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O remendo possível

O projeto aprovado na Câmara eleva a carga horária de disciplinas básicas, mas não avança em outros pontos sensíveis

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Cenário. Oito em cada dez formandos da rede pública não se sentem preparados para disputar vagas nas universidades. Camilo Santana busca alternativas – Imagem: Luis Fortes/MEC e Marcelo Lelis/Agência Pará/GOVPA
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“Queria prestar vestibular para Física, mas no último ano não tive nenhuma matéria de exatas. Só consegui passar na UFRJ porque tive a oportunidade de fazer um curso preparatório. Se dependesse da escola, não teria chegado”, afirma Julia Guedes Just, de 17 anos. A estudante figura na primeira leva de formandos do Novo Ensino Médio no Colégio Estadual Vereador Antonio de Ré, em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo. O modelo entrou em vigor em 2017, ainda no governo de Michel Temer, mas só agora começa a mostrar os primeiros resultados. “Um desastre”, resume a jovem. “É muita responsabilidade eliminar matérias já no primeiro ano. Ainda corremos o risco de completar o curso sem as disciplinas eletivas que escolhemos, porque as escolas não são obrigadas a oferecer todos os itinerários. É modelo bastante excludente.”

Julia está ansiosa para se mudar para­ o Rio de Janeiro e iniciar sua trajetória universitária. Apesar de estar radiante com a conquista, ela se sente em desvantagem com relação aos futuros colegas, pois acredita que não recebeu instrução adequada na escola pública que frequentou. “Sempre tive interesse pela Física. Por isso, escolhi um itinerário formativo que tinha mais relação com meu objetivo, mas, no último ano, acabei caindo num itinerário totalmente diferente. Só tive aulas de humanas, principalmente Filosofia e Letras”, lamenta. Para correr atrás do prejuízo, ela frequentou um curso pré-vestibular comunitário, com aulas aos sábados, e ainda aproveitou o tempo livre para fazer um curso de eletrotécnica no Senai. “Foi uma forma de ter mais contato com conteúdos de exatas.”

O problema é mais comum do que se imagina. Com a reforma do Ensino Médio aprovada no governo Temer, a carga horária das disciplinas básicas e obrigatórias foi reduzida para 1,8 mil horas. Por outro lado, foram reservadas 1,2 mil horas para os estudantes aprofundarem seus estudos em um dos cinco itinerários formativos previstos no novo modelo: 1) linguagens e suas tecnologias; 2) matemática e suas tecnologias; 3) ciências da natureza e suas tecnologias; 4) ciências humanas e sociais aplicadas; e 5) formação técnica e profissional. As escolas não eram, porém, obrigadas a oferecer aos alunos todas as cinco áreas. Bastava assegurar a oferta de ao menos um dos itinerários, o que reduz significativamente o poder de escolha dos alunos.

A insatisfação dos estudantes com as mudanças foram captadas pela pesquisa “Primeira Geração de Concluintes Avalia o Novo Ensino Médio”, divulgada recentemente pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e pelo Grupo Escola Pública e Democracia (Gepud). Rea­lizado em sete escolas públicas de São Paulo, o estudo revela que 85% dos entrevistados não se sentiam preparados para fazer o Enem ou qualquer outro exame de acesso às universidades. Além disso, 92,7% dos respondentes acreditam que a reforma deveria ser cancelada. Apenas 38% disseram que conseguiram completar os itinerários escolhidos. Outros 53% avaliaram que suas escolas não deram as condições necessárias para a formação que pretendiam.

Para especialistas, o ideal é revogar completamente a reforma de Temer

Por meses, estudantes, professores e especialistas pressionaram o governo Lula a revogar completamente a reforma de Temer. O apelo ficou explícito no documento aprovado pela Conferência Nacional de Educação, a Conae, realizada em Brasília no fim de janeiro. Ciente das dificuldades de bancar a proposta com a atual composição do Congresso, o ministro da Educação, Camilo Santana, optou por propor mudanças sem uma anulação radical. Apresentado pelo Executivo, o Projeto de Lei 5230/23 foi aprovado pela Câmara dos Deputados na quarta-feira 20, na forma de um substitutivo do relator, Mendonça Filho, do União Brasil. O deputado manteve o aumento da carga horária da formação geral básica de 1,8 mil para 2,4 mil horas, como proposto pelo governo. Já as disciplinas optativas, dentro dos cinco itinerários formativos existentes, terão um peso menor, de 600 horas.

Fruto de intensa negociação do governo com lideranças da Câmara, o projeto foi aprovado em votação simbólica e segue para o Senado. Especialistas acreditam que ainda há chances de fazer mudanças significativas no texto-base, mas já consideram uma vitória o aumento da carga horária de disciplinas de formação básica para 2,4 mil horas. “Diante da correlação de forças no Parlamento, devemos celebrar a mudança, mas ainda há muitos problemas no Novo Ensino Médio”, avalia a deputada estadual Maria Izabel Noronha, a Bebel, presidente da Apeoesp, o sindicato dos professores do Estado de São Paulo. Manteve-se, por exemplo, o conceito de “notório-saber” para legitimar a atuação de docentes não habilitados, observa. “Não é porque uma pessoa conhece um assunto que ela pode ensiná-lo, sem qualquer formação pedagógica. Isso é um equívoco e também representa um desrespeito ao trabalho do professor.”

Bebel também critica a reduzida carga horária das disciplinas básicas e obrigatórias nos cursos de ensino técnico ou profissionalizante. O projeto prevê 1,8 mil horas, diante de 1,2 mil horas das disciplinas específicas. “A escola precisa preparar o aluno com uma formação humanista sólida. Tem o dever de formar cidadãos, não somente profissionais para o mercado de trabalho. Há um foco excessivo na mera qualificação de mão de obra.”

Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, Heleno Araújo, outra característica negativa da reforma é a possibilidade de usar recursos públicos para custear cursos técnicos ou profissionalizantes oferecidos pela iniciativa privada. “Defendemos que a educação pública tem de ser feita pelo Estado de forma integral. A formação profissional também é um dever do Estado.” Outra crítica dos professores diz respeito à disciplina de Espanhol, que continua não sendo obrigatória. “O Brasil é cercado por países que falam a língua espanhola, mas as escolas só são obrigadas a ensinar o idioma inglês. Não faz sentido. Isso prejudica inclusive, a integração do Brasil com os demais países da América Latina.”

Enem. Mendonça Filho quer que o exame leve em conta os itinerários formativos – Imagem: Democratas

Uma das responsáveis pela pesquisa que atestou a insatisfação dos estudantes com o Novo Ensino Médio, Ana Paula Corti, professora do IFSP e integrante da Repu, está pessimista com relação à reforma no Congresso. “Essa mudança não foi uma vitória do governo, porque o projeto apresentado não foi acatado em quase nada, com a exceção do aumento da carga horária”, explica. A educadora destaca, inclusive, a existência de novos retrocessos. “No substitutivo de Mendonça Filho, estabeleceu-se que o Enem deve levar em conta os tais itinerários formativos. O problema é que o exame não é só para quem está estudando agora. Há pessoas que se formaram há muitos anos e fazem a prova também. Ele não pode ser modificado de maneira brusca.”

Já a professora Márcia Jacomini, do Departamento de Educação da Unifesp, avalia que o modelo vigente tem aprofundado as desigualdades, porque não oferece uma formação uniforme para todos. Outro ponto que não foi corrigido na atual reforma é o formato da educação a distância. “Nossa experiência com o ensino remoto durante a pandemia de Covid-19 demonstrou que o ­País ainda não está preparado para isso, sobretudo quando consideramos o ensino oferecido aos estudantes de baixa renda.” Mesmo quando se fala do uso de tecnologia em sala de aula, é preciso levar em conta a precariedade das escolas públicas, que padecem com a instabilidade da internet e com equipamentos defasados, acrescenta a especialista. “Por vezes, o professor perde todo o tempo de aula para resolver problemas técnicos. Essa plataformização da educação só serve para agravar as disparidades entre alunos de escolas públicas e de instituições privadas.”

Todos os educadores consultados por CartaCapital acreditam que o projeto em debate no Senado ainda pode sofrer alterações importantes e haverá pressão dos profissionais da educação para que isso ocorra. Foram unânimes ao afirmar, porém, que o ideal seria revogar o Novo Ensino Médio e elaborar uma proposta nova, pautada no amplo diálogo com a sociedade. •

Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O remendo possível ‘

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