Política
O tempo urge
O governo Lula prorroga a GLO em portos e aeroportos, mas ainda deve à população um plano para deter o avanço do crime organizado no País


Inicialmente programada para acabar no início de maio, a operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que dá às Forças Armadas permissão para executar “ações de vigilância, prevenção e repressão” nos portos e aeroportos de Rio de Janeiro e São Paulo, foi estendida por mais 30 dias pelo governo federal. Embora existam dados a comprovar grande número de prisões, apreensões de armas e drogas e confisco de ativos, o balanço da operação iniciada em novembro do ano passado para combater as organizações criminosas deixa nos ministérios da Defesa e da Justiça e Segurança Pública a velha sensação de enxugamento de gelo. Já aos olhos da população, as atividades de facções como o Primeiro Comando da Capital ou o Comando Vermelho parecem ir muito bem, obrigado.
Com a batata quente da segurança pública a arder no seu colo, o governo hesita sobre o que fazer. Em reunião com o presidente Lula, os ministros José Múcio e Ricardo Lewandowski avaliaram que a prorrogação da GLO se faz necessária, para que haja tempo de decidir o próximo passo após a saída dos militares. Resilientes, as duas maiores organizações criminosas do País não dão sinais de que vão abrir mão da expansão dos negócios ilícitos, que passam pela ampliação do domínio territorial do CV contra as milícias ou facções rivais no Rio e pelo controle das rotas internacionais do tráfico e infiltração e “legalização” do PCC nos setores governamental e empresarial em São Paulo. Deflagrada há um mês pela polícia paulista no âmbito de um inquérito do Ministério Público que apura a participação societária de integrantes do PCC em empresas de ônibus na capital, a Operação Fim de Linha revelou que a facção chegou a outro patamar: “A organização está tomando contornos de máfia, se infiltrando no Estado, participando de licitações. Isso é característico de máfias, como a gente já viu na Itália”, alerta o promotor Lincoln Gakiya.
Poucos duvidam de que os 600 milhões de reais bloqueados pela Justiça nas empresas Upbus e Transwolff são apenas a ponta do iceberg. Dimensionar com exatidão a extensão e o alcance dos tentáculos da facção demanda, porém, um trabalho conjunto de inteligência e investigação entre diferentes esferas de governo que, na melhor das hipóteses, está apenas começando. Indiferente, a metástase do crime espalha-se pelo Brasil. Com a complacência do governo Bolsonaro, o CV e o PCC fincaram pé na Amazônia, onde passaram a controlar atividades criminosas, como garimpo e extração de madeira, entre outras. Lançado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o documento Cartografias da Violência na Amazônia revelou que, além das duas principais facções, ao menos outras 20, de menor porte e algumas estrangeiras, controlam total ou parcialmente cidades onde habita 59% da população da região, algo em torno de 15 milhões de pessoas.
Lidar com um cotidiano que inclui tráfico, assaltos e assassinatos já é uma realidade consolidada também na maior parte das grandes cidades do Nordeste, região que registrou a maior taxa de homicídios do País – 33,76 por 100 mil habitantes – no ano passado. Em metrópoles como Salvador, Recife e Fortaleza, a presença das facções em quase todos os bairros repete nos últimos anos uma realidade há muito vivida por Rio e São Paulo. “A intensa movimentação de grupos que operam mercados ilegais de drogas, armas e contrabando gerou uma dinâmica de crimes peculiar e é um dos fatores que explicam os altos índices de violência na região”, diz o professor Luiz Paiva, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará. Além da presença nacional do CV e do PCC, o medo da população aumenta porque as duas facções, outrora aliadas pontuais, agora estão em disputa aberta em pelo menos dez estados.
O PCC já atua como máfia, alerta promotor Lincoln Gakiya
“Hoje temos um cenário de criminalidade organizada que toma conta do País e é bem maior do que a dimensão policial. O desafio é blindar a economia formal da economia do crime”, avalia Renato Sérgio de Lima, presidente do FBSP. Para o sociólogo, é preciso pensar estratégias diferentes para realidades distintas. “Fazer segurança pública nunca é seguir o mesmo protocolo. Fazer polícia em São Paulo é diferente de fazer polícia no Rio ou no Acre. São contextos completamente diferentes, camadas sobrepostas de problemas logísticos, políticos, territoriais, urbanos, associados ao meio ambiente, à regularização fundiária.” Para o especialista, há duas dimensões centrais: uma política e estratégica, para definir as regras de governança e as metas a ser perseguidas, e outra operacional, para reduzir as ações do crime organizado e combater a lavagem de dinheiro. “Aí, em termos tático-operacionais, isso vai se adaptando à realidade local.”
O antropólogo e escritor Luiz Eduardo Soares defende a incorporação do Sistema Único de Segurança Pública à Constituição Federal, ideia também aventada por Lewandowski. O Susp foi criado em 2018 para “integrar órgãos de segurança e padronizar informações e procedimentos” em todo o País, mas jamais foi efetivo. “O atual ministro foi o único a colocar o dedo na ferida. Ou se constitucionaliza o Susp, redistribuindo autoridade e responsabilidades entre União, entes federados e suas instituições policiais, ou permaneceremos paralisados, clamando por ações sistêmicas, pedindo coordenação, prometendo integração, e nada disso sairá do papel.” Soares diz que a atual lei infraconstitucional do Susp não funciona: “É uma farsa porque a coordenação ali prevista se choca com a autonomia dos entes federados”.
Como a tartaruga da fábula de La Fontaine, o Poder Público vê a lebre do crime organizado disparar. Será preciso determinação e paciência para vencer no final. Uma das iniciativas que podem apresentar resultados em longo prazo é o Comitê Integrado de Investigação Financeira e Recuperação de Ativos (Cifra), colegiado criado há seis meses pelo então ministro da Justiça, Flávio Dino, e integrado por representantes da Polícia Civil e da Secretaria de Fazenda do Rio, da Secretaria Nacional de Segurança Púbica (Senasp), da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. “Através da investigação, o governo federal tem muito a fazer em estados com grande corrupção. A PF pode criar forças-tarefa para investigar certas áreas, nas quais as polícias estaduais não conseguem ou não querem entrar. Nesse sentido, o Cifra poderia ser importante, mas ainda não sabemos o que eles fizeram e o impacto. Mas, sem dúvida, inteligência e investigação são muito mais importantes do que colocar militares em portos e aeroportos”, avalia o sociólogo Ignacio Cano, especialista em segurança pública.
Luiz Eduardo Soares diz que medidas como o Cifra são importantes, mas não bastam. “Elas teriam de ser potencializadas por ações complementares sistêmicas que focalizassem os braços políticos e as ramificações policiais do crime organizado e investissem no controle de armas.” Ele avalia que nenhum avanço será significativo sem a descriminalização das drogas e sem que o sistema penitenciário seja submetido à Lei de Execuções Penais. “Os direitos dos presos têm de ser respeitados. Até porque as violações que eles sofrem se refletem nas ruas.”
Metástase. A facção paulista controla empresas de ônibus e vence licitações públicas. Os estados nordestinos batem sucessivos recordes de mortes violentas – Imagem: iStockphoto e Redes sociais
Para Lima, o Cifra é uma ideia positiva, mas ainda incipiente. “Em termos de tempo de política pública é algo que ainda está sendo construído. Eu não consigo avaliar por que não tenho acesso aos dados. Mas, seis meses é um tempo relativamente curto para que isso dê certo. A redução da expansão dos tentáculos do crime não é algo que dependa só da atividade de polícia. Depende do Banco Central, do Coaf”, pondera o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em resposta aos pedidos de informações sobre os resultados do Cifra enviados por CartaCapital, o Coaf informa que “não pode fornecer dados ou informações intercambiadas com autoridades competentes” e “tampouco comenta casos específicos, sem prejuízo do devido acompanhamento”. Já o Ministério da Justiça e a PF não se pronunciaram até o fechamento desta edição. No fim de março, o secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, reuniu-se com o presidente do Conselho Nacional do Ministério Público, Paulo Gonet, para tratar do combate às facções. O CNMP informa que “o objetivo da reunião foi alinhar estratégias em conjunto para combater o crime organizado”. As ações, segundo a assessoria de Gonet, “estão em andamento, mas não podem ser divulgadas por questões estratégicas, sob pena de não garantir o resultado esperado”. Procurado, Sarrubbo não deu retorno.
Segundo o MJSP, as ações da GLO nos portos e aeroportos resultaram, até o fim de abril, em 2.779 prisões em flagrante e 399 cumprimentos de mandados de prisão, além da apreensão de 172,3 toneladas de drogas, 282 armas e 11,2 mil munições. O valor dos ativos bloqueados alcança 116,4 milhões de reais e inclui cinco imóveis, 963 veículos, 84 embarcações e 13.891 pedras preciosas: “Supostamente, a presença dos militares teria inibido o tráfico e, portanto, não haveria tantas ocorrências, mas isso é muito difícil de medir. A GLO foi destinada a dar uma resposta, a fazer com que a opinião púbica veja que o governo está fazendo alguma coisa. Mas, o impacto real é mínimo, até porque parte desse tráfico em portos e aeroportos acontece através da corrupção dos agentes púbicos. E aí, a presença das Forças Armadas é absolutamente inócua”, diz Cano.
“Politicamente foi uma resposta”, concorda Lima: “O grande legado da GLO é ter mostrado para a sociedade que segurança é um problema que envolve o governo federal, que precisa mobilizar-se e articular esforços para dar conta de um desafio que também é dele, não é só dos estados e municípios”. A operação trouxe “um ganho residual”, avalia. “Mas, se olharmos o dinheiro gasto, vamos entender que a relação custo-benefício não necessariamente é a mais adequada em termos de gestão pública.”
Para Soares, as apreensões foram aquém do esperado porque os criminosos não são estúpidos: “Sabem ler e escrever. Fazem contas. Leem jornais. Mais que isso: têm acesso a informações privilegiadas. Se há concentração de esforços em determinados pontos, eles procuram vias alternativas”. Ele diz que a GLO, mais uma vez, demonstrou que as Forças Armadas não devem intervir na segurança: “Não funcionou, como era previsível. Se estivesse funcionando, por que haveria uma prorrogação de 30 dias? Uma medida bem-sucedida deve ter prazo de validade? Não faz sentido. É claro que GLOs são provisórias, têm de sê-lo, até por motivos legais. Mas isso também mostra que não podemos mais viver de iniciativas reativas e voluntaristas que buscam responder à opinião pública”. •
Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O tempo urge’
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