Política
O sonho dos escravagistas
Luiz Philippe de Orleans e Bragança, o ‘príncipe’ dos bolsonaristas, propõe a extinção da Justiça do Trabalho


Um dos ramos do Judiciário brasileiro com maior produtividade, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Justiça do Trabalho volta a ser alvo de ataques e a sofrer ameaça de extinção. Uma Proposta de Emenda Constitucional do deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança, do PL paulista, que se autointitula “príncipe” por pertencer à dinastia portuguesa que inaugurou a exploração das terras brasileiras, pede a extinção da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho (MPT). Não por acaso a proposta vem à tona no momento da escalada de denúncias de trabalho análogo à escravidão no País. Com pouca chance de prosperar, a PEC segue a lógica bolsonarista, da qual o parlamentar comunga, e tenta deslegitimar as ações dos órgãos fiscalizadores das relações trabalhistas, sem deixar de tirar uma casquinha do Judiciário, alvo recorrente da malta.
Para começar a tramitar, a matéria precisa de ao menos 171 assinaturas dos deputados, mas ainda não alcançou sequer 70. Caso ultrapasse essa fase, por se tratar de uma Emenda à Constituição, precisaria ser aprovada por três quintos dos deputados, 308 votos, e igual fração no Senado, 27 votos, em dois turnos. O jurista Jorge Luiz Souto Maior, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região e professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da USP, analisou o texto, classificado como caricato e sem qualquer embasamento teórico. “No fundo, o propósito é tirar o foco das empresas escravistas que estão sendo identificadas. Estrategicamente, eles tentam virar o jogo com uma proposta para extinguir a Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho, todo mundo começa a falar sobre isso.”
As bancadas ruralista e evangélica são as maiores entusiastas da PEC, assim como os deputados dos estados do Sul do País, região onde foram resgatados recentemente 207 trabalhadores em condições análogas à escravidão nas vinícolas de Bento Gonçalves. “Talvez esses ataques venham para colocar os trabalhadores na defensiva, no momento em que deveriam estar partindo para o ataque, cobrando a revogação da reforma trabalhista. É isso que precisamos discutir. A pauta emergencial, fundamental e primária do novo governo deve ser a revogação da reforma, que tem provocado a terceirização, a precarização, o sofrimento da classe trabalhadora, aumentando os acidentes e reduzindo salários”, acrescenta Souto Maior.
O MPT resiste, mas tem 1,5 mil vagas ociosas para auditores fiscais do trabalho. Desde 2013, não é feito um concurso para preencher esses cargos
O presidente do TRT da 8ª Região, Marcus Maia, rebate a ideia de passar os processos trabalhistas para a Justiça Comum, como propõe a PEC. “A magistratura estadual é voltada para um determinado tipo de assunto, enquanto a magistratura do trabalho é vocacionada para dirimir um assunto completamente diferente, mas que já está habilitada, treinada e experimentada. Não vejo em nenhum outro ramo do Judiciário o mesmo perfil que tem o trabalhista”, diz, acrescentando que esse direito é regulamentado pela União e, portanto, estados e municípios não têm competência para analisar tal legislação. O presidente da Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas (Anamatra), Luiz Antonio Colussi, classificou a PEC como retrocesso e, caso ganhe adesão, vai representar a desproteção dos trabalhadores, além de potencializar a precarização nas relações de trabalho.
“Temos a atuação de uma Justiça especializada e segmentada para os conflitos entre o capital e a força de trabalho, contra o trabalho escravo e contra a concorrência predatória. E mais: a Justiça do Trabalho é uma das mais céleres do País e a que tem os melhores índices de conciliação.” O desembargador Fábio Farias, que ocupa a cota do Ministério Público no TRT-6, com sede em Pernambuco, repudia qualquer possibilidade de extinção do MPT. “Extinguir instituições como o MPT é uma estratégia, tem o objetivo muito claro de amputar o Estado brasileiro de um instrumento de afirmação de cidadania, que tem prestado serviços muito evidentes.”
Segundo o procurador Italvar Medina, vice-coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT, o desmonte da Promotoria já vem acontecendo há algum tempo. Ele cita a escassez de auditores fiscais do trabalho e afirma que, desde 2013, não há concurso para preencher as vagas ociosas. “Há mais de 1,5 mil cargos vagos, quase 50% do total. Isso prejudica não apenas a organização das forças-tarefas, mas também a prevenção do trabalho ilegal. Na medida em que diminuem as fiscalizações de rotina, inclusive no meio rural, os empregadores passam a se sentir mais confortáveis para cometer abusos que podem levar, inclusive, ao trabalho em condições análogas às de escravidão.”
Para Manoel Gérson, da Federação Nacional dos Trabalhadores da Justiça Federal e presidente do sindicato da categoria em Pernambuco, a PEC do deputado monarquista tem a finalidade de acentuar o efeito nefasto para os trabalhadores da reforma trabalhista e da terceirização. “A Justiça do Trabalho é vista como empecilho à ampliação da exploração da mão de obra e ao acúmulo de capital, daí as propostas de esvaziar suas atribuições e levar as causas trabalhistas para a Justiça Comum. Bolsonaro já havia tentado isso com a proposta de Carteira de Trabalho Verde e Amarela, que retirava direitos e excluía a jurisdição da Justiça do Trabalho, na linha do discurso ‘você quer empregos ou direitos?’ O deputado requenta a ideia fixa da direita de afastar o arcabouço protetivo dos trabalhadores na relação capital-trabalho”, ressalta.
Guardião. O MPT está na dianteira das operações de combate ao trabalho infantil e à escravidão contemporânea – Imagem: Fernando Bizerra/Ag.Senado
Na contramão do que propõe a PEC, a magistratura trabalhista desenvolve uma estratégia de aproximação com a população, em um projeto itinerante para oferecer os serviços em locais mais remotos, onde não existem varas trabalhistas, como acontece com o TRT-8, que atende os estados do Pará e Amapá. “Não temos varas do trabalho em todos os municípios, dificultando o atendimento de forma mais eficiente à população. Então, passamos a fazer itinerância nesses locais sem varas do trabalho ou onde há demandas reprimidas”, explica Marcus Maia, presidente do tribunal.
Além de transferir para a Justiça Comum a competência dos processos trabalhistas, a PEC também prevê a extinção do Tribunal Superior Eleitoral, o que só reforça a intenção de fazer barulho para desviar o foco das mazelas do bolsonarismo. No lugar do TSE, o projeto cria uma “Autoridade Nacional Eleitoral” para organizar os pleitos, tarefa que seria dividida com o Congresso Nacional. O STF também é alvo da proposta, a sugerir mandato de dez anos para os ministros da Corte, sem a possibilidade de recondução. Defende ainda que o STF se limite a julgar temas constitucionais – os demais casos passariam para o STJ –, e os ministros possuam pelo menos 20 anos de experiência na área e idade entre 50 e 65 anos.
Para completar o delírio, a PEC aumenta o poder da Justiça Militar, que ficaria responsável de julgar crimes contra a soberania nacional, terrorismo, espionagem, crimes de lesa-pátria e crimes de guerra. Em matéria publicada no site do próprio deputado monarquista, Bragança vocaliza o discurso bolsonarista ao afirmar que a PEC “revalida as instituições do Poder Judiciário como um poder confiável e seguro, principalmente para a população, mas também para os legisladores, chefes de poderes e até terceiros interessados numa estabilidade e segurança jurídica”. •
Dignidade humana em xeque
Sem a Justiça do Trabalho, o País ruma para a “absoluta barbárie”, alerta Lélio Bentes Corrêa, presidente do TST
Justiça itinerante. Corrêa quer cobrir as áreas remotas do País – Imagem: Luiz Silveira/Ag. CNJ
Ao contrário do que propõe a PEC que vem sendo articulada pelo deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Lélio Bentes Corrêa, defende o fortalecimento da Justiça do Trabalho como forma de o Estado assegurar que as relações de trabalho se desenvolvam no nível de civilidade. Do contrário, o País caminharia para a “absoluta barbárie”. Em entrevista a CartaCapital, o magistrado critica a liberdade econômica sem responsabilidade social e defende a maior proximidade do Judiciário com a população, através da Justiça Itinerante. A entrevista completa, concedida à repórter Fabíola Mendonça, pode ser conferida em no canal da revista no YouTube.
Extinção da Justiça do Trabalho
Querer acabar com a Justiça trabalhista num país onde ainda são frequentes os casos de trabalho análogo à escravidão e exploração do trabalho infantil, de assédio moral e sexual de trabalhadores, é como propor a extinção dos hospitais para eliminar as doenças. A Justiça do Trabalho intervém para assegurar que as relações de trabalho se desenvolvam no nível de civilidade que se espera de um país que exerce liderança no Hemisfério Sul.
Passaporte para a impunidade
Se imaginarmos as relações de trabalho num país tão desigual como o Brasil, sem nenhum tipo de controle ou intervenção do Estado, estaríamos entregues à total barbárie. A ideia de liberdade econômica absoluta sem nenhuma responsabilidade social e sem nenhuma preocupação com os direitos humanos está ultrapassada. É necessária a presença de estruturas estatais firmes e independentes, que atuem na proteção dos direitos.
A resistência
O Poder Legislativo, até hoje, nas diversas composições, rechaçou essas tentativas de extinção ou de diminuição da competência da Justiça do Trabalho. Não significa que menosprezamos a proposta atual, mas penso que temos a união necessária para esclarecer à sociedade e convencer os parlamentares da total impropriedade de se seguir com essa iniciativa.
Quem ganha e quem perde
Ganham os infratores que não cumprem a lei, que não tratam seus trabalhadores como seres humanos, como sujeitos de direito. Ganham aqueles empresários que deixam de cumprir a legislação previdenciária. Quem perde? Os trabalhadores, claro. A Justiça do Trabalho, no ano de 2021, arrecadou mais de 4 bilhões de reais em contribuições previdenciárias devidas e não recolhidas e repassou 30 bilhões de reais em indenizações aos trabalhadores que tiveram seus direitos violados.
Justiça itinerante
A presença do juiz trabalhista nas localidades mais distantes é fundamental para garantir a esses trabalhadores o acesso a condições dignas de trabalho e de sobrevivência. Nosso país tem dimensões continentais, estamos diante de um grande desafio, especialmente na Região Norte, onde temos muitas comunidades ribeirinhas, ou no seio da floresta, sem acesso à internet. Não podem sequer fazer as denúncias de forma remota. Isto é fundamental para que essa parte importante da nossa população não fique esquecida e também serve para o mapeamento de locais com alto potencial de conflito, para que, no futuro, possamos instalar algum atendimento fixo nessas localidades.
Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O sonho dos escravagistas’
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