Política

O Messias e o Espírito Santo

É possível ser contra o PT, o PSDB, sem ser a favor de matar quem pensa diferente. Aqueles que têm autoridade, não precisam de autoritarismo

Alguns não se atentam para o fato de que o Espírito Santo desagregou-se, pois a humanidade se foi
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Nós, seres humanos, somos tomados frequentemente por angústias. Elas são sentimentos de mal estar que podem estar relacionados a conflitos internos nossos, desejos e vontades que temos e com as quais não queremos entrar em contato; ou podem estar mais relacionados a dificuldades externas: a sensação, por exemplo, de que nossa vida não tem muito sentido, de que vivemos pra trabalhar, de que a única coisa que nos alegra é a cerveja… Ou a cobrança sobre nós mesmos para que ganhemos dinheiro, a todo tempo, que sejamos exemplo de sucesso, mesmo quando a ideia de sucesso não corresponde ao que desejamos; Ou a pressão para que o mês acabe para que possamos passar o mês.

Esta vida parece sem sentido mesmo.

Quando sentimos essas angústias, geralmente recorremos a algum objeto ou alguém que nos sirva de válvula de escape. Algo que encarne a figura de todo o mal sobre o qual podemos despejar o peso de nossa angústia.

No passado recente brasileiro, as angústias que tocavam nossa alma, no mais íntimo, envolviam nosso papel no mundo, a forma como passaríamos pela vida. Brás Cubas, de Machado de Assis, bem ilustrava este brasileiro que, de 1920 a 1990, vivia aflito para ser alguém que deixaria alguma grande contribuição em sua passagem pela terra.

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As saídas para essas angústias puderam contar, a partir de 1988, com possibilidades maiores de participação na política e na vida social. As pessoas tinham seus medos, seus fantasmas e iam para a associação de moradores encontrar soluções para problemas que se descobriam comuns, iam para organizações sindicais, tinham a perspectiva e o orgulho de ser funcionário público e a referência em escolas públicas, por exemplo.

Através de tudo isso, alguns sentiam que a vida ganhava maior sentido: viviam, permitindo-se questionar as coisas, criando, juntos, formas novas de enfrentar os problemas, permitindo-se sonhar e ir longe.

Na música, na literatura, no teatro, tínhamos diversos exemplos: Barão Vermelho, Ultraje a Rigor, Titãs, Legião Urbana, Engenheiros, … Quem não se lembra de livros infantis que marcaram a geração de 80? “Longe é um lugar que não existe”, de Richard Bach, em que todos são como pássaros e nada parece impossível.

Ou óperas para crianças como Os Saltimbancos, em que o mal era compreendido, desde pequeno, como relacionado à exploração de um cão servil ao patrão, de uma galinha que viraria canja por estar velha, de um jumento, vitima de abusos, de preconceitos e de excesso de trabalho. Ainda na década de 90, preservava-se a consciência de que era necessário se organizar pra desorganizar. Nação Zumbi era um prenúncio para o que se anunciava para o Brasil.

A solução para estes males não deixava de passar pela religião também. Arca de Noé era repertório comum nas vitrolas, com canções de São Francisco, o Santo Pobre que cuidava das crianças e dos bichos. Não à toa o catolicismo aparece, na história do Brasil, como também associado a ações comunitárias, a pastorais da terra, a pastorais da criança… Essas mesmas que forjaram o próprio PT e a CUT.

Hoje, passadas as décadas de 80, 90, 2010, o PT aparece como a encarnação do mal em toda a terra. Entender o PT como a encarnação do demônio ajuda as pessoas a traduzirem as angústias que sentem. Angústias um pouco diferentes e muitas vezes manifestadas por medo da violência.

Esta angústia parece conjugar o mal estar que as pessoas têm consigo mesmo, aquele relativo a conflitos internos – dado que todos se sentem impotentes – e o incomodo com o dito mundo externo – em que todos são ameaçadores, em que todas as ruas, as vias e avenidas são perigosas. Por isto, a angústia, hoje, tem esta tendência à paranoia. Em especial, quando, em conjunto com o pânico, abandonamos a fé no ser humano, aquilo pregado por Cristo e seus apóstolos militantes, como a potência do amor que dispensa templos.

 O que esperar de um país em que as pessoas temem todos, em todos os lugares, sentem-se impotentes e não acreditam no público, na política, nas esferas cotidianas de debate e embates de ideias? O que se espera é que todos busquem o grande vilão que seja o único responsável pelo que nos amedronta e que a solução passe a ser a mais rápida, pois não se acredita mais em ninguém, a não ser em si mesmo, desde que armado. E o nome do Lobo Mal é PT.

De fato, o PT fez muito mal a muita gente: fez a segunda reforma da previdência, entregou os hospitais públicos na mão de empresários, piorou carreiras do serviço público. E conciliou as classes: ampliou os programas de assistência social do PSDB, tirou pessoas da miséria extrema, realizou concursos públicos pra classe média e permitiu grandes fusões de empresas que resultaram em lucros astronômicos de bancos e conglomerados de empresas. Nada parecido com uma Cuba ou uma Venezuela ou com o oximoro “Ditadura Comunista”.

Comunista tem o compromisso de acabar com o Estado. Lula fortaleceu o Estado, primarizando serviços do executivo e aparelhando a Polícia Federal, por exemplo. E, ainda assim, pudemos falar mal do Lula. Pudemos nos reunir e nos manifestar contra Lula. Pudemos ser contra ele.

O mesmo se deu com o PSDB, no governo de FHC: pudemos ser contra sua política, pudemos reivindicar melhorias de vida, lutar contra as reformas que retiravam direitos dos que trabalham.

Nem PSDB, nem PT diziam que os que pensavam diferente deles tinham que morrer. Não era fácil a luta, mas combatíamos, nas ruas, os ataques aos empregos e aos trabalhadores.

Mas os tempos mudaram: aqueles que eram trabalhistas, que endeusavam Brizola e os brizolões, que insistiam que a solução era a educação e o trabalho, que poupavam as Marias Madalenas… Hoje, preferem pegar em armas, matar, eliminar, atirar a primeira pedra. São pessoas que esqueceram preceitos cristãos que faziam parte da cultura do Brasil, como o de não devolver o mal com o mal.

Assim, alguns podem até acreditar que contam com um pai e com um filho, mas não atentam para o fato de que o Espírito Santo desagregou-se, pois a humanidade se foi. Nosso senso de comunidade se perdeu e todos querem acreditar que a solução é unicamente individual: virar patrão de si mesmo, virar empresário. O novo imaginário do brasileiro, que valorizava o trabalho, é que otário é aquele que trabalha e não o que me explora e que esperto é quem consegue explorar e lucrar.

Isto é o que faz com que, no lugar do trabalhismo, tenham nos apresentado outra dissimulação: a figura do empreendedorismo (que, na prática, força o trabalhador a trabalhar com seus próprios e parcos recursos, sem direito algum, sem garantia sobre o dia de amanhã)

Os inteligentes sabem que Bolsonaro já declarou que é contra todo e qualquer direito trabalhista. A retirada de direitos, tais como o que o PSDB e o PT já começaram a fazer, gera pobreza, desespero, desestrutura famílias, empurra trabalhadores para a indigência e até mesmo aumenta os índices de roubos e assaltos, pela desigualdade abissal que gera.

Lutamos contra essas iniciativas, no tempo do FHC e do Lula. Estamos vivos.

Com Bolsonaro, vamos perder o resto de direitos que temos, como 13º, férias, FGTS, aposentadoria, carteira de trabalho, emprego fixo… E, ainda por cima, não poderemos ser contra isto, pois os inteligentes sabem que Bolsonaro é a favor de matar quem pensa diferente dele. Se Bolsonaro for eleito e seguirmos criticando as retiradas de direitos, já anunciadas por ele, iremos presos, torturados e mortos, assim como Cristo foi, injustamente, ao denunciar os mercadores, os que perseguiam os pobres e acumulavam riqueza.

É possível ser contra o PT, o PSDB, sem ser a favor de matar pessoas, só porque elas pensam diferente de ti. Aqueles que têm autoridade, não precisam de autoritarismo.

Quem sabe, entendendo isto, nosso Messias desce à terra e segue vivo, na carne e no corpo do povo?

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