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O pesadelo de Tio Sam

O rápido reconhecimento da vitória de Lula pelos EUA é um gesto político calculado

O pesadelo de Tio Sam
O pesadelo de Tio Sam
Muy amigos. O democrata não disfarça a desconfiança em relação a Bolsonaro - Imagem: Alan Santos/PR
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Desde meados de 2021, o governo dos EUA tem comunicado que confia no sistema eleitoral brasileiro e não apoia qualquer tentativa de golpe. A Casa Branca e o Congresso norte-americano reafirmaram essa posição diversas vezes e pressionaram Jair Bolsonaro a não contestar o resultado das urnas. De forma consistente, logo após a Justiça Eleitoral confirmar a vitória de Lula, Washington prontamente parabenizou o presidente eleito, exemplo seguido por diversas outras potências. Essa sinalização foi fundamental para confirmar a ausência de apoio externo às pretensões golpistas do candidato derrotado e de seus seguidores.

O apoio dos EUA à continuidade democrática não era uma certeza. A forma como o país tem agido neste caso específico é bastante distinta de seu histórico na América Latina, onde o suporte a golpes de Estado no passado recente é amplamente corroborado pela historiografia. No caso do Brasil, como vastamente documentado, Washington financiou e apoiou o golpe de 1964, além de colaborar com a repressão. O que explica, então, a atual posição dos EUA? Destacamos duas razões: uma interna, relacionada às disputas entre democratas e a extrema-direita, e outra externa, relativa ao papel que o Brasil representa para os interesses globais estadunidenses.

Como é conhecido, há uma relação muito próxima entre os grupos políticos que sustentaram Bolsonaro e ­Donald Trump. Assessorado pela equipe de Trump desde sua campanha em 2018, o capitão é conhecido nos EUA como “Trump dos trópicos”. Ambos compartilham perspectivas ideológicas de extrema-direita e Bolsonaro incorporou muitas das posturas pessoais e de governo de Trump, além de se inspirar em suas táticas eleitorais e de desestabilização. A própria narrativa de contestar o sistema eleitoral e de bradar, sem evidências, a existência de fraudes é uma repetição do tom adotado pelo republicano após ser derrotado por Joe Biden.

Figuras ligadas ao trumpismo, como Steve Bannon, espalhavam desinformação sobre supostas fraudes no primeiro turno das eleições brasileiras, quando Lula ganhou por uma margem de 6 milhões de votos. Anteriormente, a falsa narrativa de fraude na eleição dos EUA foi difundida pelas redes sociais no Brasil e, coincidentemente, Eduardo Bolsonaro estava em Washington quando ocorreu a invasão do Capitólio.

Nesse contexto, mais que uma posição consensual ou bipartidária, o apoio à integridade das eleições brasileiras emana do Partido Democrata e de republicanos moderados. Essa posição relaciona-se com o trauma da invasão do Capitólio em 2021, dias antes da posse de Biden. Estimulada por Trump, foi a primeira vez que a democracia estadunidense foi colocada em perigo real. Apesar de não estar mais no poder, a extrema-direita continua forte nos EUA, ainda sob a liderança de Trump, que tentará a reeleição em 2024 e continua afirmando que o atual governo é ilegítimo.

Biden teme que o Brasil de 2022 sirva como um laboratório para os EUA de 2024

A extrema-direita busca se articular e se fortalecer de forma global e, hoje, Bolsonaro representa essa perspectiva ao Sul do hemisfério. Bannon ressalta que a articulação entre líderes de extrema-direita é importante para que possam compartilhar experiências de campanha, aumentando suas chances de vitória. A extrema-direita estadunidense monitora o que acontece no Brasil, tentando entender como as nossas instituições funcionam e reagem, para utilizar essas lições nas suas estratégias futuras. O Brasil de 2022 pode ser o laboratório para os EUA de 2024.

Nos aspectos mais tradicionais da política exterior, o terceiro governo Lula não atende de pronto a todas as demandas estadunidenses. Ao contrário, tendo como base os mandatos anteriores, é possível prever que a orientação geral será a busca de diversificação de parcerias, dispensando qualquer possibilidade de alinhamento automático com os EUA, como ocorreu no período Trump-Bolsonaro. Contudo, do ponto de vista político, Bolsonaro tampouco atende plenamente às demandas atuais da potência. Um importante exemplo foi a posição adotada no principal palco das disputas geopolíticas globais, a guerra na Ucrânia. O Brasil não apenas se opôs à adoção de sanções contra a Rússia, como Bolsonaro visitou Moscou dias antes do início da guerra. Lula também se manifestou de forma divergente ao Ocidente, criticando o presidente ucraniano e a postura da Europa e dos EUA, os quais, em sua visão, poderiam ter evitado a invasão.

Ainda assim, o líder petista tem algumas vantagens em relação a Bolsonaro. O novo presidente tem a possibilidade de construir uma política externa mais previsível e voltada à formação de consensos, diferentemente de Bolsonaro. A atual diplomacia tornou-se errática, com relativa marginalização do Itamaraty e menor profissionalismo. A viabilidade do Brasil como construtor de consensos ou como uma liderança estabilizadora na América do Sul também caiu significativamente, abrindo ainda mais espaços para o aumento da influência chinesa, tão temida pelos EUA. A abertura de espaço para a China não ocorre pelas posições sustentadas por Bolsonaro, mas pela fraqueza internacional do Brasil durante a sua gestão.

A posição brasileira também é de grande relevância para a promoção de acordos na área climática, um dos temas que mais geram atritos entre Bolsonaro e Biden. Isso não significa que as relações entre Brasil e EUA serão fáceis no governo Lula. Ao contrário, devemos esperar algumas tensões. Contudo, a outra opção, a reeleição de Bolsonaro, tampouco era muito atrativa para Washington em termos de seus interesses geopolíticos no continente e além dele. Era ainda menos atrativa quando considerado que o presidente derrotado faz parte de um movimento global de extrema-direita, que detém força nos EUA e faz oposição à administração Biden. •


*Lívia Peres Milani é pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para estudos sobre EUA e do Grupo de Estudos de Defesa e Internacional. Contato: livialpm@gmail.com. Luciana Wietchikoski é professora no curso de Relações Internacionais da Unisinos e pesquisadora de pós-doutorado em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC, do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea da UFSC e do Grupo de Estudos em Segurança e Política Internacional da UFRGS. Contato: wietch.luciana@yahoo.com.br.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1234 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O pesadelo de Tio Sam “

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