Política
O inferno são os outros
Os brasileiros reconhecem que a sociedade é racista, mas são incapazes de admitir o próprio preconceito


O Brasil é um país racista. O diagnóstico é confirmado por 81% dos entrevistados em um estudo inédito sobre a percepção do racismo no País. Os pesquisadores do Ipec consultaram, em abril, 2 mil brasileiros com mais de 16 anos em 127 municípios das cinco regiões, amostra semelhante à de pesquisas eleitorais de abrangência nacional. Ao se olhar no espelho, porém, poucos reconhecem o próprio preconceito. Somente 11% admitiram ter práticas discriminatórias, 12% identificaram familiares racistas e 36% disseram conviver com pessoas que têm comportamentos preconceituosos.
O resultado não surpreende os especialistas, é um clássico em estudos do gênero. “O lado positivo é que mais brasileiros conseguem enxergar a existência do racismo, por mais que tenham dificuldade de se olhar no espelho. Uma minoria ainda acredita na falácia da democracia racial”, observa Márcio Black, coordenador de projetos do Instituto de Referência Negra Peregum, uma das entidades que conceberam a pesquisa e encomendaram o trabalho de campo ao Ipec. Outro parceiro é o Projeto Seta, dedicado à promoção de uma educação antirracista no Brasil.
O objetivo do estudo, acrescenta o ativista, é identificar os obstáculos que impedem o avanço para uma sociedade sem discriminação. “Existem muitos estudos sobre o racismo, mas poucos partem de uma perspectiva racializada, a partir do próprio movimento negro”, diz Black. “Temos ainda a intenção de pautar o debate de questões raciais na opinião pública.”
Ao expor uma sociedade capaz de perceber o racismo, mas incapaz de admitir o próprio preconceito, os idealizadores da pesquisa acreditam ser possível avançar, pois o primeiro passo para a superação de um problema é reconhecer a sua existência. “Hoje, muitos se chocam diante de episódios de racismo interpessoal, como o caso daquela mulher da Zona Sul carioca que chicoteou uma pessoa negra ou os ataques de torcedores de futebol ao jogador Vinícius Júnior, do Real Madrid”, observa Ana Paula Brandão, gestora do Projeto Seta e diretora programática na ActionAid. A grande dificuldade, diz, está na percepção do racismo estrutural, a contaminar todas as relações em uma sociedade como a nossa, com passado escravocrata.
Para superar a velha contradição, é crucial investir em projetos de educação antirracista, avaliam especialistas
Na avaliação da educadora, o racismo mora no cotidiano, na diferença salarial entre pessoas negras e brancas, nas hierarquias estabelecidas nas empresas, na ausência do debate de questões raciais em salas de aula, no fato de os trabalhos considerados subalternos serem realizados, quase sempre, por pessoas pretas e pardas. “O preconceito está enraizado e banalizado na sociedade. Por isso, muitos brasileiros não conseguem se perceber como racistas.”
De acordo com a pesquisa, 88% dos entrevistados concordam que pessoas negras são mais criminalizadas que pessoas brancas, 79% acreditam que abordagens policiais são baseadas na cor da pele, no tipo de cabelo e vestimenta e 84% percebem que os brancos são tratados de forma diferente pela polícia. “São fatos que as pessoas negras sabem desde a infância, porque sofrem com o preconceito desde pequenos”, observa a escritora Joice Berth, autora do livro Empoderamento, da coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro. Quem reluta em enxergar a realidade são os que, de forma consciente ou não, possuem privilégios dentro desse sistema.
Ainda que oito em cada dez cidadãos reconheçam que o Brasil é um país racista, somente 57% concordam totalmente com a criminalização do racismo – outros 8% concordam só em parte, seja lá o que isso queira dizer. Concretamente, as ocorrências policiais por discriminação racial não param de crescer. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os casos de racismo aumentaram 67% em 2022 e os de injúria racial, 32,3%. “Houve uma escalada de violência contra a população negra nos últimos anos, em grande parte estimulada pelo governo anterior. É como se os racistas tivessem saído do armário após a eleição de Bolsonaro”, avalia Luana Tolentino, autora do livro Sobrevivendo ao Racismo: Memórias, Cartas e o Cotidiano da Discriminação no Brasil. Por outro lado, pondera a educadora e colunista do site de CartaCapital, as pessoas negras estão mais conscientes e dispostas a denunciar as práticas discriminatórias.
A lei também está mais rigorosa. Em janeiro deste ano, a injúria racial foi equiparada ao crime de racismo, inafiançável e imprescritível. Para a presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, Iraneide Soares da Silva, a mudança também deve impulsionar as denúncias, pois muitas vítimas relutavam em procurar a polícia e o Judiciário, por entender que os agressores quase sempre ficam impunes. “Com as ações afirmativas, a juventude negra finalmente teve acesso à universidade. Agora, temos uma massa preta pensante e ativa, que não vai mais tolerar esse tipo de opressão.”
Para avançar rumo a uma sociedade mais justa e com igualdade racial, o Estado precisa assumir o compromisso de investir de forma robusta em políticas afirmativas e na educação antirracista, concordam os especialistas consultados por CartaCapital. Ainda hoje, revela a pesquisa, as instituições de ensino são espaços hostis às pessoas negras. O estudo mostrou que 38% dos entrevistados sofreram racismo na escola ou na universidade. Entre os jovens negros de 16 a 24 anos, o ambiente escolar é o local onde eles mais sofrem práticas discriminatórias. “Esses números são importantes para a gente refletir sobre evasão escolar”, diz Iraneide Soares da Silva, ativista e professora da Universidade Estadual do Piauí. “A escola é o primeiro ambiente onde as crianças criam seus próprios vínculos, e costuma ser também o primeiro lugar onde as crianças negras vivenciam o preconceito.”
Fonte de ambos os gráficos: Pesquisa “Percepções sobre Racismo no Brasil”. O Ipec consultou 2 mil brasileiros com 16 ou mais anos de idade,
Um recente estudo da ONG Todos Pela Educação alerta: os projetos de educação antirracista nas escolas vêm caindo desde 2015, e chegou ao menor patamar em 2022. Para Tolentino, se a escola não for um espaço de reconhecimento e valorização, inevitavelmente será mais um instrumento de expulsão dos sujeitos negros dos espaços sociais. “As ações afirmativas são fundamentais para o País superar esse abismo que separa brancos e negros”, defende. “Meu maior desejo, enquanto educadora, é ver políticas públicas de formação continuada de professores articulada com o combate ao racismo.”
Hoje, por sinal, a população brasileira está mais favorável às políticas afirmativas. Segundo a pesquisa, 74% dos entrevistados são a favor da reserva de vagas para pessoas negras ou indígenas em faculdades, universidades, concursos públicos e empregos em empresas privadas. “A luta antirracista teve um impacto enorme com a chegada de mais pessoas negras nas universidades. Mudou a forma de pensar, a percepção das questões sociais e raciais”, analisa Brandão. “Agora, precisa acelerar o passo, criar mais políticas públicas e, para isso, é necessário muito investimento.”
Na avaliação da gestora do Projeto Seta, um dos principais avanços foi a lei federal que tornou obrigatório o ensino de “história e cultura afro-brasileira” no currículo escolar. Faltam, porém, subsídios aos educadores e gestores de escolas para colocar a legislação em prática. Menos da metade das pessoas ouvidas na pesquisa teve acesso a essa disciplina na escola, apenas 46%. “Ainda vivemos os resquícios de uma sociedade marcada pela escravidão”, afirma, antes de concluir: “É no microcosmo da escola que podemos dar o grande passo em prol de uma sociedade mais equânime”. •
Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O inferno são os outros’
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