Política

Ataques de Bolsonaro ao Iphan extrapolam a questão cultural e atendem interesses bilionários

Em 2019, mal assumiu, o presidente passou a demitir dirigentes das 27 superintendências estaduais do Iphan para substituí-los por indicados político

Trator. O Iphan tentou destombar o Solar Visconde de São Lourenço, no Rio. As restrições às obras da Havan fizeram o presidente “ripar” o comando da instituição - Imagem: Redes sociais
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Desde o início deste ano, os contatos entre a presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Larissa Peixoto, e os integrantes do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural têm se dado por meio de manifestos, requerimentos e ofícios. A tensão chegou ao ponto de, duas semanas atrás, Larissa ter pedido a retratação pública dos conselheiros pelas críticas que eles haviam feito à forma como vem sendo conduzido o órgão. Na semana passada, após mais uma troca de textos, ela acenou com a possibilidade de recebê-los para uma reunião extraordinária. Até o fechamento desta edição, a reunião não havia sido marcada.

Apesar de, por vezes, ser analisado sob a ótica dos ataques à cultura, marca indelével do governo Bolsonaro, a crise atravessada pelo Iphan tem particularidades que extrapolam o ímpeto de destruição da arte e da cultura. Criado em 1937, o Iphan, uma das pedras fundamentais do processo de institucionalização da cultura no País, tem a competência de analisar, aprovar ou desaprovar qualquer intervenção em um bem tombado e deve ainda se pronunciar sobre os ­impactos de empreen­dimentos imobiliários sobre o patrimônio arqueológico e cultural. “Nenhuma outra instituição da área cultural tem uma competência semelhante a essa. O Iphan tem o que eu chamo de poder de polícia. Suas obrigações, muitas vezes, contrariam os interesses privados”, explica, de forma didática, a arquiteta e urbanista Márcia Sant’Anna, uma das integrantes do Conselho Consultivo.

Márcia, que trabalhou no Iphan de 1987 a 2011, domina a longa história da instituição tanto do ponto de vista das miudezas técnicas e hierárquicas quanto do ponto de vista da macropolítica. “Quando o Bolsonaro diz que o Iphan não incomoda mais ninguém, ele revela a importância do Iphan. Historicamente, essa é uma instituição que não se dobra”, diz. Ao citar Bolsonaro, a arquiteta refere-se ao estopim da crise em curso. Em dezembro de 2021, o presidente, em um evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), afirmou ter demitido diretores após a interdição da obra para mais uma loja de Luciano Hang, o dono da Havan. “O que é Iphan, com ‘ph’, né? Explicaram para mim, ripei todo mundo do Iphan. Botei outro cara lá”, disse, arrancando risos e aplausos. “O Iphan não dá mais dor de cabeça para a gente”, acrescentou, antes de dizer que havia descoberto, nesse processo, que o instituto tem um “poder de barganha extraordinário”.

“O órgão tem o que eu chamo de poder de polícia”, explica Márcia Sant’Anna

A verdade é que ele sempre soube disso. Em 2019, mal assumiu, Bolsonaro passou a demitir dirigentes das 27 superintendências estaduais do Iphan para substituí-los por indicados políticos. Embora a atuação no patrimônio exija uma qualificação especializada, havia de tudo na lista de indicados: personal trainer, pecua­rista e técnico de informática.

As superintendências são as responsáveis, em primeira instância, pelo exame, análise, aprovação e desaprovação de intervenções no patrimônio. O escritório central entra nos processos apenas quando há algum impasse. “É um órgão com enorme capilaridade, e esse movimento de troca teve a ver com negociações políticas no âmbito regional. Esses cargos entram nas negociações dos governos como moeda de troca”, diz Márcia.

No início do processo de aparelhamento, em 2019, Bolsonaro manteve na presidência da instituição a historiadora Kátia Bogéa, que tem vasta experiência na área e havia sido nomeada no governo Michel Temer. Mas Kátia só durou no cargo até se revelar um obstáculo para Hang. Ao ser exonerada, em maio de 2020, ela afirmou ter sofrido pressões do empresário e do senador Flávio Bolsonaro. Bolsonaro confirmou: “Eu fiz a cagada em escolher… não escolher uma pessoa que tivesse também outro perfil. É uma excelente pessoa que tá lá. Mas tinha que ter um outro perfil também. O Iphan para qualquer obra do Brasil, como para a do Luciano Hang. Encontra lá um cocô petrificado de índio: para a obra, pô! Para a obra”.

Aparelhamento. Quando um pastor evangélico tornou-se diretor de Patrimônio Imaterial, a cultura afro passou a ser perseguida. Larissa Peixoto, a presidente, vem da área do turismo e é amiga da família Bolsonaro – Imagem: Amanda Oliveira/GOVBA e Marcello Casal Jr./ABR

Foi, justamente, em substituição a ­Kátia Bogéa que lá chegou Larissa, uma pessoa, de fato, com outro perfil. Funcionária de carreira do Ministério do Turismo – ao qual a Secretaria Nacional de Cultura está subordinada –, Larissa é graduada em Turismo e Hotelaria e tem pós-graduação em gestão estratégica de ­marketing, planejamento e inteligência competitiva. Ela e o marido são próximos da família Bolsonaro. “Como técnica da área de turismo e sem tradição na área patrimonial, é natural que a presidenta olhe para a instituição do ponto de vista do turismo”, diz outro conselheiro, Flávio Carsalade, professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais.

Carsalade lembra que, até os anos 1980, acreditava-se que o turismo era a melhor forma de preservar e restaurar o patrimônio. Vem dessa época, por exemplo, o restauro do Pelourinho, em Salvador, que, nas palavras dele, “criou a expulsão da baianidade que ali já existia e a gentrificação”. Os resultados da exploração turística desmedida levou a uma revisão desse conceito. Apesar de totalmente deslocado no tempo, ele voltou a ter vez no governo Bolsonaro.

As problemáticas da instituição vão, porém, muito além disso. Carsalade diz que a crise do Iphan deve ser compreendida a partir dos aspectos externo e interno. Externamente, há a pressão escancarada, os absurdos proferidos por Bolsonaro e até a tentativa de venda do Palácio Capanema, um símbolo da arquitetura moderna. Internamente, foram tomadas atitudes que, em um primeiro momento, eram contemporizadas por Larissa durante as reuniões do Conselho. Nos últimos meses, no entanto, elas se agigantaram e se agravaram. Os conselheiros entenderam então que não podiam mais deixar de se manifestar.

“Para essas questões (internas) sempre nos davam algum tipo de resposta, mas, de repente, veio a frase do Bolsonaro sobre ‘ripar’ técnicos que criassem obstáculo à aprovação de empreendimentos. Somos representantes da sociedade civil e, apesar de termos tentado estabelecer um diálogo com a presidência do órgão, entendemos, nesse momento, que precisávamos reagir e nos posicionar”, diz o arquiteto.

Um pecuarista e um personal trainer assumiram superintendências regionais do órgão

Além de fazer uma manifestação pública explicitando os riscos que corre o patrimônio, eles solicitaram uma reunião com a presidência. No pedido, elencaram dez temas a serem discutidos. Entre eles, estão as alterações no processo seletivo do Prêmio

Rodrigo Melo Franco de Andrade, a não realização do processo seletivo ­anual do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural e as mudanças de procedimento favorecendo uma exploração predatória que ameaça o patrimônio arqueológico e o meio ambiente. O que também os deixou estupefatos foi, no início deste ano, a tentativa de destombamento de alguns prédios. Questionados na Justiça, os destombamentos – dentre eles o do Solar Visconde de São Lourenço, no Rio – foram cancelados, pois a presidente do Iphan não tinha competência legal para determiná-los. “Até hoje, o destombamento só tinha acontecido em casos extremos, quase sempre na ditadura. Em 1970, por exemplo, a Igreja dos Martírios, em Recife, foi derrubada para a abertura de uma avenida”, conta Nivaldo Vieira de Andrade Junior, conselheiro e ex-servidor do Iphan.

Andrade chama a atenção para o fato de que o drama atual, ainda que mais visível no caso das edificações, chamadas de “pedra-e-cal”, não é menor no caso do patrimônio imaterial. O conceito de patrimônio imaterial aparece na Constituição de 1988 e foi regulamentado no ano 2000.

De lá para cá, a própria sociedade foi entendendo que patrimônio não era apenas palácio e igreja e passaram a ser preservados, por exemplo, casarios, quilombolas, terreiros de umbanda e festas populares. Tudo isso, de repente, passou a estar sob responsabilidade de um pastor evangélico, chamado Tassos Lycurgo, nomeado diretor de Patrimônio Imaterial. Não ­surpreende, portanto, que o Iphan tenha retirado o apoio à identificação e exposição de peças e objetos das religiões afro-brasileiras sob a guarda do Museu da República.

Não bastassem as ameaças de cunho religioso, as comunidades ribeirinhas e indígenas, como observa Andrade, são ameaçadas também pelas políticas ambientais. “Tudo isso coloca em risco o patrimônio imaterial”, diz . “Sem falar que o orçamento para a preservação diminuiu drasticamente. Vivemos duas situações igualmente graves: deixar de fazer o que precisa ser feito e fazer o que não poderia ser feito.”

Vende-se. O governo tentou desfazer-se do icônico Palácio Capanema, no Rio – Imagem: Alexandre Macieira/RioTur

Apesar de ser no governo federal que o patrimônio vive a situação mais trágica, as pressões privadas parecem vir, em todos os âmbitos, em um crescendo. Em 2016, o então ministro da cultura Marcelo Calero pediu demissão após ter sido pressionado para produzir um parecer favorável à liberação da construção de um prédio de luxo na Ladeira da Barra, em Salvador. Alguns anos antes, o próprio Nivaldo de Andrade embargou a obra da Mansão Wildberger, ao lado da Igreja da Vitória, também em Salvador, onde a prefeitura havia autorizado, sem a anuência do órgão, a construção de uma torre de 30 andares. Após muito vaivém, a obra foi mesmo feita.

“As pressões sempre aconteceram, e em todos os níveis – municipal, ­estadual e federal”, diz a arquiteta e urbanista Raquel Schenkman, que realiza uma pesquisa de doutorado, na FAU-USP, sobre a história do Departamento do Patrimônio Histórico paulistano. “Mas o que eu observo, mais recentemente, é que como os pedidos de tombamento por parte de grupos mobilizados têm aumentado, o mercado imobiliário tem feito ainda maior pressão, procurando, por exemplo, desqualificar as demandas das comunidades ou atribuindo aos órgãos de patrimônio um excesso de tombamentos ou de restrições à renovação.”

Raquel explica que a estrutura hoje existente remonta aos anos 1970. A partir das diretrizes para a preservação, dadas pela Carta de Veneza, de 1964, foram criados órgãos estaduais e municipais. Vêm dessa época o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), do Estado de São Paulo, criado em 1968, e o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp), da cidade de São Paulo, de 1975.

“Começa a haver, a partir desse momento, uma discussão mais intensa em torno da relação entre tombamento e desenvolvimento urbano e da vinculação entre o tombamento e grupos sociais locais, ou seja, o tombamento deixa de estar restrito à ideia de edificações de excepcional valor”, explica ela. A primeira abertura de tombamento municipal, em 1988, foi a do conjunto esportivo do Pacaembu. Nessa mesma década, tiveram início os tombamentos de bairros, como o dos Jardins.

“O patrimônio histórico incomoda todos os governos”, resume Carlos Augusto Calil, conselheiro do Iphan e ex-secretário municipal da cultura em São Paulo. “Eu quase fui derrubado da Secretaria pela Câmara Municipal quando o Conpresp regulamentou os entornos do Parque da Independência e do Parque da Aclimação, limitando a altura dos empreendimentos”, recorda ele.

O que nenhum governo parece ter sido capaz de fazer, no entanto, é orgulhar-se de agir de forma a privilegiar amigos e vangloriar-se de passar por cima da memória, do urbanismo e da legislação. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fúria imobiliária”

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