Política

Onde passa um boi, passa uma boiada

As relações do governo Temer com a bancada ruralista rifam o futuro do Brasil

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Nos anos 90, o escritor Antonio Callado dizia que “o Brasil não anda pra frente porque aqui se rouba as rodas do carro”.  Quase uma década antes, o cantor e compositor Cazuza compôs a música-manifesto, conclamando o Brasil a mostrar sua cara: “Qual é o teu negócio? /O nome do teu sócio /Confia em mim.” 

Em parte, é só observamos atentamente os movimentos que mataremos a charada. Lá trás, diziam que nosso sócio era o FMI. Hoje, com um presidente obcecado pelo poder, sem compromisso com o povo, porque entende que dele não recebeu de fato o voto para ocupar a Presidência da República, e com lealdade àqueles que não querem pagar o pato e ainda com uma Câmara Federal composta por 204 deputados (bancada ruralista ou a chamada bancada do boi), equivalente a 40% da Casa – número suficiente para a votação de matérias de interesse do governo –, é sentar e ver o que acontece. 

Quem está dando as cartas no Congresso? Faço ressalva aos que trabalham pelo desenvolvimento do País e compreendem que é possível crescer e preservar. Mas há o grupo que acredita que mesmo tratando da coisa pública o interesse é privado e política se faz à moda antiga, assim como regras de trabalho devem ser pautadas no tempo que, a propósito nem regra havia, a não ser a da força bruta e do dinheiro. Por isso, se mantém na agenda do Congresso o desmonte do conceito do trabalho escravo, que é caracterizado pela jornada exaustiva, pelo trabalho forçado, pelas condições degradantes e pela servidão por dívida. 

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A diferença é que no passado, a relação era por captura ou por compra. Hoje, ela se dá pelo aliciamento. E o que definia a prática no passado era a etnia, hoje é a condição de vulnerabilidade. Mas a escravidão é praticada com outra “roupagem” e a quem interessa que ela se perpetue? 

Se é com Lava-Jato que tentamos mostrar o dinheiro sujo que deixou mais pobres os pobres e mais ricos os já endinheirados do país, é com “marco temporal” que Temer, ao assinar o parecer da Advocacia-Geral da União que veda a revisão dos limites de terras já demarcadas, definindo, portanto, que as comunidades indígenas só têm direito aos seus territórios caso estivessem em posse deles na data da promulgação da Constituição Federal, de 5 de outubro 1988,  joga para o esquecimento todo o processo de expulsão que esses povos já sofreram no passado. 

O parecer da AGU torna o procedimento uma prática oficial do governo na demarcação de terras, ignorando completamente que para os indígenas, terra representa sobrevivência física e cultural. Quem ganha com isso? 

E os retrocessos não param por aí. Mudanças no licenciamento ambiental podem estar por vir. A proposta, em tramitação na Comissão de Finanças da Câmara Federal, foi apelidada de “licenciamento flex”.  Há sérios riscos para o trabalho de fiscalização do meio ambiente. O próprio relatório do Ibama diz que sem um amparo em uma regra básica, a futura lei vai “potencializar conflitos normativos” e uma “guerra ambiental” entre os estados. Entre vários problemas levantados, a futura lei restringe a capacidade da autoridade ambiental em cancelar licenças já concedidas. Onde passa um boi, passa uma boiada, não é verdade? 

Não custa lembrar que esse governo tem sido bem benevolente com a bancada ruralista e já abriu mão de mais de 10 bilhões de reais em arrecadação nos próximos anos com a medida provisória publicada pelo presidente Temer que concedeu benefício a produtores rurais – número confirmado pela Receita Federal.

Redução de alíquota da contribuição paga por produtores para o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural), usado para auxiliar no custeio da aposentadoria dos trabalhadores rurais e quitação de dívidas previdenciárias com descontos nas multas e de forma parcelada… está tudo no pacote. A troco de que mesmo? 

Ah, mas olha, o governo precisa da ajuda e da compreensão do trabalhador porque o país passa por momentos difíceis…  A gente não pode esquecer que o presidente Temer, por ocasião do aumento da tributação sobre combustíveis, disse: “A população vai compreender, porque esse é um governo que não mente. A população compreende”. O que, com certeza ela já sabe é quem está pagando o pato. Afinal de contas, numa empoeirada cabeça de quem detém o poder, não é a população o elo mais fraco? 

Agora, a (pen) última cartada foi acabar por decreto com a Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca) na Amazônia. Uma área rica em minérios, na divisa entre o sul e o sudoeste do Amapá com o nordeste do Pará. Depois do estrondo feito no andar térreo, nova canetada para modificar o decreto, não sem antes dizer que o povo não entendeu nada e fez do decreto uma grande confusão, claro, porque afinal de contas, ninguém estaria pensando em dar algum lucro aos ruralistas com desmatamento de uma gigantesca reserva brasileira. E logo esse governo? 

Só que quem faz um pouco a lição de casa, entende… 

Trabalho escravo, expulsão de comunidades indígenas, força do poder, corrupção, jogos de interesse, desigualdades….  Passado e presente. Até quando será nosso futuro? 

 

*Carlos Bezerra Jr., médico, deputado estadual (PSDB-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo

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