Política
O Messias de Lula
Com a provável indicação do chefe da AGU para o Supremo, o presidente aposta em uma reaproximação com os evangélicos
A “Parábola do Semeador”, narrada nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, conta a história de um lavrador que espalhou sementes em diferentes tipos de solo. Algumas ficaram pelo caminho e foram devoradas por aves. Outras caíram em terreno pedregoso e até germinaram, mas logo secaram por falta de raízes. Houve também as sufocadas por espinhos. Só as que encontraram terra fértil vingaram e deram frutos. Assim é a palavra do Senhor: só frutifica quando acolhida por corações dispostos a ouvi-la.
É com base nessa sabedoria que Lula tenta construir um novo canal de diálogo com o eleitorado evangélico, um dos segmentos mais refratários ao seu governo. Entre os fiéis, a taxa de desaprovação (61%) ainda supera, com folga, a de aprovação (35%), segundo levantamento do Instituto Quaest divulgado em setembro. O presidente sabe: reverter, ainda que parcialmente, esse cenário pode ser decisivo na disputa pela reeleição no ano que vem.
Alguns gestos na direção dos evangélicos vêm sendo feitos pelo governo, pelo PT e pela esquerda em geral desde o início do terceiro mandato de Lula. O mais importante deles deve ser a escolha de Jorge Messias, advogado-geral da União e fiel da Igreja Batista Cristã de Brasília, para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal com a aposentadoria precoce de Luís Roberto Barroso. O anúncio só deve ocorrer na próxima semana, após o retorno do presidente de visitas oficiais à Indonésia e Malásia. Lula já está com “convicção formada”, afirmou à CNN Brasil o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT). “Entendo que ele ainda não tenha oficializado porque faltam algumas conversas para azeitar as indicações.”
Entre os fiéis, a desaprovação ao governo (61%) é bem superior à aprovação (35%)
Nordestino, jovem, leal ao governo, com sólida formação jurídica, presença forte nas redes sociais e integrante de uma igreja cristã tradicional, Jorge Messias reúne diversos predicados para ocupar uma cadeira no STF – apesar dos apelos de movimentos sociais por maior representatividade racial e de gênero em um tribunal que, em 134 anos, teve apenas três mulheres e nenhuma ministra negra. Sua indicação é vista, porém, como estratégica para reconquistar terreno num setor que se tornou majoritariamente hostil ao petismo. Lula perdeu para Bolsonaro em 11 dos 14 estados com maior proporção de evangélicos, segundo o Censo do IBGE.
O presidente aposta na capacidade de Jorge Messias dialogar não apenas com evangélicos tradicionais, mas também de se aproximar do segmento neopentecostal, majoritariamente ligado ao bolsonarismo. Dois episódios recentes ilustram esse potencial. O primeiro foi o encontro entre Lula e o bispo Samuel Ferreira, líder nacional da Assembleia de Deus Madureira – uma das maiores denominações do País, que apoiou Bolsonaro em 2022. A reunião contou com a presença da ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, e do deputado Cezinha de Madureira (PSD), e terminou em uma roda de oração. “Oramos a Deus pelo Brasil e por Messias. Dissemos ao presidente que pode contar conosco e que trabalharemos por seu indicado junto ao Senado”, afirmou o parlamentar, antes de arrematar: “Não é por ser de esquerda que a pessoa não é de Deus”.
Nas fileiras bolsonaristas, nem todos demonstram abertura. “Um evangélico de esquerda, sem interlocução, não agrada à Frente Parlamentar Evangélica”, desdenhou o deputado Sóstenes Cavalcante, líder do PL na Câmara. Já os pastores mais estridentes da direita, como Silas Malafaia e RR Soares, têm preferido o silêncio diante da possível indicação ao STF.
Alcolumbre prefere Pacheco no STF. Mendonça, o ministro “terrivelmente evangélico” de Bolsonaro, agora faz campanha por Messias, o favorito na sucessão de Barroso – Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil, Alan Santos/PR e Waldemir Barreto/Agência Senado
No campo evangélico tradicional (e também fora dele), surpreendeu a incomum dobradinha entre Jorge Messias e André Mendonça, ministro do STF indicado por Bolsonaro em 2021, após intensa campanha junto à base religiosa conservadora. O magistrado “terrivelmente evangélico”, ligado à Igreja Presbiteriana e ex-titular da Advocacia-Geral da União, tem procurado colegas da Corte e senadores para afirmar que, entre os nomes cogitados para suceder a Barroso, Messias é seu favorito.
O contato entre o atual e o provável futuro ministro foi facilitado por parlamentares como o deputado Cezinha, ex-presidente da Frente Parlamentar Evangélica, e o senador Jaques Wagner, para quem Messias já trabalhou como chefe de gabinete. A aproximação começou, porém, quando Mendonça disputava sua vaga no STF, e Messias atuou junto a senadores do centro e da esquerda para superar resistências ao bolsonarista. Agora, Mendonça deve retribuir. “Nunca criamos problemas para a indicação de Messias. Temos respeito e carinho por ele, que é um grande jurista. Tenho certeza de que Mendonça ajudará o Messias”, afirma o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Grupo Prerrogativas.
Curiosamente, a maior resistência à indicação de Mendonça em 2021 partiu do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil), o mesmo que agora se opõe a Messias. Na época, o senador articulava em favor do então procurador-geral da República, Augusto Aras. Desta vez, seu preferido é o também senador Rodrigo Pacheco (PSD). Ainda assim, o martelo foi batido a favor de Messias em uma reunião entre Lula e Alcolumbre, na terça-feira 21. Coincidência ou não, na véspera do encontro, o Ibama autorizou a Petrobras a iniciar testes de exploração no bloco FZA–M–59, na Margem Equatorial, a cerca de 500 quilômetros da Foz do Rio Amazonas e a 175 da costa do Amapá. De olho nos royalties do petróleo, que podem beneficiar seu estado, Alcolumbre tem especial interesse na liberação da licença.
Antes de viajar para a Ásia, Lula comunicou ao presidente do Senado sobre sua decisão
Recorrendo a um bem-humorado trocadilho, o advogado e procurador de Justiça aposentado Lenio Streck diz que Lula vai “matar dois coelhos com uma ‘messiada’ só”, ao indicar o advogado-geral da União ao STF. “O presidente nomeia um ministro qualificado e alinhado com o governo, e ainda conquista um trunfo na difícil missão de aproximar a esquerda dos evangélicos.” Para Streck, professor de Direito Constitucional na Unisinos e pós-doutor pela Universidade de Lisboa, Messias é um jurista calejado nas disputas institucionais. “Na AGU, Messias mostrou-se uma espécie de camisa 10 do governo. Ministros da Justiça e advogados-gerais levam vantagem por lidarem diretamente com os temas mais sensíveis da República. Messias soma a isso um elemento muito brasileiro: o peso das religiões.”
Deputado federal pelo PSOL, o pastor Henrique Vieira avalia que a indicação de Messias pode acenar aos conservadores, mas não necessariamente à base evangélica como um todo. “É um erro supor que o diálogo com os fiéis se dá apenas pelo conservadorismo.” alerta. “Generalizar esse campo e pensar que dialogar é sempre ceder, e não debater com respeito às diferenças, é um equívoco. É a repetição de uma estratégia fracassada, que depois é apropriada pela direita.”
Para Vieira, o governo não deve limitar-se ao diálogo com grandes lideranças religiosas, mas buscar uma conexão direta com a base evangélica, que é plural e diversa. “Não se trata de um bloco homogêneo. Pautas socioeconômicas como emprego, renda, isenção do Imposto de Renda e direito à moradia falam diretamente com esse público, que compõe a classe trabalhadora”, afirma. O deputado destaca ainda a importância de evitar a “partidarização dos púlpitos” e elogia a postura de Lula, que tem cobrado da esquerda um diálogo mais amplo com os eleitores cristãos. “Essa atitude tende a gerar respeito entre os fiéis. É um caminho possível de aproximação.”
O bispo Samuel Ferreira, da Assembleia de Deus, abençoou Lula e prometeu trabalhar pela aprovação do nome de Messias junto ao Senado – Imagem: Ricardo Stuckert/PR e Cláudio Kbene
Nos últimos dias, Lula voltou a comentar a relação política com os evangélicos. Durante um congresso do PCdoB, afirmou que “2026 será um ano sagrado” e que a esquerda precisa “agir de forma diferente” ao dialogar com o segmento. “Os evangélicos não são contra nós – nós é que não sabemos conversar com eles. O erro é nosso. Nos distanciamos do povo. Nossa linguagem e nosso discurso estão muito longe da compreensão de milhões que gostariam de nos ouvir. O desafio é convencer quem ainda não está conosco a caminhar ao nosso lado”, disse.
A ordem no governo e no PT é reconstruir antigas pontes – e erguer novas – com o eleitorado evangélico. A um ano das eleições, quem assume protagonismo nessa missão é a primeira-dama, Janja da Silva. Neste mês, ela participou, em Caruaru, do sétimo encontro promovido pela Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito com mulheres cristãs. Outros já ocorreram em Brasília, Salvador, Manaus e Rio de Janeiro. Católica, Janja destacou em suas redes sociais a “potente troca de experiências” nas reuniões. “Momentos como esse, de escuta e compartilhamento de vivências, encorajam cada uma de nós a seguir de cabeça erguida.”
Coordenadora da Frente e organizadora do primeiro encontro, realizado no Rio, Nilza Valéria Zacarias diz que as mulheres têm recebido bem o diálogo com a primeira-dama. “Elas querem ser ouvidas sobre o trabalho que realizam em suas igrejas e comunidades, aliviando o sofrimento de quem mais precisa. São elas que acolhem outras mulheres, distribuem alimentos e promovem atividades no contraturno escolar, para afastar crianças das ruas. As conversas têm girado em torno de necessidades concretas, solidariedade e políticas públicas que gerem oportunidades.”
Nilza Zacarias destaca que Janja é uma aliada importante na promoção de políticas públicas. Ela lembra ainda que, nas periferias, cresce o número de mulheres que frequentam igrejas: “Faz todo sentido dialogar com elas. Nenhuma mulher é apenas evangélica. Ela também é mãe, trabalhadora, cuidadora, empreendedora. As igrejas funcionam como espaços de organização social, onde essas diferentes dimensões se encontram”.
Janja e benedita têm participado de encontros com mulheres evangélicas
Estrela do programa radiofônico Papo de Crente e também coordenador da Frente, o pastor Ariovaldo Ramos afirma que os encontros entre mulheres evangélicas e a primeira-dama têm sido positivos, sobretudo por promoverem conhecimento mútuo. Ele ressalta, porém, que o propósito da entidade – defensora do Estado laico – nunca foi estabelecer um canal direto com o governo. “Nosso objetivo é mostrar aos fiéis que as chamadas pautas de esquerda são as que mais se alinham com a mensagem de Cristo. Criamos o programa de rádio, publicamos revistas temáticas com base no estudo bíblico e realizamos encontros para aprofundar esse debate”, explica.
Presente no evento com Janja no Rio, a deputada federal Benedita da Silva (PT) avalia que os encontros aproximam o governo dos evangélicos e ajudam a esclarecer a relação entre fé, cidadania e política. “Um exemplo é a compreensão de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos se inspira na Bíblia e nos valores cristãos”, diz. Integrante do núcleo evangélico do partido, a parlamentar reforça que “a fé sem obras é morta” e defende a coerência entre discurso e prática. “A palavra deve estar alinhada à melhora das condições de vida do povo e à soberania nacional. Do contrário, perde o sentido.”
Benedita é uma das apostas de Lula para conquistar o eleitorado evangélico na campanha do próximo ano. O presidente é o principal fiador da sua candidatura ao Senado, um apoio decisivo na disputa interna do PT no Rio. Para a deputada, o diálogo com esse público deve respeitar e valorizar a fé, além de reconhecer que as igrejas são comunidades que oferecem não apenas suporte espiritual, mas também oportunidades de trabalho e assistência aos mais vulneráveis. “O PT precisa mostrar, com dados concretos, as políticas públicas que fortalecem a família e esclarecer que Lula jamais combateu qualquer religião, muito pelo contrário”, afirma, citando iniciativas como a Lei da Liberdade Religiosa e a oficialização do Dia do Evangélico e da Marcha para Jesus. “Esses fatos incontestáveis comprovam que Lula e o PT nunca perseguiram os evangélicos e demonstram que a liberdade religiosa, tão valorizada por nós, só é garantida quando o Estado é laico, conforme determina a Constituição.”
Gleisi Hoffmann foi designada por Lula para ampliar o diálogo com “pastores progressistas” e parlamentares evangélicos de esquerda e centro. A ministra também coordena o esforço de outros ministros com boa relação junto a esse público, como Wellington Dias (Desenvolvimento Social) e Anielle Franco (Igualdade Racial). Nas conversas dos últimos dois meses, Hoffmann recebeu várias propostas e sugestões sobre a postura do governo. Entre as ideias apresentadas ao presidente estão a realização de um encontro nacional com evangélicos e a criação de uma assessoria especial para esse segmento na estrutura governamental. “As demandas estão na mesa”, diz.
Sóstenes Cavalcante diz que a bancada da bíblia não se anima com um “evangélico de esquerda” – Imagem: José Cruz/Agência Brasil
No PT, a aproximação com o eleitorado evangélico passa pela Setorial Evangélica e pela Fundação Perseu Abramo. Em maio, a instituição ligada ao partido ofereceu aos militantes o curso “Fé e Democracia para Evangélicos e Evangélicas”, com o objetivo de preparar filiados para dialogar com esse segmento. Para as eleições municipais de 2024, o PT distribuiu uma cartilha orientando seus candidatos em todo o País sobre como se relacionar com os fiéis. O material destacava “o que fazer”, como valorizar a fé e a família, defender a verdade e os direitos humanos, falar sobre liberdade religiosa e ressaltar leis aprovadas pela legenda. Já as orientações sobre “o que não fazer” incluíam críticas a pastores e a cultos, menções a fundamentalismo e citações exageradas da Bíblia.
No que depender da vontade de algumas de suas lideranças, o PT ainda vai ter uma igreja evangélica pentecostal para chamar de sua. Vice-presidente nacional do partido, o prefeito de Maricá, Washington Quaquá, está montando na cidade fluminense a Igreja Jesus Libertador, que, segundo ele, terá uma orientação progressista. Quaquá defende que a disputa da narrativa política no meio evangélico não deve ficar restrita a pastores, muitos deles alinhados ao bolsonarismo. “O PT é um partido do povo e abriga diversas religiões, contando com muitos evangélicos entre seus filiados”, observa. “Precisamos ouvir e organizar a nossa base evangélica.”
O prefeito destaca a afinidade entre o discurso petista e os valores cristãos: “Temos todos os princípios de solidariedade e defesa dos pobres. Somos mais cristãos do que muitos que fazem estardalhaço se dizendo cristãos. Por isso, toda iniciativa de aproximação com as igrejas evangélicas é muito positiva”. Questionado por CartaCapital sobre se a “igreja petista” estará funcionando durante as eleições do ano que vem, Quaquá responde: “A Igreja Jesus Libertador já foi criada e está se estruturando. Aguardem”. •
Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Messias de Lula’
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