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Operação mercúrio

Após fechar o cerco ao garimpo ilegal nas terras Yanomâmi, o governo promete limpar outros territórios

Emergência. O tempo da retirada dos garimpeiros acabou e o espaço aéreo da região foi fechado. Os Yanomâmis precisam de mais médicos – Imagem: Vinícius Mendonça/Ibama e Sgt. Lucas Nunes/FAB
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Desde a madrugada de 7 de abril está fechado o espaço aéreo na Terra Indígena ­Yanomâmi, em Roraima, após o prazo de dois meses para a saída voluntária dos cerca de 20 mil garimpeiros ilegais. Nesse período, a Operação Libertação, deflagrada pela Polícia Federal em conjunto com Ibama, Forças Armadas, Força Nacional de Segurança Pública, Funai e Polícia Rodoviária Federal para a retirada dos invasores, destruiu três aviões, cerca de 80 balsas e embarcações e mais de 200 acampamentos. Também foram inutilizadas ou apreendidas quase 30 toneladas de cassiterita, mais de 170 motores e geradores de energia, além de equipamentos para extração de minérios, motosserras, mercúrio, modens de internet via satélite, celulares, alimentos e armas e munições utilizados pelos criminosos. Vários aeroportos clandestinos foram desarticulados. Como resultado do trabalho, estima-se que mais de 90% dos garimpeiros deixaram a região. Mas o cenário ainda é preocupante.

“O buraco que foi deixado é muito grande. Só tirando os garimpeiros não vai resolver o problema do povo Yanomâmi. A água está mudando, clareando, mas ainda está contaminada. Algumas comunidades recuperaram a saúde, mas têm as aldeias que não conseguiram, porque ainda existia a presença do garimpo. É preciso retomar as unidades básicas de saúde que estavam fechadas para que a gente possa curar todas as comunidades e a vida voltar ao normal”, afirma Júnior Hekurari, líder Yanomâmi. Ele cobra ações públicas em aldeias mais afastadas, que continuam a sofrer com doenças como malária e desnutrição. “Essas comunidades precisam de intervenção imediata, queremos mais profissionais de saúde, médicos. Precisamos de água potável e, principalmente, a gente cobra segurança, a presença da Funai. Porque, se os policiais saírem de novo, os garimpeiros voltam, esses caras não têm medo de ninguém. Queremos garantia de vida.”

A situação nas áreas Kayapó e Munduruku é ainda mais Grave

A atuação ilegal do garimpo na reserva é responsável pela grave crise humanitária que atingiu os indígenas e pela destruição dos recursos naturais do território. As consequências foram a contaminação das matas e dos rios pelo mercúrio utilizado na exploração dos metais e a disseminação de doenças, provocando a morte de centenas de crianças e idosos, cenário desolador que chocou o mundo. Dados divulgados pelo Ministério da Saúde mostram que, até meados de março, foram atendidos quase 5 mil indígenas e distribuídos cerca de 250 mil medicamentos para tratamento de malária e mais de 15 mil cestas básicas. “Garantimos, para além do alimento, os suplementos para restabelecer a nutrição das crianças e adequamos as cestas básicas com mantimentos regionais do hábito alimentar deles. Não dá para se ter um resultado imediato, porque é um território imenso e de difícil acesso, com pouca estrutura logística e muitas ações que precisam ser feitas”, explica a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara.

Ex-presidente da Funai durante a operação que expulsou cerca de 40 mil garimpeiros da TI Yanomâmi no fim dos anos 1990, o sertanista Sydney Possuelo fala da necessidade de recorrer à tecnologia para garantir uma vigilância permanente da região. “Hoje em dia há sistemas via satélite que monitoram com grande precisão as coisas que acontecem. Na medida em que garimpeiros começarem a retornar, você imediatamente­ ­coíbe, evitando a formação de grandes núcleos”, diz. “O que o garimpo fez na reserva foi um desmando, uma destruição da terra, do meio ambiente e do sistema que mantém viva aquela comunidade. O sistema social, político, econômico, tribal, conjunto de valores que os mantém juntos foi totalmente danificado. Temos de retirar todos os invasores, mas os indígenas vão precisar ainda de apoio do governo federal por um longo período.”

Pressão. As etnias pressionam pelo julgamento no STF do marco temporal – Imagem: Ailton de Freitas/DPU

A reserva Yanomâmi é a terceira com o maior número de garimpeiros na Amazônia. Situação ainda mais dramática enfrentam os Kayapós e Mundurukus, no Pará. De acordo com o dossiê Terra­ ­Rasgada: Como Avança o Garimpo na Amazônia Brasileira, publicado em março pela Aliança em Defesa dos Territórios, até maio de 2022 a área invadida pelo garimpo no território Yanomâmi superava 4 mil hectares. No Munduruku, um levantamento realizado pelo ­Greenpeace em outubro de 2021 registrou um total de 6.780 hectares destruídos pela mineração ilegal. Liderando o ranking está a TI Kayapó, com mais de 11 mil hectares ocupados pelo garimpo. Os três territórios estão inseridos da ADPF 709, de autoria da Apib, e deferida recentemente pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso. Na medida, o magistrado determina que o governo realize a “desintrusão” em sete territórios invadidos por não indígenas. Além das reservas Yanomâmi, ­Kayapó e Munduruku ameaçadas por garimpeiros, fazem parte da ação as TIs ­Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Arariboia e Trincheira Bacajá, todas exploradas ilegalmente por madeireiros.

Sistemas de satélite permitem manter a vigilância e impedir o retorno do garimpo

“Temos um plano para começar a fiscalização e a retirada dos invasores. É claro que eu não vou dizer o dia, porque são ações que precisam de discrição, mas está sendo planejado”, anuncia­ ­Sônia ­Guajajara, citando a liberação de mais de 640 milhões de reais para a execução da desintrusão nessas TIs, dos quais mais de 146 milhões serão repassados à Funai. O restante do recurso será transferido aos ministérios da Justiça, Meio Ambiente, Defesa e Desenvolvimento e Assistência Social, que integram a operação. Em entrevista à Agência Pública, o diretor de Meio Ambiente e Amazônia da Polícia Federal, Humberto Freire, garantiu que vai cumprir a decisão do STF e retirar os invasores. “A determinação é para que não haja não índios lá, e é isso que vamos buscar. A gente vai buscar com essas ações, de ‘pente-fino’, de novas incursões e de bases permanentes, realmente cumprir 100% da ordem do STF, garantindo que não haja não índios na terra Yanomâmi nem nas demais.”

No fim de março, o presidente Lula determinou a retirada de pauta da Câmara o Projeto de Lei 191, de autoria do governo Bolsonaro, que liberava a mineração em terras indígenas. A decisão foi comemorada pela comunidade indígena como mais um gesto de combate aos crimes cometidos nos territórios e um sinal de que não vai apoiar qualquer projeto antiambiental em tramitação no Congresso. Outra vitória celebrada pelos indígenas foi a decisão do ministro Gilmar Mendes, do STF, que exigiu do governo federal novas regras de fiscalização e medidas para impedir a venda de ouro retirado de áreas de proteção ambiental e terras indígenas, a chamada presunção de boa-fé. Antes, as informações da venda de ouro eram prestadas pelo próprio vendedor e a validade do comércio seria concretizada a partir do momento que a empresa compradora declarasse a boa-fé do vendedor, sem nenhuma comprovação da legalidade da origem. Essa prática, no entendimento do ministro, “sabota a efetividade do controle de uma atividade inerentemente poluidora e incentiva a comercialização de ouro originário de garimpo ilegal”. •


Protagonismo indígena

Sônia Guajajara faz um balanço dos cem dias no governo

Planejamento. Depois de responder às emergências, Guajajara prepara um plano de longo prazo – Imagem: Alice Aedy e Eric Terena

A crise humanitária dos Yanomâmis foi o primeiro problema enfrentado pelo recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sônia Guajajara. Nesta entrevista, a ministra faz um balanço dos cem dias à frente da pasta, defende uma operação permanente para expulsar os garimpeiros e se diz esperançosa em relação à votação do marco temporal, que deve entrar na pauta do STF ainda neste semestre. A íntegra está em www.cartacapital.com.br.

CartaCapital: Qual balanço a senhora faz do Ministério dos Povos Indígenas nesses cem dias de governo?

Sônia Guajajara: É um ministério novo, de articulação, que não tem um orçamento próprio para atividades finalísticas, mas tem toda uma importância por ter indígenas protagonizando este momento, tanto no ministério como na Sesai e Funai, no Parlamento… Trouxemos a pauta indígena para o centro dos debates, para a agenda do governo. Nesses cem dias, a gente conseguiu revogar algumas medidas que limitavam os direitos dos indígenas ou que facilitavam a exploração dos territórios. Conseguimos articular a implementação da decisão do STF para retirar os invasores de sete terras indígenas ocupadas por garimpeiros e madeireiros. Visitamos territórios que estavam em situação emergencial, para buscar uma forma de fazer a proteção, como no próprio Vale do Javari e no Maranhão. Criamos um gabinete de crise para discutir a violência no extremo Sul da Bahia e em Mato Grosso do Sul. Estamos fazendo nosso planejamento estratégico para termos ações mais estruturantes, permanentes, ao longo dos quatro anos.

CC: Qual a situação na TI Yanomâmi, dois meses e meio depois do início da operação para a retirada dos garimpeiros?

SG: Os indígenas estão recebendo os atendimentos da Força Nacional do SUS, que segue com equipes no território. A operação vai ­continuar, será permanente, com o ­Ibama na área e a Polícia ­Federal em revezamento com a Força Nacional, para evitar a volta dos garimpeiros.

CC: A presidente do STF, ministra Rosa Weber, comprometeu-se em colocar na pauta, até o meio do ano, a votação do marco temporal. Qual a expectativa em relação à votação?

SG: A Apib reuniu-se com ela neste ano, o ministério também, e ela já tinha afirmado que iria retomar a votação antes de acabar o mandato. A gente sugeriu que fosse até o meio do ano e ela se comprometeu. Estamos otimistas de que o resultado será favorável para os povos e territórios indígenas.

CC: Há 13 processos demarcatórios prontos. O que falta para serem homologados?

SG: Cada caso é um caso, são situações diferentes. Esses processos passaram por estudo de identificação e delimitação, feito pela Funai. A partir daí seguiram para o Ministério da Justiça e foram devolvidos à Funai ainda na gestão do ministro Sergio Moro. Estamos atualizando o relatório para a Casa Civil. Estamos identificando quais impactos e os procedimentos a serem tomados após a demarcação, o que tem no entorno, se tem alguma ação judicial, se alguém requereu essas terras e quantas famílias existem ali. Tudo isso precisa ser feito de forma muito cuidadosa, porque são processos que precisam estar bem robustos, para não haver questionamentos. O Ministério dos Povos Indígenas está com dez processos no sistema, que a Casa Civil avalia para dar seu parecer, se vão todas ou quais vão ser demarcadas ainda neste mês de abril.

CC: As superintendências regionais da Funai na maioria das vezes são utilizadas como moeda de troca por políticos locais. Como está esse debate, a senhora terá o controle das indicações?

SG: Historicamente, esses cargos foram loteados. Nesta gestão, tivemos uma conversa com o presidente Lula e ele disse que, se houvesse indígenas qualificados para assumir nessas regiões, a gente teria toda liberdade para nomear. Até agora, todas as coordenações indicadas pelos povos indígenas foram acatadas pela Casa Civil. Em alguns casos, a gente conversou com parlamentares, mas para dar ciência de quem estava assumindo, não para pedir permissão.

Publicado na edição n° 1255 de CartaCapital, em 19 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Operação mercúrio’

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