Política

O impeachment é o menor dos nossos problemas

Menções religiosas e homenagens a familiares dominaram as justificativas de voto na Câmara no domingo 17

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Com citações a torturadores, exaltação ao golpe de 1964, menções à família e louvações a Deus como justificativas de voto, a votação na Câmara dos Deputados deixou claro que o impeachment de Dilma Rousseff parece ser apenas um dos muitos problemas do atual processo de crise política. Uma questão ainda mais grave é a volta dos valores conservadores em sua pior forma (e grande força).

As justificativas apresentadas por grande parte dos deputados não versaram sobre o centro da peça jurídica do impeachment: as chamadas “pedaladas fiscais”. Apenas dois congressistas manifestaram-se dessa forma. Ou seja, se fosse uma redação do Enem, possivelmente muitos teriam suas provas anuladas por fuga do tema.

A família, representada pelas menções a filhos, pais, netos e esposas, foi a referência prioritária apontada como justificativa para o voto dos parlamentares, com 92 citações logo no início do voto.

O que se viu no episódio que fechou uma das mais longas sessões na Câmara dos Deputados foram declarações de apoio à ditadura (1964-1985), diversas manifestações religiosas e uma misoginia expressa tanto nos cartazes de “Tchau, querida”, em referência à Dilma, quanto nas e vaias recebidas pela deputada Clarissa Garotinho (PR-RJ), que, grávida de 35 semanas, ausentou-se da votação por ordens médicas.

Clarissa declarou que seria a favor do impeachment, mas nem isso a salvou de receber o seguinte comentário de seu par no Congresso: “Alguém avise pra Clarissa Garotinho que Maria viajou de Nazaré pra Belém de jumento, pra cumprir sua missão, e pariu Jesus, forte e com saúde”, disse Alberto Fraga (DEM) pelo Twitter no sábado 16, quando a caça pelos votos de cada deputado atingiu seu momento mais dramático.

Para alguns opositores, a filha do ex-governador Anthony Garotinho (PR-RJ), inimigo de Eduardo Cunha, teria pedido licença para se abster e favorecer Dilma. Deputado mais votado do Distrito Federal, Fraga é líder da Frente Parlamentar da Segurança Pública, a chamada “bancada da bala”, que aglutina 294 membros no Congresso, incluindo o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ).

Bolsonaro protagonizou uma das declarações mais chocantes, mas coerentes com as posturas já demonstradas publicamente em outras ocasiões, ao exaltar o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos mais conhecidos torturadores do regime militar. “Perderam em 64, perderam em 2016. Pela família e a inocência das crianças. Em memória do Coronel Ustra”, declarou Bolsonaro ao proferir seu voto.

Comandante do DOI-Codi, órgão de repressão do 2º Exército em São Paulo, Brilhante Ustra foi uma das 377 pessoas apontadas como responsáveis direta ou indiretamente pela prática de tortura e assassinatos durante a Ditadura Militar no relatório final da Comissão da Verdade, documento oficial do Estado brasileiro sobre o período. O coronel está relacionado com 60 casos de mortes e desaparecimentos de opositores do regime em São Paulo. Sob seu comando, entre 1970 e 1974, o DOI-Codi torturou ao menos 500 pessoas.

O filho de Jair, Eduardo Bolsonaro, também citou positivamente os militares de 1964.

Pouco tempo depois de sua declaração, Jean Wyllys (Psol-RJ) cuspiu em direção a Jair Bolsonaro. Isso causou mais espécie do que a exaltação de um torturador.

O deputado Éder Mauro (PSD-PA) justificou seu voto a favor do impeachment afirmando que se posicionaria contra todos “os bandidos” que querem destruir o país com a “proposta de que a criança troque de sexo e aprenda sexo na escola com 6 anos de idade”. Imagina-se que a referência foi ao sepultado (pelo próprio governo Dilma, diga-se de passagem) kit anti-homofobia.

As crianças, aliás, foram muito citadas por deputados em geral. Em especial, as crianças pertencentes às suas próprias famílias. É difícil entender o motivo de tais homenagens aos filhos, pais, mães e avós dos congressistas. Um dos parlamentares chegou a voltar ao microfone para mandar um beijo para seu filho (“É pra você, Paulo Henrique”).

A mais conservadora bancada desde a redemocratização já mostrou que não veio só para discursar. E ela é representativa: 313 dos 513 deputados (61% da Câmara) são membros de pelo menos uma das três frentes parlamentares conhecidas como “bancada BBB” da Câmara: do boi, da Bíblia e da bala, que defendem os interesses dos ruralistas, dos evangélicos e dos deputados ligados à segurança pública

Entre os principais projetos propostos pela ala mais conservadora da Câmara, estão a redução da maioridade penal, a alteração do estatuto do desarmamento, a criação do Estatuto da Família (com potencial para atacar direitos LGBTs), o Estatuto do Nascituro (que dá direitos ao feto e inviabiliza qualquer proposta de descriminalizar o aborto) e a criminalização da “heterofobia”.

A pesquisadora da Unifesp, Esther Solano, que monitorou as questões de valores expressos pelos deputados em suas falas durante a votação do impeachment, observou que a política tornou-se uma guerra de valores moralizantes, muito vagos, mas que engendram uma capacidade de mobilização muito grande na sociedade e servem como guarda-chuva para justificar qualquer posição. No debate político de domingo, sentiu-se falta de argumentos políticos de fato.

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