Política

O que falta para nos livrar de Bolsonaro e cia?

Metade da população esfomeada, mais de 4 mil mortos por dia, ceifados pela pandemia. O Brasil é um verdadeiro enigma

Fechada em copas, a esfinge não diz a que veio e por quê. Só pronunciou a palavra mamãe ao receber Greta Garbo (ou Marlene Dietrich)
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No seu papel, a esfinge de Gizé é perfeita: fechada em copas, não declina sua origem e suas mansões. Por puro engano poderia ser tomada como a guardiã das três famosíssimas pirâmides egípcias que surgem por perto. Está claro, no entanto, que ela não é guardiã de coisa alguma, a não ser de um insondável mistério. Consta que certa vez, Greta Garbo (ou não seria Marlene Dietrich?) tentou conversar com a esfinge e implorou: “Fale comigo, diga a que veio”. Enfim, a dona do enigma disse apenas “mamãe”.

Trata-se de um ponto de atração turística excepcional. Arrisco-me, porém, a dizer que o próprio Brasil é uma esfinge. Quem se abalar a decifrar o País tem de se render diante da impenetrabilidade de certas situações que discrepam de tudo quanto se conhece. Pergunta: qual é o lugar deste mundo onde a crise material e moral que aqui se estabelece sobreviveria à conjuntura para resolver pela via natural a questão incumbente? O governo responsável seria substituído sem criar problemas, sem provocar qualquer reação popular, sem pôr em risco a paz geral.

Qual é o país onde um único juizeco de província se atribui a tarefa de determinar o próprio destino da nação, de influenciá-lo fatalmente? Seria ele uma espécie de Rasputin ainda mais prepotente e malvado? No caso falta o contexto, falta a corte russa impregnada de sentimentos e visões teutônicas: ali o jogo do malandro hierático ganha facilmente a parada. Mas haveria no Brasil quem se habilitasse a um grande papel esclarecedor? Existe este gênio da raça ou não seria ele o próprio torquemadazinho de arrabalde, exemplar na representação da corrupção, da mentira, da tramoia vulgar, e tudo aquilo que ensombrece não somente a política, mas toda a vida nacional?

 

Vamos em frente. Qual é o país capaz de eleger uma figura doente para presidi-lo? Qual é o país onde a medievalidade dos tempos da casa-grande e da senzala se mantém intocada, enquanto o desequilíbrio social torna-se cada vez mais grave e profundo? Forçoso e melancólico é constatar que o povo brasileiro ainda não cresceu para a realidade da sua desgraça, mergulhado em uma impávida ignorância que, certamente, não instiga a capacidade de reagir à altura a tanta prepotência. Como se dá com a esfinge de Gizé, solitária no deserto egípcio, o País é incapaz de responder a estas e mais perguntas, formuladas na tentativa de entender que uma situação de tanto descalabro ainda tenha razão de ser.

Falta-nos a contemporaneidade do mundo, de sorte a determinar um atraso por ora intransponível. Entender o Brasil de Bolsonaro é um esforço tão vão quanto aquele de Greta Garbo, ou Marlene Dietrich que fosse. Somos, a nosso modo, e está longe de ser empolgante, um país fora do tempo presente, de difícil compreensão mesmo para os mais atilados observadores. Para entender o Brasil falta exatamente esta sintonia entre tempos discrepantes: um é o da nossa monstruosa crise, outro daqueles que, em transparente minoria, enxergam a vida e o mundo de forma diferente. Exígua minoria, estática diante de um país que, de ano em ano, precipita nas suas carências cada vez mais visíveis e clamorosas.

Do alto da janela observo a calçada fronteiriça, onde numerosos brasileiros e brasileiras perambulam com suas inevitáveis mochilas às costas. Carregam, mestamente, a marmita e o enxoval do dia. Inútil perguntar a eles se entendem o risco que correm. Não há resposta para tanto, enquanto o País já passou de 4 mil mortos por dia, ceifados pela pandemia. Em um país onde 100 milhões de cidadãos estão com fome.

A esfinge não passa de um símbolo. Nós podemos afirmar a presença de um país inteiro enigmático nas suas entranhas. Como de hábito, CartaCapital aposta na liderança de Lula, de personalidade renovada. Já não é mais aquele Lula empenhado em melhorar a vida dos mais pobres, mas também dos mais ricos, envolvido no jogo de uma no cravo e outra na caldeirinha. Lula, hoje, foi obrigado a entender onde estão seus verdadeiros inimigos, aqueles que tudo fizeram, e provavelmente ainda tentarão fazer, para impedir o Brasil de ser o país que merece ser.

Conhecemos o tamanho do coração de Lula, mas a sensação é de que, de certa forma, o ex-presidente amadureceu para uma visão mais precisa dos males do País, mais profunda, mais condizente com a realidade dos fatos. Portanto, muito mais combativa. É preciso entender as perguntas que a esfinge se recusa a responder. Ao respondê-las resolveremos o enigma.

Publicado na edição nº 1152 de CartaCapital, em 8 de abril de 2021.

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