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Padrão de qualidade

Aprovado pelo Senado, Sistema Nacional de Educação prevê definição de valor mínimo de investimento por aluno

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Plataforma. Haverá ainda uma base integrada de dados educacionais. Cada estudante terá um prontuário, com seu seu histórico escolar desde a pré-escola – Imagem: Maycon Nunes/Agência Pará
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O Senado aprovou, na terça-feira 7, o Projeto de Lei Complementar 235/2019, que institui o Sistema Nacional de Educação (SNE). Seu desafio é tão grandioso quanto foi o de estruturar o SUS para cumprir a promessa constitucional de universalizar o acesso da população à saúde. Com dimensões continentais, o Brasil ainda abriga 9,1 milhões de analfabetos e 8,4 milhões de jovens entre 14 e 29 anos que não concluíram o ensino médio, seja por abandono escolar ou por nunca terem frequentado essa etapa, segundo o IBGE. Além de enfrentar esse passivo gigantesco, o País tem a missão prioritária de garantir um padrão mínimo de qualidade na formação dos estudantes em cada um dos 5.570 municípios brasileiros.

Como resposta a esse desafio estrutural, o SNE prevê, entre outras inovações, a adoção do Custo Aluno–Qualidade (CAQ), mecanismo criado para corrigir desigualdades no financiamento da educação pública – uma iniciativa indispensável em um país onde 1,4 milhão de estudantes ainda frequentam escolas sem acesso a água potável, e 440 mil estudam em unidades sem banheiros. O sistema também propõe a criação de plataformas integradas de dados, capazes de identificar e monitorar a trajetória dos alunos, com o objetivo de melhorar o desempenho escolar e reduzir a evasão.

De autoria do senador Flávio Arns (PSB) e relatado pela colega Dorinha ­Seabra (União Brasil), o projeto foi aprovado por unanimidade: 70 votos favoráveis e apenas uma abstenção. O texto já havia passado pelo Senado em 2022, mas sofreu alterações significativas na Câmara dos Deputados, o que exigiu nova apreciação pelos senadores. Agora, a matéria segue para a sanção presidencial. Para Binho Marques, ex-secretário de Articulação e Ensino do MEC e ex-governador do Acre, que liderou a elaboração da primeira proposta de SNE, o projeto representa um avanço importante, mas demanda ajustes ao longo do tempo.

A urgência do SNE deve-se à extrema fragmentação da gestão educacional. Binho Marques explica a anomalia brasileira: com três entes federados autônomos – municípios, estados e União –, o País não possui um sistema integrado de educação e a dispersão das iniciativas compromete a eficácia das políticas públicas. “A maioria dos municípios não tem capacidade técnica, e impera muito o modismo, a vontade do prefeito ou do governador, que nem sempre são especialistas”, critica. Para a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bianca Borges, a mudança representa um “marco histórico na consolidação da educação como política de Estado”. “O País acaba de dar um passo fundamental para a construção de um projeto nacional de desenvolvimento com soberania e justiça social”, avalia.

Para o ministro da Educação, Camilo Santana, o SNE é vital para pôr fim à histórica política de adesão que marca a implementação dos programas federais na educação. Com o novo sistema, será institucionalizado um regime de colaboração, com instâncias permanentes de pactuação federativa, como a Comissão Intergestores Tripartite da Educação (Cite). “O sistema vai possibilitar que possamos pactuar­ determinadas ações e os entes precisarão implementá-las”, resume o ministro.

A proposta institui a cooperação entre União, estados e municípios para perseguir metas

Andressa Camile Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação – rede que articula centenas de organizações e movimentos em defesa da educação pública – celebra a aprovação do projeto, destacando que as mudanças feitas pelos senadores são fundamentais para garantir um SNE robusto, no qual o CAQ será, de fato, uma ferramenta para reduzir desigualdades. “A qualidade social da educação vai virar realidade nas escolas brasileiras”, comemora.

O Custo Aluno-Qualidade deve assegurar jornada escolar mínima, adequada razão professor-aluno por turma, formação docente condizente com a área de atuação, plano de carreira e piso salarial profissional nacional para os docentes da rede pública, além da valorização e qualificação dos profissionais da educação não docentes. O CAQ também contempla padrões mínimos de infraestrutura escolar – conforto ambiental, acessibilidade, salubridade, água potável, banheiros adequados e espaços pedagógicos –, assim como a oferta de recursos educacionais, tecnologias digitais e serviços complementares de apoio ao estudante.

Segundo a especialista, “foram considerados, também, ajustes para fortalecer os fóruns de educação, a educação das populações do campo e das comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas e os municípios em maior situação e vulnerabilidade”. Depois de uma tentativa da Câmara de fragilizar o CAQ e atrelar o mecanismo à medição de resultados, o texto final corrigiu essas manobras e “ficou excelente”.

O SNE também incorpora inovações importantes na coleta e integração de dados, como a Infraestrutura Nacional de Dados da Educação (Inde) e o Identificador Nacional Único do Estudante (Inue), vinculado ao CPF. A plataforma deve funcionar como um braço do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb), voltada à análise das condições de oferta, não apenas do desempenho em testes. O êxito desses instrumentos, destaca Pellanda, depende do uso estratégico das informações: “É preciso permitir o monitoramento em tempo real e criar sistemas de alerta precoce, que acionem equipes de busca ativa antes que a evasão se concretize”.

Para o professor da Universidade Federal de Goiás e presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação, Nelson Cardoso do Amaral, o SNE representa um avanço, mas enfrentará desafios na implementação e precisa romper com a lógica de que o Brasil “já investe muito em educação”. “Quando se parte da ideia de que o dinheiro é suficiente e o que falta é apenas gestão, não há espaço para ampliar os investimentos”, critica. Segundo ele, o clima instaurado de que bônus, provas e eficiência resolvem as defasagens, em vez de promover cooperação, favorece a competição entre escolas. “Isso é muito ruim, porque não dá conta da complexidade do processo educacional.” •

Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Padrão de qualidade’

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