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O ocaso dos coronéis

Pesquisadores revelam como o Nordeste rompeu com a hegemonia oligárquica e se tornou um bastião lulista

O ocaso dos coronéis
O ocaso dos coronéis
Pisando em ovos. As oligarquias nordestinas podem associar-se ao bolsonarismo em Brasília, mas sabem que localmente a maioria é progressista – Imagem: Redes Sociais/PT
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A imagem de um Nordeste retrógrado e atrelado ao clientelismo, descrita por Victor Nunes Leal na clássica obra Coronelismo, Enxada e Voto (1948), pertence ao passado, ainda que setores da mídia insistam em manter esse estereótipo. É o que mostra o recém-lançado livro Voto e Política no Nordeste: Mudanças Regionais em Um Contexto de Transformações Nacionais (Eduepb), organizado pelos cientistas políticos Cláudio André de Souza, Marcos Paulo Campos e Vítor Sandes.

A publicação é o primeiro projeto do Observatório da Política do Nordeste, e conta com textos produzidos exclusivamente por autores nordestinos, vinculados à oito universidades da região. O livro mostra a transformação da política local nos últimos 25 anos, marcados pela ascensão do PT à Presidência e pela predominância de governadores progressistas – processo que vem diluindo a histórica hegemonia oligárquica.

“Em 1982, todos os governadores do Nordeste pertenciam ao PDS, partido sucessor da Arena, que dava sustentação à ditadura. Nos anos 1990, o PFL dominava a cena política regional”, observa Campos. Em 1989, na primeira eleição direta pós-ditadura, oito dos nove estados nordestinos votaram majoritariamente em Fernando Collor, representante da elite alagoana. Esse quadro se manteve até o fim da década, durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, que reforçou alianças com grupos conservadores ao escolher como vice o pernambucano Marco Maciel, ligado às oligarquias locais. A virada começa em 2002, com a eleição de Lula. Desde então, todos os candidatos petistas à Presidência venceram no Nordeste, consolidando a região como bastião da esquerda. Nos estados, legendas como PT e PSB passaram a ocupar a maioria dos governos, substituindo o domínio oligárquico que prevaleceu por décadas.

No livro, os autores procuram revelar uma nova face da política nordestina, marcada pela força eleitoral de Lula e pelo impacto de políticas públicas como o Bolsa Família sobre a população e o comportamento do eleitorado. Destacam também o surgimento de novas lideranças com projeção nacional, como Wellington Dias, primeiro governador petista no Nordeste, eleito no Piauí em 2002 – mesmo ano em que Lula chegou à Presidência. Segundo os organizadores, essa mudança resulta de transformações sociais, econômicas e políticas que, ao longo dos anos, contribuíram para a redução das desigualdades na região, impulsionadas por investimentos públicos que promoveram crescimento e queda da pobreza em patamares inéditos. “As políticas sociais atendem uma parcela da população muito dependente desses recursos, mas há também a forma como o PT se estruturou nos estados, criando uma máquina política resiliente”, observa Vítor Sandes. Antes disso, políticas públicas eram marcadamente localistas, atreladas a prefeitos que as usavam como moe­da de troca – dinâmica bem descrita por Nunes Leal no modelo coronelista.

VOTO E POLÍTICA NO NORDESTE. Cláudio André de Souza, Marcos Paulo Campos e Vítor Sandes (org.). Eduepb (324 págs., download gratuito)

“Desde o primeiro governo Lula, os investimentos federais aumentaram significativamente na região. Os prefeitos passaram a ter menos recursos à disposição, o que enfraqueceu seu poder em nível local. Isso fortaleceu os grupos ligados ao PT, que passaram a ter uma marca, um selo, e diminuíram a influência dos tradicionais atores políticos”, afirma Sandes. Para isso, destaca ele, o partido também precisou reinventar-se e construir alianças com setores oligárquicos, “entendendo que a política real se dá por meio de pactos com elites tradicionais e locais”. Cláudio André de Souza, por sua vez, recupera o conceito de “lulismo”, formulado pelo cientista político André Singer, segundo o qual houve um realinhamento eleitoral impulsionado por políticas públicas que atenderam as camadas mais pobres sem confronto sistemático com a ordem capitalista ou disputa de classes.

“O grande desafio do PT foi reproduzir a liderança de Lula numa perspectiva estratégica, fazendo do Nordeste sua principal base eleitoral. Isso não estava dado em 2002”, afirma Souza. “Na Bahia, por exemplo, a ascensão de Lula como grande liderança nacional contribuiu para a derrota do grupo liderado por Antônio Carlos Magalhães, uma oligarquia forte, associada a um projeto autocrático.” Na avaliação do pesquisador, essa virada representou não apenas o fim da era ACM, mas também o colapso de um modelo autoritário vigente no estado. “Trata-se de uma reconfiguração – ou transfiguração – das oligarquias dentro do novo cenário político.” Ainda assim, o avanço de partidos progressistas no Executivo não eliminou o peso dos grupos tradicionais. Representantes das oligarquias seguiram como maioria nas Assembleias Legislativas da região e no Congresso Nacional.

“Esses grupos tradicionais, herdeiros do PDS e hoje vinculados a siglas do chamado Centrão, ainda têm força no Nordeste e sabem jogar o jogo”, observa Sandes.­ “Em Brasília, as oligarquias locais podem alinhar-se mais abertamente ao bolsonarismo, mas, aqui, a linguagem é outra: a hegemonia é progressista.” Segundo ele, não se trata mais de um poder oligárquico centrado no controle de grandes recursos. “Essas famílias continuam com representação política, mas perderam o comando do Executivo e passaram a se consorciar com quem está no poder. Saíram da sala das decisões, por assim dizer. A caneta mudou de mãos.” Campos complementa: “Esses grupos buscaram zonas de sobrevivência e o Legislativo oferece esse espaço, com bases eleitorais nichadas”. Ambos avaliam que, mesmo com esse reposicionamento e o triunfo da direita nas eleições municipais do ano passado, o cenário para 2026 segue favorável ao PT e aos partidos progressistas, que devem manter a dianteira no Nordeste. •

Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O ocaso dos coronéis’

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