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Documentos revelam como Dom Paulo Evaristo Arns atuou no exterior para denunciar a tortura no País

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Fortaleza. O arcebispo protegeu perseguidos do regime, apoiou a greve do ABC e foi fundamental para a coleta de provas dos crimes da repressão – Imagem: Acervo Arquidiocese de São Paulo
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Um trabalho meticulosamente preparado, anos de organização de documentos e um cuidado total para evitar a espionagem da ditadura. Assim pesquisadores e líderes religiosos atuaram por anos para montar a mais completa compilação de dados sobre a tortura em um país latino-americano. Documentos guardados desde os anos 1980 em Genebra, na Suíça, revelam que dom Paulo Evaristo Arns, o reverendo Jaime Wright e uma série de colaboradores montaram uma estratégia minuciosa para permitir a catalogação dos nomes de 444 torturadores e de ao menos 240 locais onde os crimes foram cometidos.

O cardeal mobilizou um verdadeiro ­lobby internacional para denunciar a ditadura no Brasil, justamente quando parte da Igreja sofria com a repressão. Seu trabalho resultaria na publicação do relatório Brasil: Nunca Mais, com 707 processos conduzidos pela Justiça Militar que expunham os porões da ditadura.

A história de como o relatório foi produzido está detalhada pela primeira vez no livro Nunca Mais – Os Bastidores da Maior Denúncia Contra a Tortura Já Feita no Brasil, de Camilo Vannuchi.

Nesta reportagem, que servirá de prefácio ao livro, CartaCapital revela, porém, como o trabalho de Arns não ficou apenas na gestão da operação. Documentos mantidos até hoje em Genebra mostram que os organizadores previam um cronograma detalhado de como reunir as provas dos crimes no Brasil. Nada ocorria por acaso ou sem estratégia. Até a quantidade de dinheiro para xerox e para máquinas de escrever foi estabelecida com seis anos de antecedência à publicação da obra, em 1985.

Em um dos relatórios, os organizadores determinam a rota de viagens pelo ­País para coletar as evidências. Os trechos que deveriam ser percorridos em avião, ônibus ou carro estavam marcados. As cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Juiz de Fora, Brasília e Belém constavam do programa. Em outro documento, os organizadores alertavam para o risco de serem pegos, enquanto integrantes do Conselho Mundial de Igrejas, financiador do projeto, admitiam que a tarefa era “de alto risco para muitas pessoas”.

O financiamento externo viabilizou o projeto Brasil: Nunca Mais

Uma das estratégias dos organizadores do material foi negociar a publicação das revelações nos Estados Unidos, o que garantiria a difusão das denúncias. As cartas mostram o interesse de editoras norte-americanas pelo trabalho de Dom Paulo e o que chamaram de uma coleta de “grande valor para a história do século XX”.

O cardeal coletou de forma clandestina fundos e manteve encontros com líderes no exterior para denunciar as violações aos direitos humanos. A atuação do arcebispo de São Paulo ganhou o respeito de religiosos em todo o mundo e sua ação mobilizou uma rede de informantes, financiadores e apoiadores secretos. No País, ele e seus aliados organizaram manifestações, incentivaram líderes operários e até bancaram as despesas de famílias de trabalhadores em greve no ABC em 1980.

Papéis mantidos por anos nos arquivos do CMI, em Genebra, descrevem os bastidores do que ocorreu no Brasil durante os anos de chumbo e confirmam a prática generalizada e sistemática da tortura. Mas, acima de tudo, mostram a coragem do religioso e de seus apoiadores para denunciar o regime e expor os torturadores.

Em 2011, relatórios, testemunhas, cartas, informações de dissidentes e dezenas de acusações que faziam parte de três caixas de documentos foram entregues ao Brasil. Os originais foram, porém, mantidos em Genebra e, naquele ano, tive acesso às mais de 3 mil páginas do dossiê. Uma das constatações é de que a máquina de tortura do Estado não havia poupado nem mesmo sacerdotes. Em dezembro de 1978, o Centro Ecumênico de Documentação e Informação, no Rio de Janeiro, coletaria vasto material sobre a repressão sofrida pela Igreja naquela década.

O texto de introdução do levantamento deixa claro que o material havia sido encomendado justamente por Dom Paulo, que naquele momento tentava organizar um dossiê das violações aos direitos humanos que pudesse ser usado em algum momento pela Justiça.

Segundo o relatório, 122 religiosos foram presos pelo regime entre 1968 e 1978. Desses, 36 eram estrangeiros, nove bispos, 84 sacerdotes, 13 seminaristas e seis irmãs. Além dos religiosos, outros 273 fiéis “engajados no trabalho pastoral” também haviam sido detidos. Do total, 34 foram alvo de torturas, incluindo choques elétricos, paus-de-arara e pressões psicológicas. “Há registros de pessoas­ que ficam inutilizadas física e/ou psicologicamente por motivo da tortura”, descreve o material. A repressão ainda incluiu 75 casos de líderes religiosos intimados a depor, muitos sob pressão para denunciar bispos e sacerdotes.

Na lista dos atos de repressão contra a Igreja, o levantamento destacou a invasão de locais de culto, assim como casas de líderes religiosos. As catedrais de Goiânia, Brasília, Porto Alegre, João Pessoa, Recife e Belo Horizonte foram alvo, em alguns casos, até de tiros. As ações também atingiram prédios da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Na residência de Dom Alano­ ­Pena, em Marabá, a invasão foi seguida por saques em 1977. Nessas operações, material da Igreja, documentos e arquivos foram frequentemente apreendidos, além de resultar na prisão de religiosos.

Para Arns e líderes internacionais, a máquina do Estado tinha se focado em parte da Igreja e, na segunda metade dos anos 1970, havia chegado a hora de uma ação nos bastidores para reunir apoio internacional e, nas ruas, para demonstrar a insatisfação popular. Teve então início um trabalho de informação e de cuidados nas correspondências internacionais. Em 27 de setembro de 1977, o então encarregado de Direitos Humanos na América Latina do CMI enviou de São Paulo uma carta à sede da organização, em Genebra, alertando para a “crescente tensão entre a Igreja e as autoridades”. A carta, no melhor estilo das diplomacias, foi classificada como “confidencial” e seu autor, ­Charles Harper, fez questão de pedir que o documento “não fosse publicado”.

História. A invasão da PUC foi uma retaliação à manifestação na igreja da Penha. O Brasil: Nunca Mais foi relançado neste ano. O reverendo Wright foi parceiro de causa e amigo de Arns – Imagem: Arquivo Público do Estado de São, Paulo Pinto/Agência Brasil e Antonio Lúcio/Estadão Conteúdo

A missiva descreve dois momentos considerados fundamentais. O primeiro, o protesto que reuniu 6 mil manifestantes na Igreja da Penha, em São Paulo. “Foi a primeira vez que uma articulação tão lúcida, sob a iniciativa da Igreja no Brasil, foi feita desde 1964 em relação aos direitos humanos”, anotou Harper. O segundo foi a invasão da PUC, na qual Harper elenca a apreensão de uma tonelada de “material e equipamento subversivo” e a prisão de 1,5 mil alunos, “alguns em plena prova” nas salas de aula.  Para o observador internacional, o episódio “deve ser visto como uma retaliação contra a Igreja” depois da manifestação na Penha, quatro dias antes, assim como um alerta aos estudantes, cada vez mais mobilizados. Harper menciona ainda a pressão cada vez maior sobre Arns, considerado alguém de “coragem, firmeza e sentido de timing”.

A relação entre o CMI e Arns ganharia novas dimensões. Dois anos depois da invasão da PUC, o religioso decidiu escrever ao então secretário-geral do conselho, Philip Potter, e pediu: o “conteúdo dessa carta deve ser confidencial, dadas as suas implicações”. Na realidade, Dom Paulo pedia dinheiro para financiar a pesquisa que resultaria na publicação, em 1985, da obra Brasil: Nunca Mais.

O projeto nasceu de uma sugestão do reverendo Jaime Wright. Seu irmão, Paulo, havia sido morto pelo regime. O pastor, no lugar de pedir apoio à sua igreja, optou, no entanto, por se aliar a Arns. Mas o cardeal resistia em pedir dinheiro à Igreja no Brasil, por temer que a ala mais conservadora não só abafasse o projeto, mas também o denunciasse. A solução era pedir a entrega de recursos de forma clandestina, enviados da Suíça.

O grupo usaria uma brecha na lei para compilar as informações. Para se preparar para a Lei da Anistia, dissidentes e advogados tiveram acesso por 24 horas a seus dossiês. Isso foi o suficiente para o grupo coletar 1 milhão de páginas, com detalhes da repressão. “Por todo o Brasil, em Cortes militares, há uma abundância de material que substanciam 15 anos de repressão, contidas em centenas de dossiês”, afirmou Dom Paulo, que em outra carta chegou a citar o caráter “enciclopédico da tortura” no Brasil. “A presente abertura democrática pode dar a única chance de um acesso a tal material e para a sua preservação.”

A catalogação da tortura uniu o cardeal e o reverendo Jaime Wright

Nos documentos foram encontradas tabelas detalhadas sobre os custos e as viagens dos pesquisadores. Dom Paulo precisava de 329,1 mil dólares para completar o projeto. O equipamento comprado, segundo ele, seria posteriormente doa­do à PUC. Quase um ano depois, em 23 de junho de 1980, o cardeal receberia uma carta de Potter com duas notícias importantes. A primeira era de uma doação às “famílias dos operários em greve no ABC”. A segunda foi, no entanto, a que mais causou impacto em Arns. O conselho confirmava a obtenção da “maior parte dos recursos necessários à realização do projeto especial”. Potter ainda garantia que o resultado da pesquisa sobre a tortura no Brasil seria divulgado nas igrejas “em todo o mundo para sua reflexão”.

Depois de copiados, os processos eram enviados a São Paulo e transformados em microfilmes. De lá, seguiam escondidos para Genebra. Quem chegava à cidade suíça­ com as informações retornava ao Brasil com dinheiro para a continuidade do projeto, escondido em cintos.

A luta contra a ditadura tornou Dom Paulo e Jaime Wright não apenas aliados, mas também amigos. Em 13 de setembro de 1996, o cardeal enviou uma carta escrita à mão ao reverendo, a quem chamou de “meu melhor amigo” e declarou sua admiração por sua “inteligência e a vibrar por sua coragem”.

Para Harper, o cardeal deu apoio moral e espaço físico na Igreja para aqueles que lutaram contra a ditadura. O projeto resultou na adesão do Brasil, nos anos 1980, à Convenção da ONU Contra a Tortura e foi graças ao trabalho de Arns e do arquivo em Genebra que hoje se sabe no Brasil quem torturou, como e onde.

Em 1985, o impacto do dossiê surpreendeu os financiadores do projeto, na Suíça.­ Em uma das cartas, o Conselho Mundial de Igrejas constatou: a obra “mudaria” a forma pela qual os brasileiros olhariam para seu próprio país, na esperança de que exigissem Justiça. •

Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O mensageiro’

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