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O ovo da serpente

Pesquisadores apontam o embrião da Operação Condor nos rastros deixados por uma entidade brasileira vinculada à Liga Anticomunista Mundial

O ovo da serpente
O ovo da serpente
Onipresente. No comando da WACL, Barbieri teve encontros com os ditadores Pinochet, do Chile, e Stroessner, do Paraguai. Participou ainda de eventos com Armando Falcão, ministro de Geisel. Em 2019, recepcionou o cônsul brasileiro em Miami – Imagem: Arquivo Nacional e Redes sociais
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Em março de 2020, Carlo ­Barbieri Filho emergiu lateralmente no noticiário nativo para comentar a visita de Jair Bolsonaro nos EUA. Ele havia participado de um encontro do então presidente com empresários em Miami e também de um convescote com a comunidade brasileira na Flórida. CEO do Oxford Group, consultoria que presta auxílio a empreendedores latinos interessados em explorar o mercado norte-americano, vez por outra ele é convidado por veí­culos de comunicação para analisar as relações comerciais entre os dois países. Mantém, ainda, contatos com o corpo diplomático. No ano anterior, chegou a abrir as portas de sua casa em Boca Raton, também na Flórida, para o cônsul João Mendes Pereira, hoje embaixador na Bélgica e Luxemburgo, em um jantar de aproximação com o empresariado local.

Com experiência no mercado financeiro, sua família era dona do Banco Aplik, que quebrou e acabou vendido para ­Theophilo Azeredo Santos em 1974. ­Hoje, o ex-banqueiro apresenta-se, no ­site do Oxford Group, como consultor, analista político, jornalista, palestrante e ativista cívico. Poucos sabem, porém, que esse ativismo começou ainda nos anos 1970, quando o economista assumiu a presidência da obscura Sociedade de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais, a Sepes, braço brasileiro da Liga Anticomunista Mundial (WACL, na sigla em Inglês).

À frente da Sepes, Carlo Barbieri Filho colaborou com os regimes ditatoriais da América do Sul

Com escritório no Shopping Iguatemi, em São Paulo, a entidade era uma espécie de think tank reacionário com umbilicais relações com o regime militar. Entre os diretores e conselheiros da Sepes figuravam Alfredo Buzaid, ministro da Justiça do ditador Emílio Garrastazu ­Médici, e o promotor de Justiça Ítalo Bustamente Paolucci, testemunha de defesa do delegado Sérgio Paranhos Fleury, que comandava o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) paulista, uma das mais temidas masmorras da ditadura, e foi responsável pela emboscada que matou o guerrilheiro Carlos Marighella. Havia, ainda, figurões do empresariado e da sociedade civil, a exemplo do então presidente da Fiesp, Theobaldo De Nigris, de Sálvio de Almeida Prado, chefe da Sociedade Rural Brasileira de 1972 a 1978, o arcebispo Geraldo Proença Sigaud, fundador da Sociedade Brasileira de Defesa da Família, Tradição e Propriedade, e o juiz integralista e antissemita Ítalo Galli.

À frente da Sepes, o jovem Barbieri, então com menos de 30 anos, colaborou com os regimes ditatoriais da América do Sul. Em 1972, a organização participou de uma conferência da Liga Anticomunista Mundial no México, ocasião na qual foi criada a representação regional da entidade, a Confederação Anticomunista Latino-Americana, a CAL. A partir daí o intercâmbio entre representantes da extrema-direita mundial e latino-americana se fortaleceu. Financiada pelos regimes de Taiwan e da Coreia do Sul, a WACL tinha interesse em expandir sua atuação mundo afora e intensificou sua presença nas Américas com a contribuição de Barbieri.

Vigilância. O então presidente da Fiesp, Theobaldo De Nigris, fez parte da Sepes. Nos anos 1980, a entidade produziu relatórios sobre movimentos grevistas – Imagem: Arquivo Nacional e Redes sociai

Passados quase 60 anos do golpe de 1964, as atividades da Sepes foram dissecadas na tese de doutorado do historiador Rodolfo Costa Machado pela PUC de São Paulo. O pesquisador está convicto de que essa organização, juntamente com a Confederação Anticomunista Latino-Americana, teve papel relevante na origem da Operação Condor, uma aliança das ditaduras do Cone Sul para intensificar a caçada aos seus opositores, que por vezes cruzavam as fronteiras entre os países para escapar dos órgãos de repressão locais, cooperação que perdurou de 1975 a 1983.

A descoberta deu-se ao acaso, quando Machado pesquisava a atuação de Buzaid para sua dissertação de mestrado. Ele se deparou com um documento que apresentava o ministro da Justiça de Médici como conselheiro da desconhecida Sepes, e resolveu investigar. Ao longo de seis anos vasculhou a papelada do Arquivo Nacional, da Comissão Nacional da Verdade, do Dops paulista e dos Arquivos do Terror do Paraguai em busca de pistas sobre a atuação da entidade. O esforço valeu a pena.

Em reunião sigilosa realizada em Brasília, militares uruguaios propuseram aos colegas brasileiros um “intercâmbio de subversivos presos”

“A Sepes estava vinculada à CAL, que se apresentava com duas faces: uma pública, por meio de eventos abertos e divulgados nos jornais, e outra secreta, restrita aos militares do alto escalão das ditaduras sul-americanas. Ali eram planejadas atividades de intercâmbio e de troca de informações entre representantes da ultradireita do continente. Em um dos encontros promovidos pela organização, plantou-se a semente da Operação Condor”, sustenta o pesquisador. Trata-se do “III Congresso da CAL–Secreta”, como consta no registro feito pelo Serviço Nacional de Informações, o órgão de espionagem do regime militar. Durante a reunião sigilosa, realizada nas dependências da Escola Nacional de Informações, em Brasília, com apoio logístico e financiamento do Exército, militares do Uruguai propuseram o “intercâmbio de subversivos presos” aos colegas brasileiros, que se mostraram dispostos a colaborar, mas enfatizaram que “o assunto deveria ser tratado de maneira informal e direta pelos interessados”.

Essa proposta antecede em um ano o lançamento da Operação Condor, inaugurada no fim de 1975. Machado explica que a aliança das ditaduras do Cone Sul se baseava, sobretudo, na troca de informações que não deveriam passar pelos canais oficiais nem pela burocracia estatal, sobretudo quando se tratava de ações clandestinas visando a captura ou eliminação de dissidentes políticos. Importante ressaltar que Barbieri não participou desse encontro da CAL–Secreta, restrito a oficiais das Forças Armadas. Quem representou o Brasil no Congresso foi o general Leone da Silveira Lee, que também participava de encontros públicos da Liga Anticomunista Mundial.

Em 1975, a Sepes organizou e sediou o congresso da WACL no Brasil, ocasião na qual Barbieri se tornou o presidente da entidade. À frente da Liga Anticomunista, ele passou a ser recebido até por chefes de Estado das ditaduras vizinhas. Em um encontro com o ditador do Chile, Augusto Pinochet, o jovem ativista revelou que tinha à sua disposição uma cadeia internacional de informações em 75 países e contato direto com 40 governos de direita pelo mundo afora, de forma que poderia contribuir com o regime militar chileno no combate à “propaganda” difundida por “subversivos e marxistas” contra o país, conforme consta em publicações da própria WACL. Na época, destacou ainda ter excelentes contatos pessoais com os governos da Arábia Saudita, Irã e Jordânia. De fato, naquele mesmo ano, ele teve uma audiência com o rei saudita, Khalid bin Abdulaziz Al Saud, e com o príncipe-herdeiro, Fahd bin Abdul Aziz, para pedir recursos para a organização.

Aliados. O Serviço Nacional de Informações, órgão de espionagem da ditadura, acompanhava de perto as deliberações da CAL–Secreta

No Paraguai, a atuação de Barbieri foi ainda mais expressiva. Ele foi recebido mais de uma vez pelo ditador ­Alfredo Stroessner, que permaneceu no poder de 1954 a 1989, e tinha uma relação muito próxima com Antonio Campos Alum, diretor da polícia política paraguaia de 1954 a 1962. Esse braço militar, popularmente chamado de “La Tecnica” (o nome oficial do órgão era Dirección Nacional de Asuntos Técnicos), fazia o trabalho de inteligência para a repressão. Vale ressaltar que a relação entre Alum e Barbieri não foi só ideológica. Eles também foram sócios em uma empresa, a Financiera Urudey.

Em 1976, Barbieri deixou o comando da WACL durante o congresso da entidade na Coreia do Sul, mas seguiu à frente da Sepes, o braço brasileiro da Liga Anticomunista. No meio militar, o empresário estava alinhado aos oficiais da linha-dura, aqueles que criticavam Ernesto Geisel pela abertura gradual do regime. Em uma conferência, Barbieri chegou a chamar o general de “traidor do processo revolucionário de 1964”. “Eles defendiam uma colaboração anticomunista internacional. Uma espécie de internacionalismo anticomunista. É curioso, porque é um tipo de ‘revolução permanente’, defendida por setores da esquerda, só que às avessas”, explica Machado.

Segundo o pesquisador, um dos objetivos da tese é desmitificar a ideia de que essa ultradireita é sempre caricata. “São personagens muito complexos, que por muitos anos foram tratados como lunáticos, mas alguns têm profundidade e uma linha ideológica muito bem definida.” Ele destaca que, num livro de memórias, o general linha-dura Sylvio Frota, ministro do Exército que tramou contra Geisel, dedicou um parágrafo inteiro a Barbieri, a quem chama de “amigo”, com o qual comunga dos mesmos ideais. Para dar continuidade à pesquisa, Machado agora trabalha em parceria com o professor André Kaysel Velasco e Cruz, do departamento de Ciência Política da Unicamp, com quem elabora um projeto de pós-doutorado.

Barbieri tocou a vida e mudou-se para os EUA, mas “é difícil esconder o passado”, observa o pesquisador que resgatou a história

Cruz faz a análise dos discursos dos membros dessas organizações e destaca que não se tratava de um movimento em defesa das liberdades e da democracia, como mais tarde Barbieri tenta demonstrar. “O Sr. Barbieri depois tentou assumir um discurso liberal, mas não foi o que encontrei em centenas de registros. Para se ter uma ideia, ele refere-se ao aniversário do golpe do Chile, em 11 de setembro de 1973, como ‘a segunda independência do Chile’. Isso é muito grave e está documentado”, observa. “Ele tinha um discurso que mesclava nacionalismo organicista com fortes ressonâncias do fascismo histórico, embora não necessariamente fascista, mas com um parentesco forte nessa ideia da nação como um todo orgânico”, relata.

De acordo com as pesquisas de Cruz, tanto a Sepes quanto a CAL agiram de forma a monitorar e oferecer informações para a WACL, cujo objetivo era combater e reprimir qualquer movimento contrário às ditaduras, nas mais diferentes frentes. “Perseguir os representantes da Teologia da Libertação foi uma obsessão da CAL, mas não só. Também entraram na mira os movimentos sindicais, estudantis e a sociedade civil organizada.”

Nos anos 1980, a Liga Anticomunista Mundial passou por um processo de ­depuração. A WACL afastou a ala mexicana, repleta de extremistas e antissemitas, expulsou os simpatizantes do nazismo e assumiu uma nova face, teoricamente democrática. Mudou até de nome, passando a se chamar Liga Mundial Pela Liberdade e Democracia. Ao mesmo tempo, a Sepes também passou por uma reformulação. Em 1983, durante um congresso realizado em Campos do Jordão, no interior de São Paulo, ela criou a Federação de Entidades Democráticas da América Latina (Fedal), que viria a suceder a CAL, e manteve-se como um órgão regional da Liga. Com o fim da Guerra Fria, os remanescentes do grupo se dispersaram.

Estudo. Machado e Cruz pretendem dar continuidade à investigação no pós-doutorado – Imagem: Antonio Scarpinetti/Unicamp e Acervo pessoal

A Sepes teve uma curta sobrevida, preparando relatórios sobre os movimentos grevistas que eclodiram no País na década de 1980. “Esses boletins eram distribuídos para o empresariado. É difícil acreditar que a Sepes faria isso de graça, deviam receber algum recurso para realizar esse trabalho de monitoramento dos sindicalistas”, especula Machado.

Há muitos anos, Barbieri busca desvencilhar-se desse passado e muito raramente comenta seu ativismo pró-ditadura. Na última vez que falou sobre o assunto, em 2009, para a Folha de S.Paulo, limitou-se a confirmar que empresários paulistas financiavam a Sepes. “Sim, claro”, respondeu de forma lacônica ao jornalista ­Rubens Valente, sem acrescentar detalhes sobre a atuação da entidade. ­CartaCapital fez contato com Barbieri pelos canais de sua empresa nos EUA, mas até a conclusão desta reportagem não obteve retorno.

“Após os anos 1980, não temos mais registros da atuação da Sepes. Barbieri foi tocar a vida dele. Mudou-se para os EUA e tornou-se um empresário de sucesso, mas é difícil esconder um passado como esse”, comenta Machado. No mais recente livro de Barbieri, A Nova Estrutura do Poder Mundial, publicação independente lançada em 2022, quem assina os prolegômenos é o general Lee, seu antigo companheiro da CAL. “Por mais que tenham passado os anos, as relações ­pessoais criadas durante esse grande projeto de cooperação não se perdem.” •

Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O ovo da serpente’

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