Política
O rei da baixaria
Pablo Marçal conseguiu parasitar o debate eleitoral, preso a um anacrônico modelo que não esclarece mais ninguém


“Eu gosto de baixaria, eu gosto do que vocês estão fazendo aqui, vocês estão mexendo com a pessoa errada”, advertiu Pablo Marçal, candidato a prefeito de São Paulo pelo PRTB, durante o debate promovido pela TV Gazeta e pelo canal MyNews no domingo 1º. Quando algum de seus adversários fugia do script e insistia em discutir algum tema relevante para o futuro da cidade mais rica e populosa do País, lá estava o ex-coach para esclarecer a que veio: “Isso aqui não é um jogo para ver quem tem melhor proposta. É para ver quem aguenta mais essa encheção de saco”.
O teatrinho de Marçal dá resultado. O influenciador não perde tempo discutindo propostas, até porque não teria o que apresentar. Quando arriscou propor a criação de uma rede de teleféricos para conectar favelas e estimular o turismo local, virou alvo de chacota nas redes sociais. Ciente de que não tem como vencer no debate de ideias, usa todo o tempo disponível para provocar os adversários com insultos, calúnias e difamações, tudo milimetricamente encenado para caber em vídeos curtos, editados para viralizar na internet. Não precisa sequer mobilizar sua equipe para fazer o trabalho braçal. Em vez disso, promove gincanas, com ofertas de prêmios em dinheiro aos produtores de conteúdo que fazem os melhores cortes, aqueles com maior número de visualizações no pantanoso mundo digital.
Semanas antes, durante um debate promovido por Estadão, Terra e Faap, Marçal conseguiu desestabilizar o psolista Guilherme Boulos com a leviana insinuação de que ele seria usuário de drogas – chamou o adversário de “aspirador de pó” e ainda levou o dedo à narina, simulando o consumo de cocaína – e ao chamá-lo repetidas vezes de “vagabundo”, enquanto erguia ao alto uma carteira de trabalho. Agora, no estúdio da Gazeta, conseguiu a proeza de fazer o tucano José Luis Datena, experiente apresentador de tevê, abandonar seu púlpito para tirar satisfações com o arruaceiro. “Ninguém tem sangue de barata”, protestou Datena. “Quem aguenta ser xingado a todo intervalo? Ou mesmo quando outro candidato está falando, o cara fazendo mímica do seu lado para tirar a sua atenção.”
“Isso não é um jogo para ver quem tem a melhor proposta. É para ver quem aguenta mais essa encheção de saco”, afirma o ex-coach
O festival de baixarias é recompensador. Após as molecagens de Marçal, o debate previsto para a semana seguinte, na Jovem Pan, foi cancelado por desistência dos participantes. Algo que tende a favorecer o ex-coach, no momento em que ele avança das pesquisas. De acordo com o instituto Real Time Big Data, Marçal agora lidera a corrida pela prefeitura paulistana com 21% das intenções de voto. Boulos, do PSOL, e prefeito Ricardo Nunes, do MDB, figuram com 20%. Considerando a margem de erro da sondagem, divulgada na terça-feira 3, os três estão empatados.
Apesar de incorporar novos elementos, como os cortes de vídeo para viralizar nas redes, a estratégia de Marçal não é nova, há tempos vem sendo ensinada por gurus da extrema-direita, observa a cientista política Vera Chaia, professora da PUC de São Paulo. “Basta lembrarmos que um dos princípios do Olavo de Carvalho era justamente não respeitar os adversários, não admitir regras. É isso que o Marçal está fazendo”, diz. Um antigo vídeo do ideólogo bolsonarista, que voltou a circular na internet há poucos dias, expõe com clareza a tática: “Se você faz questão de apresentar a sua tese exclusivamente dentro das vias normais e admitidas, você está provando lealdade ao sistema, e não a veracidade da sua tese”.
Ao inviabilizar os debates, Marçal corrói a própria democracia, avalia o sociólogo e jornalista Laurindo Leal Filho, professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da USP. “Não se trata de um programa como outro qualquer, ele faz parte do processo de esclarecimento da população, precisa ser regulamentado de forma mais refinada.” O especialista defende uma “reformulação total” do modelo usado no Brasil, “com regras rígidas, como a Justiça Eleitoral estabelece ao horário de propaganda gratuita”. Nos EUA, observa, os debates são realizados apenas por emissoras públicas, de forma a evitar a briga de audiência.
Guru. Olavo de Carvalho ensinava a não respeitar os adversários em um debate – Imagem: Redes sociais
Até mesmo a linguagem corporal nos debates precisa ser objeto de algum tipo de regulação, avalia Leal. “O comportamento do Marçal ultrapassa o que se espera do convívio democrático. É preciso ter padrões. Não se pode permitir algo anárquico, ainda mais na tevê aberta.” As emissoras operam sob concessões públicas, mas parecem estar mais preocupadas em atrair público com esse show de horrores, critica o especialista. O espetáculo protagonizado por Marçal no domingo 1º rendeu à TV Gazeta a maior audiência para o horário desde 2018, com 2,5 pontos aferidos pela Kantar. No dia seguinte, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o candidato bateu recorde de audiência no canal da emissora no Youtube, com pico de 2 milhões de espectadores simultâneos.
Uma das autoras da pesquisa “Bolsonarismo sem Bolsonaro”, publicada em junho pela Fundação Friedrich Ebert, a cientista política Thaís Pavez identifica Marçal como um expoente desse movimento, mas com elementos próprios. “A novidade é que ele é um nativo digital, um influencer, o que reforça o fato de vir de fora do sistema político e, portanto, poder fazer e dizer coisas de um modo diferente.” Em toda a América Latina, esses influenciadores estão assumindo protagonismo no debate público e, de certa forma, participam da formação política dos jovens, mesmo que tenham feito fama falando de outros temas, como moda, cultura ou empreendedorismo. Na Argentina, para citar um exemplo, a cosplayer Lilia Lemoine conquistou uma cadeira na Câmara dos Deputados na aba do ultradireitista Javier Milei, de quem foi conselheira de imagem. Marçal faz parte, portanto, de um fenômeno mais amplo, que ganhou força sobretudo durante a pandemia, quando as redes sociais eram, para muitos jovens, a única forma de sociabilização, observa Pavez. “Repare: ele trabalha com as angústias das pessoas endividadas, com desse discurso de ‘coach da prosperidade’. Da mesma forma, apresenta um futuro sem emprego, onde todos estão ameaçados pela tecnologia. Consegue lidar com os espectros que assombram o século 21. Por isso, tem tanto apelo.”
O show de horrores eleva a audiência das emissoras que transmitem os debates eleitorais
Já a coordenadora do Observatório da Extrema Direita, Isabela Kalil, alerta que, quando a normalidade é alterada e a sociedade passa a aceitar o que até então não era aceito, não há retorno. “Antes do Marçal, vimos o Bolsonaro agir como bem entendia, e nada aconteceu. Não tem como voltar ao cenário anterior, porque a sociedade passou a ter novos parâmetros de normalidade, por mais absurdas e desrespeitosas que possam parecer.”
O maior risco, acrescenta Leal, é que ninguém sabe exatamente quais são os planos de Marçal. “Nós sabíamos onde o gabinete do ódio de Bolsonaro pretendia chegar. O objetivo era alcançar o totalitarismo clássico, o golpe cívico-militar.” Com suas eficazes gincanas na internet, o coach ganha terreno, mas seu projeto de poder segue desconhecido. “Ele está corroendo a democracia sem apontar qualquer temor de que ela está sendo esgarçada. É muito mais grave, porque não sabemos se tem volta.” •
Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O rei da baixaria’
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