Política

Onde a política de segurança de Bolsonaro sai pela culatra

Tripé baseado em leis mais duras, licença para matar e armamento da população está fadado ao fracasso e pode levar à nacionalização das milícias

Policiais em operação no Rio de Janeiro
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Por Karina Gomes

O programa de governo do candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL) defende um governo “sem acordos espúrios” para enfrentar o crime e a corrupção. Para proteger os cidadãos da violência, o candidato quer que a polícia tenha licença para matar em qualquer circunstância e com retaguarda jurídica quando estiver em trabalho.

Para especialistas em segurança pública ouvidos pela DW, esse enfraquecimento do controle sobre a ação da polícia está fadado ao fracasso e significa, na prática, uma apologia ao crime, pois, além de favorecer as mortes de policiais e de moradores nas periferias, a proposta fortalece a ação de milicianos e grupos de extermínio.

“Quando se abre mão do monopólio da força, acaba-se terceirizando, para outros grupos, o que é dever do Estado. Esses grupos passam a usar a violência não em defesa da sociedade, mas dos próprios interesses monetários”, afirma o pesquisador Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP).

Segundo um levantamento feito pelo portal G1, 2 milhões de pessoas na região metropolitana do Rio de Janeiro vivem em áreas sob domínio das milícias. Esses grupos paramilitares armados cobram taxas para supostamente manter a segurança nas comunidades e praticam extorsão, tortura, homicídios e tráfico de drogas e até mesmo financiam campanhas de parlamentares.

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“No início houve apoio das comunidades, que se sentiam desprotegidas devido à ação dos traficantes, mas hoje é impossível ter um negócio nessas áreas sem pagar aos milicianos por uma suposta segurança. Eles cobram com ameaça de retaliação, como destruir os bens do morador, expulsá-lo de casa ou até matá-lo”, diz a antropóloga Alba Zaluar, da Uerj, que critica a política de segurança de Bolsonaro por não mencionar a corrupção praticada por milicianos.

Manso avalia que a proposta de Bolsonaro pode contribuir para a nacionalização das milícias no Brasil, a exemplo do que aconteceu no México e na Colômbia.

Posicionamento ambíguo

Em discurso no plenário da Câmara, em 12 de agosto de 2003, Bolsonaro elogiou a atuação de um esquadrão da morte na Bahia, dizendo que, “enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio será muito bem-vindo”. Em entrevista à rádio Jovem Pan, em fevereiro deste ano, o candidato voltou a sinalizar apoio à atuação de milicianos. “Tem gente que é favorável às milícias porque é a maneira que elas têm de se ver livre da violência. Naquela região onde a milícia é paga não tem violência”, afirmou.

Flavio Bolsonaro, filho do candidato, foi o único deputado da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) que, em 2007, votou contra a instalação da CPI das Milícias, que indiciou 266 pessoas, incluindo sete políticos. “Dizem que as milícias cobram tarifas, mas eu conheço comunidades em que os trabalhadores fazem questão de pagar 15 reais para não ter traficantes”, disse na época, ao defender a atuação extrajudicial de agentes de segurança.

Em 2008, no plenário da Câmara, o pai dele lamentou que as apurações da CPI atingiram milicianos e não traficantes e classificou grupos paramilitares de “defensores da ordem”, numa época em que já havia denúncias de extorsão de moradores e de homicídios.

Para Manso, a relativização feita pela família Bolsonaro dos crimes praticados pela polícia é escandalosa. “Até que ponto as instituições democráticas brasileiras vão conseguir controlar esse ímpeto raivoso e o descaso que ele tem com a violência?”, questiona. “Ao apoiar a flexibilização do monopólio do controle da violência pelo Estado, ele defende a sua própria visão de mundo, à revelia da democracia.”

Na quarta-feira 17 a Procuradoria-Geral da República anunciou que vai se opor ao projeto de segurança pública proposto por Bolsonaro. O Código Penal já autoriza um policial a matar se um criminoso coloca a vida de alguém em risco e quando há legitimidade da ação. O candidato do PSL, no entanto, pretende ampliar os chamados excludentes de ilicitude, previstos no artigo 23, que incluem a legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal.

Para o pesquisador Daniel Cerqueira, do Ipea e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, essa proposta deve dinamizar o mercado da propina. “Significa que o policial pode matar ou não o bandido, já que não haverá um controle do Estado. O policial corrupto pode dizer o seguinte: ‘Quanto é que você pode me pagar para eu não te matar?'”, observa. “Nesse jogo não tem vencedor, só perdedores, e o principal é o próprio policial.”

Segundo Zaluar, a licença para matar vai aumentar o número já elevado de mortes cometidas por policiais sem nenhuma consequência posterior. “Ao dar apoio jurídico, Bolsonaro incentiva uma situação extrajudicial. Bastará alguém andar com algo parecido com um fuzil, como o jovem que carregava um guarda-chuva e foi recentemente fuzilado”, diz. “É óbvio que isso não vai nos ajudar a resolver essa questão. Pelo contrário, temo que isso termine numa guerra civil, com o aumento de mortes de policiais e de moradores das favelas.”

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Cerqueira avalia que, diante da certeza de que serão executados, os criminosos continuarão a trocar tiros até a última possibilidade. “O cara é criminoso, mas não é burro. Eles vão comprar armas de fogo com maior poder de destruição para conseguir confrontar a polícia. Essa licença para matar é o ingrediente que alimenta a espiral de violência recíproca entre criminosos e as forças policiais”, diz o pesquisador.

Políticas falsas

Cerqueira classifica o programa de Bolsonaro de uma total falácia. “É ridículo pensar que, com leis mais duras, vai se prevenir o crime, considerando que não conseguimos nem calcular a taxa de elucidação de homicídios no Brasil. Quando se consegue, fica em torno de 10% em alguns estados. O que precisamos é aumentar a chance de um cara que cometeu um crime ser punido”, diz. “Isso não depende de leis mais duras, mas de uma reestruturação do sistema de investigação e inteligência das polícias, ou seja, da qualificação do trabalho policial.”

O pesquisador do Ipea afirma que é preciso investir numa repressão qualificada e orientada pela inteligência e a investigação “para prender os grandes criminosos e homicidas contumazes que causam medo e terror à sociedade”. Segundo ele, isso é mais efetivo do que ter nas ruas uma “polícia reativa que vai prender em flagrante os ‘ladrões de galinha’, com pouca quantidade de drogas, que enchem os presídios e são depois recrutados pelas facções criminosas dentro da prisão”.

Além disso, é consenso nacional e internacional que mais armas significam mais crimes. “As pessoas pensam que, ao se armar, vão poder se defender, já que o Estado não consegue protegê-las, mas uma arma de fogo dentro de casa aumenta cinco vezes a chance de alguém naquele domicílio ser vítima de homicídio ou cometer suicídio”, explica.

Além de aumentar a insegurança familiar, o armamento da população contribui para elevar a insegurança social. “Parte das armas de fogo usadas pelos cidadãos são roubadas ou extraviadas e vão parar no mercado ilegal. Com maior oferta, o preço tende a diminuir. Isso significa que o bandidinho pé de chinelo vai ter aquela arma de fogo para ir roubar na esquina e acabar cometendo latrocínio”, diz. “No ambiente urbano, a arma é um objeto de ataque e não um instrumento de defesa. Em vez de trazer segurança ao ‘cidadão de bem’, ela é a propulsora de mais violência.”

Para Cerqueira, há luz no fim do túnel. “É preciso acabar com a fábrica de produção de criminosos, que nasce do abandono de crianças sem condições de desenvolvimento infanto-juvenil, sem acesso à escola e, no futuro, ao mercado de trabalho, e que ficam à mercê do crime organizado”.

Mais importante ainda é o comprometimento do presidente, de governadores e de prefeitos em liderar um programa intersetorial de redução da violência, que envolve programas de educação, cultura, esportes e resolução de conflitos, em ação conjunta com comunidades, agências do governo, o setor privado e organizações da sociedade civil.

O especialista observa que o tripé da segurança proposto por Bolsonaro – com leis mais duras, licença para matar e facilidade de acesso a de armas de fogo – fala “direto ao estômago do cidadão aturdido com tanta violência, o que é natural”. “As pessoas estão com medo, e o medo impulsiona a ação humana. Mas ele também é um péssimo conselheiro”, afirma Cerqueira, para quem o programa de Bolsonaro é uma fake policy (política falsa) e uma tragédia para o País.

Manso classifica o programa de segurança do candidato de ridículo. “A flexibilização do Estatuto do Desarmamento é acompanhada de uma negação do Estado de Direito, com a defesa de execuções extrajudiciais, a defesa da violência contra certos grupos sociais e a ambiguidade do candidato em relação às milícias devido à raiva que ele tem do sistema democrático e dos limites do Estado de Direito”, observa.

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