Política

O retorno à ribalta de Moro e Dallagnol é o momento mais trágico do meu pesadelo

A irrupção de ambos na cena política ensombrece tragicamente o espantoso momento vivido pelo Brasil de Bolsonaro

Navios negreiros para trazer 4 milhões de escravos.
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O retorno à ribalta de Sergio Moro e Deltan Dallagnol é o momento mais trágico do meu pesadelo. No país mais desigual do mundo, nunca bafejado por uma autêntica democracia, onde a casa-grande e a senzala continuam de pé para nos atar à Idade Média, o sonho maligno torna-se realidade. Difícil é localizar o exato princípio deste enredo. O impeachment de Dilma Rousseff? Ou o início da Lava Jato entregue à chamada República de Curitiba?

Naqueles momentos, o STF tinha a chance e, mais ainda, o dever de intervir, mas em ambos os casos cruzou os braços qual fosse mero espectador. O nosso Supremo é uma casa muito especial, com papel assegurado no pesadelo. É o único tribunal do mundo a oferecer aos olhos e ouvidos do público as suas sessões pela televisão. Ali tonitruam, com raríssimas exceções, a parvoíce e o escasso saber dos integrantes dispostos a exibir talentos de asnos pomposos.

 

Moro não deve ter lido um livro exemplar intitulado Dos Delitos e das Penas, de autoria de Cesare Beccaria, ainda no século XVIII. Ali se lê da diferença entre “o processo ofensivo”, quando o magistrado, em lugar de ser “indiferente investigador da verdade” torna-se inimigo do réu, ao buscar no prisioneiro “o delito, a insídia” ao sabor, acrescenta Beccaria, do interesse “não de buscar a verdade, e sim de provar o delito”. De fato, Moro e Dallagnol agiram sempre politicamente a serviço de motivações convenientes à casa-grande e ao próprio Tio Sam e seu imperialismo. Esta ligação de Moro e Dallagnol com a diplomacia de ­Washington é corroborada, de resto, por frequentes visitas de ambos aos Estados Unidos.

O pesadelo não arrefece, longe de se aplacar. Vejo florestas ensanguentadas no confronto entre arcabuzes e arcos e flechas. Quatro milhões de africanos abduzidos à força nos seus pagos e trazidos para cá por navios ditos negreiros, para serem escravizados pelos colonos de um Brasil habitado por degredados, prostitutas e cristãos-novos. O território da colônia é dividido entre senhores feudais e aqui se implanta a ideia nefasta da monocultura.

Os despojos de Getúlio Vargas são embarcados para São Borja diante de uma multidão em prantos. Acima, o doutor Ulysses, herói de uma Constituição avançada. (FOTO: Ailton de Freitas/Folhapress e Arquivo Nacional)

Não falta ao pesadelo a corte lisboeta, encabeçada por D. João VI, que abandona seu país ao se aproximar da capital o general napoleônico Junot, e aqui transfere o seu império. O sonho maligno se enriquece com a ficção de uma independência despercebida pela população e não há quem ouça o chamado Grito do Ipiranga. A monarquia, enfim representada por D. Pedro II, é derrubada pelo primeiro golpe fardado e o poder acaba nas mãos dos militares.

Circulam pelo pesadelo generais de quepes abnormes, que lhes pressionam perigosamente as têmporas, de sorte a provocar a cólera do dobermann ou do pit bull. Segue-se um festival de refregas destinadas a confundir os ânimos e as mentes. Triunfam o discurso retórico e a maquiagem da história, até o advento de um ditador estranhamente dotado da vocação de estadista, enfim revelada quando, eleito constitucionalmente, abre o caminho da industrialização com o ponto exclamativo da criação da Petrobras, em outubro de 1953.

Getúlio confere ao trabalhador um status ainda não alcançado, e assim ganha inimigos entre os herdeiros da casa-grande. Contam eles com um veemente advogado, Carlos Lacerda, também conhecido como O Corvo, pássaro talhado para este enredo. Dado a melancolias, o ex-ditador, cercado pela revolta dos senhores, apanha a pistola que repousa sobre o seu criado-mudo e mata-se com um gesto a mediar entre desprezo, desespero, impotência e ironia.

Enxergo um estranho indivíduo munido de uma vassoura que não sabe usar, dominado pela obsessão do poder, mas desastrado em seus movimentos, e desta situação evoluímos para um novo golpe em 1964. Surge uma ditadura de 21 anos secundada por um exército de torturadores exímios, a ponto de transmitirem a sua mestria além-fronteiras, a prestigiar golpes desferidos em outros pontos do mapa latino-americano. Ao cabo, os militares convocados pelos herdeiros da casa-grande renunciam ao poder e no tempo abrem uma fresta para um período esperançoso, sobretudo quando aparece na ribalta um ex-metalúrgico cheio de boa vontade e grande amor pelo povo.

O golpe moderniza-se: antes aplicado pelos militares convocados pela casa-grande, hoje executado pelos próprios poderes da república

Por Lula tenho o afeto de um irmão mais velho, mas em vão repito-lhe que, para resolver os verdadeiros problemas, é preciso verter sangue nas calçadas. Com isto o assusto, porque, crente da religião cultural brasileira, ainda acredita em algo apontado como a conciliação das elites. Não entende que o bom coração não é o instrumento ideal para fazer política. E que a casa-grande jamais aceitará os trabalhadores nativos como a nata do País. Ele é, porém, o líder portador de um verbo perigosamente orientado e logo os senhores percebem o risco que correm.

Decorre um período feliz para um povo festeiro a ser facilmente comovido por miú­dos avanços a seu favor. Tanto basta para colocar os senhores de sobreaviso e no espaço de dois mandatos de Lula presidente e de um mandato e meio da sua candidata Dilma Rousseff, enfim eleita e reeleita, para derrubá-la e entronizar o usurpador Michel Temer, notoriamente corrupto. O golpe tradicional é substituído por uma solução inédita, praticado desta vez pelos próprios poderes da República.

Raymundo Faoro e Gilberto Freyre, os dois maiores pensadores brasileiros. (FOTO: Arquivo/Estadão Conteúdo e Arquivo Agência O Globo)

Antes disso, uma personagem importante, o doutor Ulysses Guimarães, a lembrar no físico atores ingleses, desses que recitam Shakespeare como ninguém, envolto em paletós folgados demais para o porte esguio, doa ao País e ao seu povo uma Constituição exemplar, obra longamente meditada e francamente avançada. Será traída depois nas mais diversas ocasiões, enquanto a queda de um helicóptero, onde viajam com ele ­Severo Gomes e as esposas, o esconde para sempre no fundo do mar.

Por esta rota desaguamos na demência bolsonarista, que o pesadelo nos impõe neste exato instante. A irrupção no palco de uma dupla de criminosos agentes do caos, como Moro e Dallagnol, ensombrece tragicamente o pesadelo. Aporto à conclusão de que isso tudo só pode ser um sonho mau e no ponto de perder a verdadeira esperança digo para mim mesmo: se for pesadelo, algum dia acordarei.

*Influenciaram-me, mesmo ao dormir, os dois maiores pensadores brasileiros. Cada qual a seu modo, impecáveis na lida com o vernáculo, tiveram a generosidade de me deixar lições definitivas. Raymundo Faoro, amigo fraterno, mostrou-me como o patrimonialismo do Estado tem origem na dinastia portuguesa de Avis e aqui se afirma desde os tempos da colônia como ideia mestra praticada pelo estamento burocrático. Quanto a Gilberto Freyre, ele disse tudo a respeito da casa-grande e da senzala e de sobrados e mocambos.

Publicado na edição nº 1183 de CartaCapital, em 11 de novembro de 2021.

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