Política

O ódio político hoje

O ódio quer simplificar o mundo à força, para que ele caiba nos seus dois ou três esquemas da realidade e clichês sobre a vida

O ódio é estupido. O ódio é doidão. O ódio é excitadamente “feliz”. O ódio é fascista. O ódio pode votar em Jair Bolsonaro.
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Um dos fenômenos políticos e humanos importantes dessa eleição é a emergência final, após todo um processo a que poucos prestaram a atenção que se deu ao longo de toda crise dos últimos 3 anos, de um novo e importante ator político, um novo sujeito político, uma nova entidade produtiva de poder na vida brasileira.

Em conjunto com forças já conhecidas, como os interesses de setores e classes, posições ideológicas explícitas ou disfarçadas de mídia, o jogo aberto ou oculto do Mercado ou das Igrejas, as ações de propaganda de partidos, esta eleição consagrou espetacularmente a entrada de um novo sujeito na política nacional, um novo ator objetivo e concreto, complexo, embora simples como veremos, bastante eficaz nos seus efeitos de produção de mentalidades no mundo da vida e de problemas na vida institucional política. Esse sujeito, como todos sabemos bem e lidamos com ele hoje, positiva ou negativamente, é de fato a força produtiva simbólica muito particular de um afeto. Um afeto humano que se tornou uma política de massas.

Esse novo sujeito, hoje já bem definido e configurado, é o ódio na política, ou simplesmente o ódio. Embora muitas pessoas pareçam pensar, e acreditem estar pensando politicamente – na última semana tanto Fernando Haddad, quanto Fernando Henrique Cardoso, disseram que o que elas fazem “não é bem pensamento”… – elas estão de fato pensando com o ódio, para não dizermos, junto com o universo democrático e científico que denuncia o Brasil em um bombardeio mundial de críticas, que estas pessoas estão sendo pensadas pelo ódio, que de fato faz tudo por elas, em seu modo de ser cidadãos.

De fato, eu sou um dos que vem estudando e falando desse novo ator, – como também a professora Esther Solano da UFABC, entre outros – desde 2015, quando ele ganhou as ruas de um modo organizado, e quando se tornou possível falar assim dele, em uma proporção de cerca de 15% de intervencionistas militaristas, no meio das mobilizações populares à direita, anti- Dilma. Aqueles paranoicos profissionais da internet eram uma espécie de núcleo duro animado e energizado da produção da linguagem do ódio, tão importante em toda nossa história recente.

Então escrevi o ensaio de avaliação da crise de governo, Dilma Roussef e o ódio político, isolando a força dessa política do afeto, que teve imensa vida e expansão no país, em um processo que seguiu até hoje e que acompanhei no livro mais recente Michel Temer e o fascismo comum. Quem tiver interesse mais detalhado e aprofundado no trabalho de ativação do ódio como instrumento, e como sujeito, da política brasileira em conformidade com o desenvolvimento das novas forças produtivas, novas tecnologias, de comunicação de massas, que trazem o arcaísmo do ódio para o momento avançado do capitalismo contemporâneo entre nós, pode dar uma olhada nestes livros.

Agora, porém, diante do choque de ódio real que foi o processo desta eleição grotesca, no limite absoluto da legalidade e da violência, podemos observar melhor as formas e as ações desse sujeito, que faz sentir e faz pensar as pessoas de determinados modos.

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O que aprendemos sobre o ódio como sujeito político nas eleições de 2018 é que ele é uma paixão. Uma paixão triste, dizia Espinosa, mas uma paixão super excitada e bastante excitante. O ódio é intensamente apaixonado pelos termos e pelas imagens de mundo que ele cria, aos quais se apega de modo tenaz. Ele é o gozo de um excedente de sentido, subjetivo, que se encontra apenas nele mesmo, dispensando tudo ao redor.

Cegueira e fanatismo nos matam, disse o poeta Mano Brown sobre essas coisas. O ódio põe seus sujeitos prontos para a ação imediata, mesmo que seja a ação de produzir máquinas industriais de mentira, a favor do ódio. Ou de espancar um transexual na rua. Tudo vale para o ódio, ele tem sua dimensão polimórfica, ligada ao seu desejo autoritário de unidade.

O ódio cria um imenso campo de inimizade, cindindo o mundo em dois. De um lado ele se situa como gente de bem. De outro ele põe tudo aquilo e qualquer coisa que odeia, e que inventa para odiar: o comunista inexistente, o petista, o esquerdista, os gays, os jovens negros e suas cotas, as mulheres feministas, os professores universitários, os quilombolas e os índios, a mídia independente, os artistas vagabundos que mamam no Estado impoluto e violento dos odiadores, os artistas pedófilos e qualquer coisa mais que a máquina interessada do ódio deseje lá. O ódio liga as pessoas, o ódio agrega multidões.

O ódio reduz imensamente a complexidade das coisas, das ideias e da linguagem, e por isso junta facilmente diferentes. O ódio é excitado e é simples. O ódio quer simplificar o mundo à força, para que ele caiba nos seus dois ou três esquemas da realidade e clichês sobre a vida. Por ser assim o ódio alucina a sua realidade mítica.

O ódio ama o mito. O ódio repete ao infinito palavras de ordem fixadas, sem história e contra a história e não pensa mais do que isso de nenhum modo. O ódio é tão simplista, mentiroso, alucinado e irresponsável, que cria mentiras evidentes e degradantes, que só podem ser aceitas por quem está dominado pelo ódio, ou pelo irmão automático no desamparo que prega, o medo.

Assim o ódio acredita, ao mesmo tempo que sabe que é mentira, que Fernando Haddad distribuiu mamadeiras eróticas para bebês. O ódio é farsesco. O ódio é grotesco. O ódio é perverso, e adora chafurdar em falsificações obscenas. O ódio despreza mundos reais que não quer conhecer. O ódio despreza as ciências humanas. Despreza mundos e mundos de problemas e de pensamentos, que ele desconsidera na raiz. O ódio acha mais importante um inexistente kit gay do que a propagação efetiva de uma cultura da violência, da tortura e do assassinato.

O ódio é cego, nunca vê os próprios crimes que comete em escala social. O ódio não se importa com o destino da democracia. O ódio goza com imagens falsas e absurdas, que servem para paralisar com choque e acinte e negar a existência dos adversários políticos. A sua excitação é a do ganho imaginário e qualquer, feito de qualquer modo, com mentiras industriais, como violência direta ou até mesmo com a supressão do adversário de ideias e política. O ódio mata mestre Moa do Katende, mas o líder da propagação do ódio nada tem a ver com isso. O ódio vive intensamente de uma “supremacia qualquer”, como dizia Machado de Assis, ou de “levar uma vantagem em tudo”, como dizia a lei de Gerson para vender cigarro forte e doentio. O ódio goza quando despreza tudo aquilo que não entende, e nem quer entender. Nega tudo que exija dele trabalho, mediação ou pensamento. O ódio é esteticamente grosseiro.

O inimigo símbolo máximo do ódio é Chico Buarque de Holanda. O ódio é o avesso de Chico Buarque, ou de seu pai, Sérgio Buarque e suas raízes do Brasil. O ódio nega todo um modo de ser na democracia, onde há argumentação, ciência e conhecimento histórico. O ódio nega tudo no mundo que não seja reduzido a ser idêntico a ele e tudo que formule realidade de outro modo que ele.

O ódio nega forças da realidade e do pensamento, mesmo que essas forças sejam a The Economist, o Guardian, o Le Monde, o Libèration, o New York Times, o Parlamento Alemão, pesquisadores e sociólogos de Harvard, de Yale, de Cambridge, da Sorbone e mais a opinião responsável de todo mundo sobre o destino e o risco do Brasil de hoje. O ódio ri sozinho, com sua turba excitada, contra todas estas vozes, que considera apenas inimigos desprezíveis. Mas eles não são. Por isso o ódio é burro, e está fadado ao fracasso.

O ódio é condescendente com ilegalidades para a realização do seu desejo de ódio. O ódio não se preocupa com a morte de inimigos acontecendo nas ruas. O ódio aplaude candidatos a ditador. O ódio se recusa a debater suas ideias, e fica feliz quando ele não fala, mas ameaça. O ódio político precisa do poder do capital local de modo silencioso, mas constante, para se sustentar com ódio. O ódio não tem culpa de nada, nunca. O ódio não pensa no futuro, só vive no presente imediato. Do último fascista miliciano do nada nas ruas, ao mais voraz agente do capital atacando o Estado, a riqueza pública e as leis de proteção social, todos querem ganhar já com o ódio, e de qualquer modo.

O ódio distorce a história do seu adversário e a do seu líder violento ao seu bel prazer. Não precisando de confirmação no outro o ódio vive a realidade que deseja, por isso é onipotente e por isso será impotente. O ódio diz que tudo o que o líder odioso diz não é verdade, mas vota nele mesmo sendo uma mentira, porque é verdade. O ódio precisa corromper eleições, e da conivência odiosa de poderes para vencer. O ódio diz que pode fazer qualquer coisa, porque seu inimigo é sempre pior do que tudo que ele porta em si. Ele pode destruir tudo e qualquer coisa, tudo que é solido pode sumir no ar do ódio, porque seu inimigo é um destrutor de tudo, mesmo que ele seja um social democrata sério, cosmopolita e informado. O ódio transforma a política em guerra, e o cidadão em assassino, simbólico ou real.

O ódio é estupido. O ódio é doidão. O ódio é excitadamente “feliz”. O ódio é fascista. O ódio pode votar em Jair Bolsonaro.

* Tales Ab’Saber é psicanalista. Doutor em Psicologia Clínica/psicanálise pelo Instituto de Psicologia da USP e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapienti

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