Política

Os alvos de sempre

O Litoral Norte foi atingido por um dilúvio, mas foi a desigualdade que ceifou a vida dos mais pobres

Sem teto. Mais de 2,5 mil habitantes ficaram desbrigados nos municípios litorâneos devastados pelo temporal - Imagem: Nelson Almeida/AFP
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“Júpiter já ia espalhar os raios por todas as terras,
mas teve medo de que o éter sagrado se inflamasse
com todo aquele fogo e o mundo ardesse em
toda a extensão de seu eixo. (…) Põe de
lado os dardos feitos pelas mãos dos ciclopes;
apraz um castigo diferente: destruir pela água o
gênero humano e desfazer as nuvens de todo o céu”
Ovídio, em Metamorfoses (8 d.C.)

O dilúvio no Litoral Norte paulista não tem precedentes na história do Brasil. Entre a madrugada do sábado 18 e a noite do domingo 19, a chuva que atingiu as cidades de São Sebastião e Bertioga foi superior a toda precipitação acumulada em janeiro e fevereiro do ano passado. Em outras palavras, o aguaceiro caído em apenas dois dias foi maior que o previsto para dois meses no verão, atesta o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, conhecido pela sigla Cemaden.

Não há como negar o impacto das mudanças climáticas no episódio. Tempestades desse porte costumavam levar décadas, às vezes séculos para se repetir com tamanha fúria. Nos últimos tempos, a quebra de recordes tornou-se corriqueira. Não se pode, porém, culpar somente Júpiter ou Zeus pelo castigo infligido à população local. Como de hábito, as mortes se concentraram em encostas e áreas de risco, ocupadas pelos habitantes mais pobres, aqueles que prestam serviços aos veranistas e turistas dos locais mais seguros do balneário.

A grande maioria das vítimas vivia na Vila do Sahy, a abrigar os serviçais dos veranistas que puderam escapar de helicóptero

As catástrofes brasileiras possuem uma geografia bem peculiar, como foi possível verificar no distrito de Barra do Sahy, em São Sebastião. Naquele infausto fim de semana, a região registrou uma precipitação de 648,53mm. Cada milímetro de chuva corresponde a um litro de água por metro quadrado. Se um morador tivesse a ideia de abrir a tampa de uma caixa d’água de mil litros durante a tempestade, é provável que ela transbordasse, pois os modelos disponíveis no mercado costumam ocupar ao menos 1,5 metro quadrado. A tempestade provocou a inundação de alguns hotéis e pousadas próximos da praia, mas o infortúnio dos hóspedes não chega a comover diante do desastre visto na vizinha Vila do Sahy, com edificações erguidas à base do improviso entre as margens da Rodovia Rio-Santos e o pé da serra.

A ocupação irregular começou no início dos anos 1990, com migrantes nordestinos em busca de oportunidades de trabalho no Litoral Norte de São Paulo. Hoje, segundo um recente processo de regularização fundiária monitorado pelo Ministério Público, a Vila do Sahy possui 648 domicílios, onde residem 779 famílias. Quem vive ali não está a passeio. A comunidade abriga vendedores ambulantes, empregadas domésticas, caseiros, jardineiros e toda a sorte de trabalhadores que garantem o conforto dos veranistas no entorno das praias de Barra do Una e Baleia. Enquanto alguns desses turistas desembolsaram até 30 mil reais para deixar a região de helicóptero, os habitantes da pobre Vila do Sahy não tinham escolha senão revirar a terra em busca de familiares desaparecidos e objetos que pudessem ter alguma serventia, após suas casas terem sido engolidas por um tsunami de lama.

Risco. Os trabalhadores de baixa renda só têm acesso às perigosas encostas – Imagem: Rovena Rosa/ABR

Na terça-feira 21, terceiro dia de buscas, a Defesa Civil contabilizava 46 mortes, mais de 40 desaparecidos e 1.943 desabrigados em São Sebastião, que decretou estado de calamidade pública. A grande maioria das vítimas morava em Vila do Sahy. Bairros inteiros ficaram ilhados, com problemas de abastecimento de energia, água e telefonia. As orlas de numerosas praias da costa sul do município, a exemplo de Juquehy, Camburi e Boiçucanga, ficaram irreconhecíveis. Em alguns pontos, o calçadão ruiu, deixando uma cratera entre a pista e a faixa de areia. Diversos trechos da Rodovia Rio–Santos ficaram bloqueados por quedas de árvores e deslizamentos de terra.

O cenário de devastação repetiu-se, em menor escala, em todos os municípios do Litoral Norte paulista. Em Ubatuba, uma menina de 7 anos morreu após uma pedra de 2 toneladas se desprender de um barranco e atingir a casa onde estava, no bairro Estufa 2. Inundações e deslizamentos de terra deixaram 196 desalojados em bairros como Sertão da ­Quina, Maranduba, Arariba e Caçandoca. Devido à tempestade, todos os eventos do Carnaval no domingo 19 foram cancelados. Menos afetada, a vizinha Caraguatatuba também sofreu com inundações, potencializadas pela maré alta. Mas a chuva torrencial do último fim de semana não provocou mortes, só perdas materiais. O Hospital Regional da cidade abriu as portas para atendimentos de emergência a moradores de municípios vizinhos, inclusive os sobreviventes resgatados de helicóptero de São Sebastião.

Bolsonaro reservou míseros 25 mil reais para socorrer os afetados por desastres no Brasil

Ilhabela também foi duramente castigada pelas chuvas, com estragos concentrados na região sul do arquipélago. Por conta do mau tempo, o serviço de balsa sofreu diversas interrupções, dificultando a saída dos turistas. Bertioga padeceu com índices recordes de precipitação. Na estação da Praia de Guaratuba, foram registrados 694 milímetros de chuva, mais que o volume de água acumulado nos dois primeiros meses de 2022 (624,48 mm). A prefeitura cancelou a programação do Carnaval e as atividades esportivas da Arena Radical, na Praia de Riviera. Nos bairros de São Lourenço e Boraceia, o abastecimento de água sofreu interrupções. A Rodovia Mogi-Bertioga segue interditada nos dois sentidos, entre os quilômetros 77, em Mogi das Cruzes, e 98, já na cidade litorânea. O trânsito só deve ser restabelecido daqui a dois meses, estima a secretária estadual de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, Natália Resende. Orçadas em 9,4 milhões de reais, as obras incluem recuperação total da pista, construção de um muro de arrimo para contenção e um novo sistema de drenagem.

Se dependessem dos recursos deixados pelo governo de Jair Bolsonaro, os atingidos pelas chuvas no Litoral Norte estariam completamente desassistidos. O ex-capitão reservou irrisórios 25 mil reais para auxiliar vítimas de desastres naturais no Brasil em 2023. Você não leu errado, foram 25 mil reais mesmo, valor insuficiente para erguer um único casebre de alvenaria. “Temos o levantamento de 14 mil pontos no Brasil com risco muito alto de deslizamento. Aproximadamente, 4 milhões de pessoas vivem nessas ­regiões já mapeadas pelo governo”, observou o ministro do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, ao celebrar o fato de a PEC da Transição ter recomposto o anêmico orçamento da gestão anterior.

Na segunda-feira 20, após sobrevoar de helicóptero as áreas mais devastadas pelo dilúvio, o presidente Lula reuniu-se com o governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, e prometeu investir na construção de unidades habitacionais do Minha Casa Minha Vida para evitar que a população afetada voltasse a ocupar as encostas. O ministro do Desenvolvimento Social, ­Wellington Dias, informou ainda que vai antecipar os pagamentos do Bolsa Família a todos os beneficiários dos municípios atingidos.

Prevenção. Lula promete investir em moradia popular para evitar tragédias – Imagem: Rovena Rosa/ABR

Freitas, por sua vez, decretou situação de calamidade em seis municípios do litoral, para facilitar a adoção de medidas emergenciais, como os reparos nas rodovias e a instalação de um hospital de campanha pela Marinha em São Sebastião, com 300 leitos e 21 profissionais de saúde. Maior embarcação de guerra do País, o navio Atlântico foi enviado para prestar ajuda humanitária na região, a pedido do governador paulista.

As iniciativas emergenciais são bem-vindas, mas não resolvem o problema estrutural, provocado pela desigualdade e ocupação irregular do solo por famílias pobres. Diante do longo histórico do Poder Público de tapar o sol com a peneira, ao menos desta vez as ministras Marina Silva, do Meio Ambiente, e Luciana Santos, da Ciência, Tecnologia e Inovação, apresentaram uma proposta mais duradoura e racional para prevenir a sucessão de tragédias. A ideia é criar um plano emergencial de adaptação a eventos climáticos extremos em 1.038 cidades, que abrigam 57% da população do País. “Se eu tenho a série histórica dizendo que esses municípios apresentam altíssimo risco, ou alto risco, eu posso decretar emergência climática”, explica Marina. Dessa forma, seria possível alocar mais facilmente os recursos necessários para obras de contenção de encostas, sistemas de drenagem, reassentamento de moradores e recuperação de matas ciliares, além de aperfeiçoar os planos de defesa civil e sistemas de alertas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os alvos de sempre”

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