Política

O que pretende João Doria ao se consagrar o líder do PSDB?

Engaiolar o tucanato é o primeiro item do projeto de Doria: concorrer à Presidência em 2022 como representante de um projeto ultraliberal

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De aventureiro rejeitado a dono do partido. Bastaram duas eleições – e nenhum mandato completo – para João Doria fincar sua bandeira no PSDB, uma legenda consumida, como a Porto Real da série Game of Thrones, pelo fogo das vaidades e das disputas de poder. Salvo uma reviravolta inesperada, o governador de São Paulo tem tudo para emplacar um aliado na presidência da agremiação, que elege sua nova Executiva Nacional na sexta-feira 31. O candidato único é Bruno Araújo, ex-deputado federal por Pernambuco e afilhado do lobista de profissão que gosta de se apresentar como empresário.

Engaiolar o tucanato é o primeiro item do ambicioso projeto de Doria: concorrer à Presidência da República em 2022 como representante de um projeto ultraliberal sem a disfuncionalidade histriônica e improdutiva de Jair Bolsonaro. Apesar de uma passagem inexpressiva pela prefeitura de São Paulo, da traição aos eleitores da capital (ele havia jurado terminar o mandato) e de obscuros quatro meses e meio no comando do estado (seu único feito até agora foi uma reforma de gosto duvidoso no Palácio dos Bandeirantes), o governador paulista torna-se mais palatável aos donos do dinheiro a cada ação tresloucada de Bolsonaro.

Dois episódios recentes e quase simultâneos traduzem esse sentimento: enquanto o presidente da República, à espera de um prêmio irrelevante, perambulava sozinho por Dallas, no Texas, e batia na porta de George W. Bush sem ser convidado, Doria estrelava um evento da XP Investimentos, corretora ligada ao Banco Itaú, em Nova York, cidade que se recusou a abrigar a homenagem a Bolsonaro. Diante de uma robusta plateia de investidores nacionais e estrangeiros, defendeu as “reformas” e acabou aplaudido de pé.

Candidato único a presidente da legenda, Bruno Araújo é aliado do ex-prefeito. Há quem preveja uma debandada de nomes referenciais da legenda

Embora seja descrito como uma figura neutra, Araújo tende a empurrar o PSDB de vez para um programa neoliberal na economia e reacionário nos costumes, ao gosto do novo líder. O ex-deputado, ministro das Cidades durante o período em que Michel Temer ocupou o Palácio do Planalto, defende, entre outras pautas, a redução da maioridade penal e o porte de armas em áreas rurais. Apesar da inclinação, Araújo nega uma guinada radical nos princípios da legenda: “Não vamos inventar um novo partido. Mas vamos inovar, olhar para a frente, dizer o que tem que ser dito, mesmo que não tenhamos uma maioria na sociedade”.

Ninguém acredita. Muitos tucanos estão de malas prontas para deixar o partido e prenunciam o enterro do que restou dos ideais social-democratas. A debandada, diga-se, não começou agora. Os sucessivos fracassos eleitorais e o envolvimento de suas principais lideranças em escândalos de corrupção levaram nomes como a economista Elena Landau, madrinha das privatizações durante os governos FHC, Eduardo Graeff, assessor próximo do ex-presidente, e o ex-vice-prefeito paulistano Andrea Matarazzo a mudar de ares. Outros formuladores, entre eles Luiz Carlos Mendonça de Barros e Persio Arida, haviam se afastado há tempos.

No horizonte de Doria, o Palácio do Planalto

No último episódio de Game of Thrones, a coroa acabou na cabeça de Bran Stark, jovem paraplégico que passou as oito temporadas da série à margem das lutas sanguinárias pela supremacia nos Sete Reinos. Em certa medida, Doria é o Bran Stark do PSDB. Enquanto José Serra queria decapitar Aécio Neves, este sonhava em queimar o correligionário em óleo fervente, ambos conspiravam para lançar Geraldo Alckmin aos cães e os três não davam a mínima para Fernando Henrique Cardoso, o governador paulista ficou sentado à espera do desenlace. Ou quase. Nas eleições de 2018, Doria, o gestor antipolítica, resolveu protagonizar o jogo com uma típica rasteira de veteranos. Para garantir uma vitória nas urnas que estava ameaçada pelo avanço do pessebista Márcio França, o tucano não titubeou em trair seu mentor, Alckmin, e estimular o voto “Bolsodoria”. Ganhou a disputa no último minuto – e um inimigo para o resto da vida.

O estilo, prevê-se, será outro a partir de 31 de maio. Os próceres do partido tendem a ser eclipsados. “Quem lidera é quem tem a caneta”, resume um analista ligado à legenda. Um novo código de ética em discussão servirá para constranger os filiados envolvidos em corrupção, particularmente Aécio, que resiste à ideia de trocar de agremiação. Como uma das propostas prevê a expulsão de condenados em segunda instância, as normas também afetariam os ex-governadores Marconi Perillo, de Goiás, e Beto Richa, do Paraná, até bem pouco tempo cotados para liderar a renovação do tucanato. O mineiro Eduardo Azeredo, que cumpre pena em decorrência do “mensalão do PSDB”, antecipou-se à votação e anunciou sua desfiliação na segunda-feira 20.

Alckmin, FHC, Aécio e Serra: nada mais que uma foto na parede.

Diluir o “comitê” Serra-Aécio-Alckmin-FHC facilitaria o movimento seguinte, uma fusão com o DEM, antigo PFL, partido de Rodrigo Maia, presidente da Câmara e, no momento, virtual primeiro-ministro do Brasil. Talvez antes, Doria e seus aliados tentem mudar o nome da legenda, maneira de apagar qualquer vestígio das veleidades de centro-esquerda que nutriram a fundação do PSDB em 1988. O governador paulista chegou a sugerir uma pesquisa entre simpatizantes para medir a recepção à proposta. “Se não houver mais compromisso com a social-democracia, que o partido mude de nome e de símbolo. Tucano é quem tem compromisso de honra com as bases do partido. Os outros são meros filiados”, afirma Fernando Guimarães, líder da corrente Esquerda Pra Valer.

Guimarães é um dos tantos filiados dispostos a resistir ao projeto de Doria. Alas ditas moderadas vão tentar equilibrar a composição do comando nacional e impedir o domínio incontestável do neotucanismo. Quem também atrapalha os planos é Bruno Covas, prefeito de São Paulo e neto da maior referência histórica do partido, Mário Covas. De antigos aliados, o prefeito e o governador viraram concorrentes. O último não descarta aliar-se a Joice Hasselmann, a líder do governo Bolsonaro, na disputa pelo comando da capital paulista em 2020. Eventualmente Doria poderia apoiar Andrea Matarazzo, atualmente no PSD de Gilberto Kassab.

Bruno Covas é o herdeiro das tradições?

Bruno Covas almeja a reeleição e esforça-se para recuperar parte das raízes social-democratas plantadas por seu avô e outras lideranças. E faz questão de desfazer medidas equivocadas de Doria. Uma de suas iniciativas mais celebradas é a retomada da política de redução de danos no combate às drogas – Covas ressuscitou, inclusive, o pagamento de bolsas a usuários de crack no programa Recomeço, semelhante ao Braços Abertos do petista Fernando Haddad interrompido por seu ex-parceiro de chapa. Contra a liberdade total da iniciativa privada celebrada por Doria, o prefeito impôs limites ao uso de patinetes elétricos – medida inspirada em outras capitais do planeta. E iniciou um esforço para melhorar a zeladoria da cidade, largada às moscas nos últimos anos. Covas esforça-se, por fim, para fazer um contraponto ao governo Bolsonaro. Mais de uma vez fez questão de frisar não ter votado no ex-capitão.

Os planos de Doria incluem uma eventual mudança de nome do partido e a fusão com o DEM de Rodrigo Maia

O protagonismo de Doria afeta até o capital simbólico do PSDB. Embora os fatos – e a pobreza programática desde o fim dos governos FHC – desmintam, os tucanos construíram, com o beneplácito da mídia, a imagem de um partido de intelectuais. As reuniões de seus próceres em restaurantes badalados de São Paulo insuflaram a imaginação de uma parte da chamada classe média, que via na legenda a representação de seus valores mais caros.

Toda essa mitologia caiu por terra, no compasso da ruína intelectual, moral e econômica do partido e do País. O PSDB de Doria, caso a tendência se confirme na sexta-feira 31, vai se sentir mais confortável em um fast-food de um shopping em Miami. Talvez seja mais um efeito da “nova política”.

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