas da população durante a pandemia da Covid-19. A inflação galopante, que atingiu em cheio os alimentos básicos, o gás de cozinha e os combustíveis, e o alto índice de desemprego foram a gota d’água.
A área atingida por conflitos fundiários envolvendo os povos indígenas aumentou 141% em quatro anos
De acordo com o Barômetro, o desmonte de políticas públicas do governo Bolsonaro contribuiu para o aumento da violência contra as mulheres. Em 2021, quase 38% das mulheres foram vítimas de algum tipo de assédio sexual. Nesse mesmo ano, uma mulher foi estuprada a cada dez minutos, o que representa aumento de 4,4% em relação a 2018.
O Brasil continua a figurar na liderança do ranking mundial de homicídios contra LGBTs. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia, mencionado no Barômetro, 300 indivíduos dessa comunidade foram assassinados ou levados ao suicídio em 2021, uma morte a cada 29 horas. As pessoas trans representaram 76% das vítimas em 2020. O genocídio da juventude negra e periférica segue a todo vapor: 78,9% dos assassinados por agentes policiais no período de 2019 a 2022 eram pretos ou pardos. E 76,2% das vítimas de homicídio também eram negras.
De acordo com a coordenadora editorial do Barômetro, a jornalista brasileira Erika Campelo, a maior dificuldade foi conseguir acessar dados estatísticos oficiais, que em anos anteriores eram obtidos sem muitos entraves. Um dos mecanismos utilizados pelo governo federal para “passar a boiada” – como propôs o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles – foi ocultar indicadores dos ministérios e secretarias, impor decretos de sigilo, além de reduzir drasticamente o investimento para pesquisas.
“Hoje, vivemos um verdadeiro ‘apagão estatístico’. É assim que definimos o que acontece no Brasil, porque os movimentos sociais brasileiros enfrentaram enorme dificuldade para levantar essas informações”, denuncia Campelo, que integra a organização Outros Brasis. Além do aumento da violência, o estudo debruçou-se sobre questões ligadas ao meio ambiente, conflitos pela terra, insegurança alimentar e fome, economia e desemprego, liberdade de imprensa, violência política, educação e cultura. Em todas as áreas, foi constatada uma considerável piora.
“Houve um ataque sistêmico do governo federal contra os movimentos sociais e contra os grupos minorizados da população. Este é um trabalho científico, o mais neutro possível, mas nosso objetivo é alertar os governos estaduais e municipais do Brasil sobre essas ações do governo federal, e também a população na Europa, porque a solidariedade internacional é importante”, explica a jornalista, radicada na França há 20 anos. Publicado às vésperas das eleições, o estudo busca trazer à superfície a devastação causada pelo governo Bolsonaro aos direitos humanos. Os dados podem ser conferidos no site da Coalizão, onde a pesquisa é apresentada de forma aberta para mais contribuições. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “País em ruínas “
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