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O poder da farda

As eleições de 2024 consolidam a presença de integrantes das forças de segurança na política

O poder da farda
O poder da farda
Trincheira. O general Silva e Luna venceu com folga em Foz do Iguaçu. Ex-Rota, o coronel Mello Araújo tem grandes chances de se eleger vice-prefeito em São Paulo – Imagem: Redes sociais e Alan Santos/PR
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Nas eleições de 2024, o País registrou um recorde de integrantes das forças de segurança eleitos para o Executivo ou para ocupar cadeiras nas Câmaras Municipais. Usando outras legendas como uma espécie de “barriga de aluguel”, o Partido Militar cresce sem fazer alarde. Poucos analistas deram atenção ao fenômeno, até o Instituto Sou da Paz revelar que 856 policiais e militares das Forças Armadas venceram a batalha das urnas em 6 de outubro, entre eles 759 vereadores, 52 prefeitos e 45 vice-prefeitos.

Desde o fim da ditadura, a turma busca formas de se infiltrar e reconquistar o poder político. O movimento ganhou força, porém, com a chegada do capitão Jair Bolsonaro e de seu vice, o general Hamilton Mourão, no Palácio do Planalto em 2018. Além de sua numerosa tropa de ministros egressos das Forças Armadas, o então presidente mais que dobrou a presença de militares da ativa ou da reserva em cargos civis da administração federal, chegando a 6.157 em meados de 2020, segundo um balanço do Tribunal de Contas da União. Mesmo após a desastrosa condução da pandemia de ­Covid-19, que resultou na morte de 700 mil brasileiros, o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, foi premiado pelos eleitores bolsonaristas com uma vaga na Câmara dos Deputados, após obter o segundo maior número de votos no estado do Rio de Janeiro.

Agora, o Partido Militar consolida sua presença na esfera municipal. Em Foz do Iguaçu, cidade paranaense com 285 mil habitantes, localizada na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, o general Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa de Michel Temer e diretor da Usina de Itaipu entre 2019 e 2021, por indicação de Bolsonaro, não teve dificuldade para se eleger prefeito, com 50,14% dos votos válidos. Em São Paulo, cidade mais rica e populosa do País, o coronel Mello Araújo, ex-comandante da Rota, a violenta tropa de elite da polícia paulista, tem grandes chances de se eleger vice-prefeito. Foi incluído na chapa de Ricardo Nunes (MDB) por exigência do ex-presidente, que já havia confiado ao policial a direção da Ceagesp, o maior entreposto de abastecimento da América do Sul, durante sua gestão. Em Manaus, o vereador mais votado nas eleições deste ano foi o Sargento Salazar, empresário e ex-integrante da Polícia Militar do Amazonas.

Ao todo, mais de 850 policiais e agentes das Forças Armadas triunfaram nas urnas, revela levantamento do Instituto Sou da Paz

Esses três candidatos são do PL de Bolsonaro, o partido que elegeu o maior número de integrantes das forças de segurança (19,63%), segundo o levantamento do Sou da Paz. Praticamente, todos os policiais e militares eleitos em 6 de outubro são filiados a legendas da direita ou extrema-direita. Depois do PL, figuram na liderança o Republicanos (11,22%), MDB (10,4%), PSD (9,46%),União Brasil (8,06%) e Podemos (5,02%).

Diretora-executiva do Sou da Paz, Carolina Ricardo explica que o instituto observa essas candidaturas há oito anos, e é possível identificar uma certa estabilidade desses perfis na política nos últimos anos, sobretudo no Legislativo Federal. Nas últimas duas eleições municipais, houve, porém, um salto de participação de policiais e militares, que ela atribui a dois fatores. Primeiro, pela existência de um “vazio de lideranças progressistas na área da segurança pública”, tema muito sensível para os eleitores. Além disso, candidatos com esse perfil que se apresentam como os “únicos legitimados a discutir o tema”, e acabam sequestrando a pauta.

“O efeito é muito ruim”, avalia a advogada e socióloga. “A pauta de segurança pública deveria ser debatida de forma ampla na sociedade e por todos os espectros políticos, mas, na prática, isso não acontece.” Outro problema é a falta de regulação ou de fiscalização das regras existentes. As corporações costumam estipular um certo período de afastamento das atividades para quem deseja entrar nas disputas políticas, mas raramente o isolamento é respeitado. Não existe, porém, uma lei que obrigue o cumprimento de uma quarentena, como existe em países como EUA, França e Inglaterra. O projeto do Novo Código Eleitoral (PLP 112/21) prevê um afastamento mínimo de quatro anos para que policiais e militares possam disputar cargos eletivos, mas são remotas as possibilidades de a proposta avançar com a ­atual configuração do Congresso Nacional.

Em muitos casos, acrescenta Carolina Ricardo, as candidaturas de agentes das forças de segurança levam a evidentes conflitos de interesse, caso dos “policiais influencers”, que exibem suas atividades profissionais nas redes sociais ou fazem comentários sobre segurança pública e política uniformizados, com fardamento. “Não é incomum ver policiais em serviço apoiando candidaturas ou a utilização de instalações das corporações nas campanhas. Isso mostra uma mistura muito nociva de política com segurança, além do uso da estrutura pública em benefício próprio.”

Oficial da reserva do Exército, Marcelo Pimentel observa que existe uma legislação muito clara para regular a participação política de integrantes das Forças Armadas, mas ela tem sido solenemente ignorada. Trata-se da Lei 6.880, de 1980, que dispõe sobre o Estatuto dos Militares. De acordo com o regulamento, os praças e oficiais devem abster-se, na inatividade, do uso das designações hierárquicas, de participar de atividades político-partidárias, de discutir ou provocar discussões pela imprensa a respeito de assuntos políticos ou militares, excetuando-se os de natureza exclusivamente técnica, quando devidamente autorizados, e do exercício de cargo ou função de natureza civil. “É importante falar sobre essa Lei, porque às vezes parece que ela está até um pouco esquecida”, diz. “Se a regra fosse respeitada, não haveria necessidade de quarentena. Um agente não pode usar a farda para se promover politicamente.”

Para Pimentel, com o fim do regime militar, em 1985, e a promulgação da Constituição de 1988, foi firmada uma espécie de pacto onde os agentes de segurança se afastaram da política, depois de mais de duas décadas no poder. Mas esse protagonismo político não desapareceu, ficou apenas “adormecido”. Mesmo antes de Bolsonaro chegar ao poder, ele identifica dois processos que se retroalimentam. “Há uma militarização da política, ao mesmo tempo que existe uma politização das forças militares”, observa. “Isso ganhou aderência na sociedade. Não à toa as escolas cívico-militares se proliferam pelo País. Mas a militarização do governo federal, convém lembrar, começou no governo de Michel Temer. E o excesso de operações de Garantia da Lei e da Ordem, na gestão de Dilma Rousseff, deu às Forças Armadas um protagonismo enorme.”

Fonte: TSE/Instituto Sou da Paz.

Já Francisco Teixeira, professor de Teoria Social e História Contemporânea da UFRJ, discorda que os militares tenham passado um tempo adormecidos, após o fim da ditadura. Ele trabalhou mais de 20 anos na Escola de Guerra Naval e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, além de ter atuado como assessor no Ministério da Defesa e no Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, e pôde observar de perto o comportamento dos militares. “O que eu vi depois do fim da ditadura, na verdade, foi uma atividade frenética dos militares, a começar pela própria Constituição, quando havia mais de 40 oficiais na Assembleia Constituinte.”

Teixeira destaca que as escolas de oficiais passaram a oferecer aos agentes, além da formação tradicional militar, especializações e cursos de MBA, em Administração de Empresas. “Eram cursos caríssimos, pagos pelo Estado brasileiro. A ideia era que um oficial da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica tivesse também habilidades para ser um administrador”, explica. Com isso, na ocasião do impeachment de Dilma, em 2014, havia muitos militares “absolutamente convencidos de que tinham capacidade de administrar qualquer coisa, porque eles tinham um MBA, e isso os habilitava inclusive a administrar o Brasil”, ironiza.

Segundo o levantamento do Sou da Paz, a cidade do Rio de Janeiro é a que teve a maior participação de integrantes das forças de segurança, 8% do total. O dado não chega a surpreender o cientista político João Feres Jr., coordenador do Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública da Uerj. “O Rio tem uma imagem de ser muito perigoso, inclusive para os próprios cariocas, e essa imagem é bastante reforçada pela cobertura jornalística”, explica. “Além disso, as milícias, integradas por ex-policiais, também têm forte apelo nas comunidades, são uma máquina eleitoral.” •

Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O poder da farda’

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